Paulina Chiziane representa as vozes anticoloniais na literatura

A escritora, em O alegre canto da perdiz, coloca a mulher como mediadora para recriar, de forma autoral, os conflitos gerados pela herança da escravidão

por Tom Farias 11/01/2019 09:49
Otávio de Souza/Divulgação
A escritora moçambicana revela relações familiares pela lente feminina carregada de valores ancestrais (foto: Otávio de Souza/Divulgação)
No Brasil, a escritora moçambicana Paulina Chiziane tem sido destacada por um seleto fã-clube, formado especialmente pelas mulheres negras, apreciadoras da sua grande literatura, entre as quais merece menção a escritora mineira Conceição Evaristo.

É emblemático termos um círculo tão pequeno de seus admiradores, embora significativos, para uma escritora que, em seu país de origem, é considerada umas das maiores narradoras e, acima de tudo, a primeira mulher prosadora a escrever um romance em sua terra africana.

É certo que, quando falamos da literatura moçambicana, o nome que nos vem à mente é de um homem, o do escritor Mia Couto, que, aliás, é branco. Mesmo o de Ungulani Ba Ka Khosa, fantástico escritor negro, que esteve recentemente no Brasil lançando o seu novo livro, Gungunhana: Ualalapi e as mulheres do imperador (Editora Kapulana), é lembrado. Os méritos de Mia Couto já não são mais postos em dúvida, dada a mensurada qualidade de seu trabalho literário, amplamente divulgado e difundido no Brasil.

No caso específico da escritora Paulina Chiziane, pesa bastante uma injustiça que, certamente, tem a ver com o fato de ela ser mulher e ser negra, salvo outro juízo de valor, argumentado em contrário, mas com base fundamentada, prezando pela lógica e a coerência.

Começo dizendo isso após ler, com imensa alegria, o seu mais recente livro divulgado aqui entre nós – O alegre canto da perdiz. A leveza desse livro nos faz lembrar uma afirmação que a própria Paulina, em conversa numa tarde comigo, em São Paulo, durante a FlinkSampa, gostava de (re)afirmar: “Gosto mais de dizer que sou uma contadora de estórias. Isso de dizer que sou romancista, gosto, mas não gosto muito”.

Paulina Chiziane é considerada, com toda a razão, após a publicação de Balada de amor ao vento, de 1990, a primeira romancista (ou contadora de estórias) da África moçambicana. E esse título, embora ela minimize o rótulo, como é da sua modéstia, à altura da mesma simplicidade com que sorri e fala de sua literatura e do seu país, tem projetado seu nome mundo afora, como representante não só das mulheres negras da África negra, mas das mulheres negras de todo o planeta.

No caso de O canto alegre da perdiz, chama a atenção na autora um dado importante na forma de narrar e de contar a tal “estória”: a descrição das cenas em si e a apresentação dos personagens. A escritora africana apresenta, de forma leve e original, os tipos da cena que quer descrever, em que cada parágrafo do texto serve de passo e de guia, levando o leitor, logo no início das primeiras páginas, a ter um envolvimento íntimo e pessoal com os seus personagens, criando desde já um vínculo, uma empatia, uma espécie de relação de amor e cumplicidade.

A história gira em torno também de duas mulheres, Delfina e Maria das Dores. O percurso dessas duas personagens vai mostrar que Paulina tem como propósito determinar o espaço de fala das mulheres africanas, impressa nas dores dos seus corpos, na cartografia do seu espaço de ação, elevando a ideia do matriarcado. Na verdade, ela procura denunciar (ou desconstruir) o projeto colonial de poder, na figura branca do invasor do país e de todo o continente.

Ao colocar o discurso feminino do anticolonialismo nas vozes de mulheres negras, Paulina Chiziane potencializa a sua própria escrita anticolonialista. O sentido de dor e perda, inerente às suas personagens mulheres, vem carregado de uma carga dura e forte de preconceito e de violência contra a mulher africana e, por tabela, contra o homem africano também. Ler Paulina Chiziane, por este prisma, nos faz entender por que ela vem sendo tão lida e ouvida mais no exterior do que em Moçambique.

Nesse sentido, O alegre canto da perdiz, ao demarcar um ponto alto da literatura de Chiziane, cumpre bem o papel de instrumento de fabulação, de contação de histórias, de denúncia contra o arbítrio desumano que foi a escravidão e suas sequelas.

Ao cumprir com esse objetivo, o de fabular e denunciar, ao expor sorrisos e feridas, a escritora moçambicana “traz a boa-nova escrita do avesso”, nas palavras de uma de suas personagens. E esse seu livro é, seguramente, a narrativa que mais se aproxima de uma “literatura de missão” – entretém o leitor e, ao mesmo tempo, o mantém alerta sobre a potencialidade de uma África ainda muito viva e pulsante.

A África, na concepção de Paulina Chiziane, tem a ver com esse corolário de cores e vozes distintas e exasperadas na forma de emoção e múltiplos sentidos. A dor contida de suas personagens é reverberada na representação escrita da autora moçambicana, pondo em destaque o conceito de memória, exposto nas falas das mulheres da narrativa, e o estigma do tempo, referendado no “corpus” escrito e na ancestralidade, que carregam em si a trajetória de vidas que se nutrem do próprio sangue que derramam e do sofrimento sentido.

Paulina Chiziane, com essa lógica da insensatez, diga-se de passagem, é extremamente assertiva e subverte o sentimento narrativo, elevando-o à melhor condição de uma história contada sobre o ponto de vista de quem volve a terra e se expressa pelos olhos das mulheres africanas.

* Tom Farias é escritor e jornalista, autor de Cruz e Sousa: dante negro do Brasil (Pallas Editora) e Carolina, uma biografia (Malê Editora)


Escrita necessária

A nova edição do romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, é o ponto alto de sua literatura após a estreia literária com Balada de amor ao vento, em 1990. Uma das vozes femininas mais importantes hoje da literatura africana, com livros traduzidos para os mais consagrados mercados livreiros no mundo, como o Brasil, a Europa e os Estados Unidos, Paulina Chiziane, no entanto, ainda não é uma escritora popular, pelo valor literário dos seus livros e pela força documental dos seus romances.

No Brasil, onde a conhecemos muito pouco, dada as edições acanhadas de suas obras, ela tem um pequeno círculo de admiradores, entre o público em geral, escritores e acadêmicos. Por esta razão, Paulina Chiziane sobrevive por aqui e é cultuada por uma plêiade pequena, mas considerável: Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins, Martinho da Vila, Oswaldo de Camargo, Oswaldo Faustino, Luiz Cuti, Cristiane Sobral, Eduardo de Assis Duarte e Laura Padilha, entre poucos outros.

Com a força narrativa que tem, e o ímpeto de contar a história que faz ao mesmo tempo uma rica historiografia da África pré e pós-colonial, Paulina Chiziane é, sem qualquer dúvida, digna merecedora da atenção e dos louvores que, pelo menos, vem merecendo por aqui.

A condição de mulher negra e africana, sobretudo esta última, traz uma carga de tensão emocional bastante significativa para a obra de Paulina Chiziane, sobretudo quando ela trata das relações amorosas, mormente marcadas pelos conflitos geracionais, que têm muito a ver com a cultura dos povos tradicionais, de forte tradição protestante, da qual ela é oriunda.

O teor feminista do seu discurso se alinha às denúncias contra o status quo atual da política em favor da mulher em Moçambique. Por estas razões, sua escrita é tão atual e necessária.
 
 
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O ALEGRE CANTO DA PERDIZ
. De Paulina Chiziane
. Dublinense
. 352 páginas
. 49,90