Tributo a Geraldo Veloso: professor Jair Fonseca fala sobre a fascinante personalidade do diretor mineiro

Incansável guerreiro do cinema faleceu no último sábado (1°), aos 74 anos. Confira depoimentos de seus amigos e parceiros de trabalho

por Jair Fonseca 05/10/2018 21:33
Marcos Vieira/EM/D.A Press
(foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Há muito que falar sobre Geraldo Veloso, um dos mais importantes homens de cinema do Brasil, e uma personalidade fascinante, uma pessoa afetuosa e gentil, cuja curiosidade intelectual se voltava não só para filmes, livros e discos, mas também para gente, diretamente. Tratarei aqui, nesta homenagem a ele, de seu único livro publicado, até agora, O cinema através de mim – A longa trajetória de Theobaldo Odisseu de Almeida, lançado pelo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, em 2015.

O título já chama a atenção para o fato de que mesmo ao escrever uma godardiana “verdadeira história do cinema”, junto à sua história de vida e a todo um contexto político-cultural, Veloso traz a ficção para a cena da escrita, com a montagem dos textos diversos que compõem o livro. Isso se evidencia no nome de Almeida, personagem de alguns de seus filmes, sendo que a obra assume, já pelo título, o caráter subjetivo da empreitada, mas ironicamente o faz pelo recurso à fórmula de Rimbaud: “eu é um outro”.

Não por acaso, o primeiro texto do livro, após a introdução que começa com a frase “gosto de escrever”, chama-se “Diário de uma perversa”, e narra a improvável história de uma certa Maria Germana de Almeida, bem-sucedida empresária da moda e do crime no capitalismo globalizado, na qual é possível perceber características do autor, como seus gostos musicais ou literários, conforme os ensaios que seguem podem atestar.

Como se não bastasse, essa outra Almeida seria da fictícia cidade de Ulisseia, em Minas Gerais, salientando-se aí a referência às obras de Homero e Joyce, em consonância com o nome Odisseu, aliás. O retorno à casa ou à terra natal caracteriza não só essas personagens de ficção, inclusive os Almeidas, mas também a trajetória de Veloso, cujos anos fora de Minas, no Brasil e no exterior, foram muitos e proveitosos, como lemos em suas memórias, tudo culminando em sua volta.

Falo do livro não só por sua originalidade inclassificável enquanto reflexão inteligentíssima sobre cinema, outras artes e cultura em geral, nem só por suas evidentes qualidades literárias, mas também porque através dele conhecemos algo da vida e obra de Geraldo Veloso, atravessada, por sua vez, pelas vidas e obras de tantos outros mundo afora.

Há nele dados objetivos sobre sua trajetória, por exemplo, ao escrever sobre roteiros: “(...) fiz e venho fazendo como colaborador, realizador, produtor etc., mais de 120 filmes (longas, curtas, institucionais, para TV: dirigi por 10 anos um programa de televisão, que vai ao ar semanalmente, no qual entrevistei mais de 400 pessoas etc.). Já, igualmente, escrevi muito sobre cinema na imprensa de vários lugares (acho que mais de 200 artigos).” Mas junto a isso, há um lirismo nas narrativas e nos ensaios do livro que, mesmo com suas múltiplas personagens reais e imaginárias, atendem a uma única voz poética, em que reconhecemos a dicção do autor por mais que ironicamente às vezes ele finja se ocultar.

Mesmo porque ele era um extraordinário contador de casos e alguém que propunha reflexões inteligentes e sensíveis, ainda que assumisse ser de “uma geração pop”: “Procuro escrever como converso”, afirma na introdução do livro. Pois há no estilo de O cinema através de mim a mesma quantidade e qualidade das informações e reflexões que ele engatava nas longas conversas que dão o tom desse que é um dos melhores livros brasileiros, não só sobre cinema, mas sobre outras artes e cultura – inclusive sobre a chamada contracultura – ou seja, sobre modos de vida alternativos, a partir da segunda metade do século passado. A prodigiosa memória desse intelectual fez com que eu o chamasse de Veloso, o Memorioso, numa referência a um conto de Borges e em homenagem a essa faculdade com que o amigo nos brindava, e ainda brinda por sua obra.

Em sua última postagem no Facebook, à guisa de despedida involuntária, ele legou aos amigos a canção de Toninho Horta, com Nana Caymmi, Beijo partido, e partiu. Embora ainda esteja por aí, entre nós, de outras formas, nas imagens que criou, nas páginas que escreveu, e em nossa memória.

* Jair Fonseca é professor de literatura e cinema da Universidade Federal de Santa Catarina e foi vocalista da banda Último Número.