Efeito Angelina Jolie: neuropsicólogo diz que tratar a saúde pelo viés biológico é pouco

História e cultura do paciente devem ser consideradas, diz Mario E. Martinez. Na entrevista, ele detalha sua teoria, conta como foi levado a investigar casos de estigmata (ferimentos semelhantes aos sofridos por Jesus Cristo que surgem espontaneamente) e comenta a decisão de Angelina Jolie

por Humberto Rezende 18/05/2013 14:56

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AFP PHOTO / Dan Kitwood
No início desta semana, a atriz Angelina Jolie revelou que se submeteu a uma mastectomia dupla preventiva. Estudo mostrou que 70% das mulheres nos Estados Unidos que tiveram os seios retirados não tinham razões médicas comprovadas para passarem pelo procedimento (foto: AFP PHOTO / Dan Kitwood )
No começo da semana, a atriz norte-americana Angelina Jolie revelou que decidiu retirar os dois seios depois de um exame genético apontar 87% de chances de ela desenvolver câncer de mama. O episódio, que gerou um debate no mundo todo sobre os caminhos da medicina, ilustra como a genética tem sido apontada, cada vez mais, como a principal resposta para a causa e a cura de doenças.

Nestes tempos de análises cada vez mais minuciosas do DNA, o neuropsicólogo Mario E. Martinez insiste em um alerta: pesquisas assim são importantes, mas não suficientes. Discípulo do psiquiatra norte-americano George F. Solomon — um dos primeiros a apontar que os processos mentais exercem forte influência sobre o sistema imunológico —, o cubano criado nos Estados Unidos participa de congressos e faz palestras ao redor do mundo argumentando que a mente, a história de vida e o contexto cultural são aspectos tão importantes quanto os genes para se compreender o funcionamento do corpo humano.

A área inaugurada nos anos 1960 por Solomon — morto em 2001, aos 69 anos — foi denominada psiconeuroimunologia por aliar o estudo das emoções a diferentes áreas da medicina. O trabalho de Martinez, contudo, busca ir além. Para ele, as doenças são muitas vezes aprendidas pelas pessoas, tanto por conta de suas experiências quanto pelo meio social em que vivem ou foram criadas. Por isso, defende um novo paradigma para a área da saúde, que descreve como integrativo.

Batizada de biocognição, a teoria de Martinez afirma que nenhuma doença é exclusivamente orgânica ou totalmente mental. Os genes, defende, podem predispor alguém a desenvolver alguma enfermidade, mas eles não significam “uma maldição” inevitável. O neuropsicólogo, no entanto, faz questão de separar sua teoria de abordagens que pregam um afastamento da medicina tradicional. Ele considera esse tipo de proposta muito perigoso. “Eu nunca digo a alguém para não ir ao médico ou não tomar um remédio receitado. A pessoa não vai se curar por conta própria. Ela precisa de profissionais. Mas, ao mesmo tempo, você precisa olhar para o que pode fazer para ajudar os profissionais”, afirma.

Com mestrado em psicologia clínica pela Universidade Vanderbilt (EUA); doutorado na mesma área, com especialização em neuropsicologia, pela Universidade de Madri; e pós-doutor em farmacologia pela Universidade Farleigh Dickinson (EUA), o especialista se dedica hoje ao treinamento de profissionais de saúde por meio do Instituto de Ciência Biocognitiva, instalado em Montevidéu, onde mora atualmente.

Ao visitar Brasília para uma série de conferências no Departamento de Psicologia do Centro Universitário de Brasília (UniCeub),a convite do antropólogo e professor de antropologia da instituição José Bizerril Neto, Martinez conversou com o Correio. Na entrevista, complementada mais tarde, por e-mail, detalhou sua teoria, contou como foi levado a investigar casos de stigmata (ferimentos semelhantes aos sofridos por Jesus Cristo que surgem espontaneamente em algumas pessoas) e comentou a decisão de Angelina Jolie.

Viola Júnior/Esp. CB/D.A Press
Martinez: cubano criado nos Estados Unidos, ele argumenta que a mente, a história de vida e o contexto cultural são aspectos tão importantes quanto os genes. (foto: Viola Júnior/Esp. CB/D.A Press)


Por que precisamos de um novo paradigma para a forma como lidamos com a saúde?
Porque o entendimento atual é principalmente genético e não leva em consideração os aspectos mentais e culturais. Hoje, a ciência reduz o corpo a partes doentes que devem ser tratadas isoladamente. Assim, o foco não é de fato a cura. Há um enfoque em medicamentos que, na verdade, fazem com que as pessoas vivam um pouco melhor com suas doenças. E isso não é suficiente.

O novo paradigma que o senhor propõe é a biocognição. Em que consiste essa teoria?
A teoria biocognitiva considera a cognição, a biologia e as emoções da pessoa um só processo, inseparável. Nenhum desses elementos dão origem um a outro. Eles coemergem, surgem juntos, dentro de um contexto cultural. Assim, acredito que não existe uma patologia exclusivamente orgânica nem totalmente mental. Não é possível separar mente e corpo. A genética é muito importante, claro. Ela pode predispor alguém a ter determinada doença, mas ela não significa uma maldição, porque há outros fatores.

O senhor afirma que as doenças podem ser aprendidas. Pode dar um exemplo de como isso ocorre?
Primeiro, podemos entender a força dos símbolos. Desde pequeno, você ouve sua mãe dizer que tomar chuva deixa você doente. O que ocorre quando você vê a chuva? Seu sistema imunológico reage negativamente. Mas o corpo de uma pessoa criada em uma outra cultura não vai ter a mesma reação. Agora, veja a fibromialgia. A medicina, hoje, ou diz que essa doença não existe ou que existe, mas que não há cura. Mas a fibromialgia existe e pode ser curada.

Como?
Acredito que as doenças têm, no início, uma função adaptativa de preservação. Nos casos de fibromialgia, é comum histórias de pacientes que, por algum motivo, como crescer em um ambiente inseguro, adotaram um sono curto e estados hiperalertas. Isso é uma adaptação que ajuda a se proteger. Mas há um efeito sobre o sistema imunológico. Mais tarde, quando a pessoa estiver em um ambiente em que a adaptação não é mais necessária, ela adoece. É preciso, então, identificar a função adaptativa inicial e o contexto em que ela foi aprendida. Um temor que pode surgir a respeito de sua teoria é a de pessoas acharem que podem deixar de lado a medicina. Nunca digo a alguém para não ir ao médico ou não tomar um remédio receitado. A pessoa não vai se curar por conta própria. Ela precisa de profissionais. É importante não ser irresponsável. Mas, ao mesmo tempo, você precisa ver o que pode fazer para ajudar os profissionais.

É comum os filhos desenvolverem a mesma doença dos pais. E a genética é apontada como responsável. Como o senhor vê a decisão da atriz Angelina Jolie de retirar os seios baseada em um teste genético que apontou 87% de chances de ela desenvolver câncer de mama?
Eu fiquei muito perturbado com esse episódio, porque vejo a cirurgia preventiva como a nova tendência em medicina agressiva. Ela se tornou uma tática de medo sem garantias científicas. Os 87% de chances são uma média que leva em conta estatísticas de grupo e não o paciente. Eu acho esse tipo de intervenção muito agressiva, e está se estabelecendo um exemplo para outras mulheres. No caso de Angelina Jolie, médicos acharam uma mutação no gene BRCA1, e isso, somado à morte da mãe aos 56 anos, foi a razão apontada para a cirurgia. Contudo, mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 respondem por menos de 10% de todos os cânceres de mama. A remoção de qualquer órgão é uma decisão muito pessoal e precisa ser respeitada, mas alguns médicos são excessivamente agressivos ao aconselhar os pacientes, sem oferecer alternativas menos invasivas.

O senhor costuma dizer que a medicina é cultural. No caso de Angelina Jolie, há uma cultura influenciando esse tratamento mais agressivo?
Na França e em outros países, há uma mentalidade diferente. Especialistas franceses são mais conservadores quando se trata de retirar os seios e os órgãos reprodutivos. Um estudo de 2012, conduzido na Universidade de Michigan, mostrou que 70% das mulheres nos Estados Unidos que tinham tido os dois seios retirados depois de um diagnóstico de câncer não tinham razões médicas comprovadas para passarem pelo procedimento. Há mulheres que se tornam obcecadas pela possibilidade de ter câncer de mama devido ao histórico familiar e acabam tendo as mamas retiradas. Em vez de tratar a obsessão, alguns médicos concordam com a cirurgia. Acho que existe uma forte necessidade de investigarmos as causas da saúde. Ou seja, estudar mulheres que tem um histórico familiar de câncer, mas não desenvolvem a doença. E sempre recomendo uma segunda e até uma terceira opinião antes de decidir pela cirurgia preventiva.

Pessoas podem se sentir culpadas ao pensarem que a forma como viveram favoreceu o surgimento de uma doença. Como evitar isso?
Suponhamos que você fale português, e o português lhe faça mal. É sua culpa? Não, é um aprendizado. Nunca dizemos que é culpa da pessoa, que ela criou aquilo. Ela não criou. É um sistema que ela aprendeu e disparou algo que já estava ali. Em vez de culpar, o que você faz é perguntar o que pode ser feito. Essa é uma ciência de esperança, não de culpa.

Nas suas palestras, chama a atenção a variedade de casos com os quais o senhor já trabalhou, que incluem até investigações sobre stigmata.
Meu conhecimento devo a dois principais mentores: George Solomon, que criou a psiconeuroimunologia, e o orientador de minha tese na Universidade de Vanderbilt, John D. Bransford. Além disso, trabalhei para o sistema prisional, no Tennessee, onde ganhei uma experiência tremenda, porque vi de tudo: dependência química, abuso sexual, depressão, retardo mental, automutilação. Por causa do trabalho em psicocriminologia, fui levado a investigar stigmata.

O que o senhor aprendeu sobre stigmata?
Primeiro, 99% das pessoas são católicas e 80% são mulheres. Mas, de cada 100 casos, 99 são fraudes. Nós fazemos exames de sangue, intervenções psicológicas e análises para ver se a pessoa é histérica ou tem problemas dissociativos. Também há formas de ver se a ferida foi criada pela pessoa ou não. Nos eventos reais, as pessoas apresentam feridas que não curam e há casos de curas espontâneas ao redor delas. Um dos casos que investiguei, para a National Geographic, foi o de uma mulher na Cidade do México, no qual pudemos fazer uma série de exames e constatar que não se tratava de uma fraude. Nos casos autênticos, como a pessoa acredita que seja intervenção divina, o sistema imunológico não permite que as feridas se curem, mas também não deixa que elas infeccionem.

Como as curas espontâneas podem ser explicadas?
Para mim, todos nós temos a habilidade para nos curarmos, mas precisamos de permissão. Então, se você está com uma pessoa que acredita ter sido alvo de intervenção divina, você dispara essa habilidade de cura. Meu trabalho é fazer com que as pessoas entendam que elas já têm esse componente capaz de curar e ajudá-las enquanto estão trabalhando com profissionais. Você tem uma tremenda capacidade de ajudar na sua cura, e não só acreditando, mas tornando a cura algo que vale a pena. Uma pessoa que, se melhorar, tenha de voltar para um emprego que odeia, dificilmente vai ficar boa.