Entrevista: diretor Paulo Augusto Gomes fala sobre a paixão do cineasta Geraldo Veloso pela sétima arte

Morto no último sábado (1°), aos 74 anos, veloso dedicou sua vida ao cinema

por Pablo Pires Fernandes 05/10/2018 07:00
Euler Júnior/EM/D.A Press - 10/7/09
(foto: Euler Júnior/EM/D.A Press - 10/7/09)
O cinema brasileiro perdeu  um de seus grandes entusiastas. Geraldo Veloso (1944-2018) era muitas coisas e fez de tudo relacionado à sétima arte: foi diretor, técnico de som, montador, roteirista, ator, professor, cineclubista, crítico, editor da Revista de cinema, também o responsável pelo programa de TV Cine magazine, da Rede Minas, enfim, simplesmente vivia o cinema com intensidade e entrega raras.
Realizou três longas-metragems – Perdidos e malditos (1970), Homo sapiens (1983) e O circo das qualidades humanas (2000), em parceria com Milton Alencar, Paulo Augusto Gomes e Jorge Moreno. Deixou roteiros inacabados, projetos, centenas de críticas publicadas em jornais e revistas e o livro O cinema através de mim, em que relata, bem ao seu modo, com idas e vindas temporais, associações e digressões em que ele próprio assume: “Sou um narrador selvagem”. Editada pelo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, a obra traz casos, ficções e reflexões sobre sua própria vida e revela a visão de mundo impregnada de filmes, atores, amigos e, claro, boa dose de loucura. Ao final, revela claramente sua postura em relação ao livro e à vida: “E aí está. Leiam como puderem e, se for o caso, me corrijam. Me ensinem. O aprendizado é constante e incansável”.

Como Veloso cultivou com generosa entrega as conversas e as amizades, o Pensar convidou amigos e parceiros para registrar (um pouco) a múltipla figura desse “homem do cinema”.


Entrevista

Paulo Augusto Gomes//Diretor e crítico de cinema


Geraldo Veloso participou da realização de mais de 120 filmes e exerceu as mais variadas funções. Como você vê a paixão dele pelo cinema?

Num de seus depoimentos, Veloso disse que, nos últimos 50 anos, não tinha feito outra coisa senão se dedicar ao cinema. É a pura verdade. Dirigiu filmes, escreveu roteiros, montou longas e curtas, fez produção, gravação de som e fotografia. Era completo. Desde quando ele começou, como assistente de direção de Joaquim Pedro em O padre e a moça, de 1965, Veloso mergulhou de cabeça na aventura cinematográfica. Ele foi colega do Henfil no Colégio Estadual e, um dia, disse que estava largando tudo para viver de cinema. Segundo ele me contou, Henfil teria dito: “Você está louco! Vai apostar nisso?”. Logo o Henfil, que mais tarde também acabou virando cineasta, quando dirigiu Deu no New York Times.

Como foi o processo de realização de Perdidos e malditos?

Apesar de formado culturalmente pelo ambiente de Belo Horizonte, Veloso dirigiu Perdidos e malditos, em 1970, no Rio, para onde ele havia se mudado. Com atores e equipe técnica cariocas, apesar de a produção em si ser mineira, pois Veloso bancou o filme do próprio bolso. Foi todo filmado no Rio, com uma equipe pequena, em 16 milímetros, que depois Veloso ampliou para 35 milímetros, de modo a garantir a exibição comercial. Veloso adorava jazz e, na trilha sonora, usou um tema fantástico de Miles Davis, Miles runs the voodoo down, do disco Bitches brew. O filme começa com o ator Paulo Vilaça, o mesmo de O bandido da luz vermelha (1968), do Rogério Sganzerla, num lixão do Rio, vestido com a camisa do Vasco, time do Veloso, atirando num bando de urubus e gritando: “Casaca! Casaca! O time é mesmo da fuzarca!”. Aqui em Minas, Veloso era americano, integrando um time de gente do meio artístico, todos torcedores do Coelho. Voltando ao Perdidos e malditos, nele Veloso lança seu personagem alter ego: Almeida, o Imortal, que vamos reencontrar em Homo sapiens (1983), o segundo longa, vivido por ele mesmo, Veloso, e também no Circo das qualidades humanas (2000). Àquela altura, Veloso já tinha feito parte da produção de A vida provisória (1968), de Maurício Gomes Leite, e integrou a equipe que fez Bang bang (1971) – lindo filme de Andrea Tonacci, todo rodado em BH – como técnico de som. Era um filme que fez parte do que se rotulou como “cinema marginal”, carregado de humor, filmado em longos planos-sequência e nenhum movimento de câmera.

Como o filme foi recebido?

Naqueles anos de censura pós-AI-5, Perdidos teve distribuição precária, quase sempre em mostras especiais, que atraíam um público restrito. E coincidiu com a saída de Veloso para os Estados Unidos, onde viveu alguns anos, antes de se mudar para Londres (na Inglaterra, conviveu e foi amigo de gente como Caetano, Gil e Maria Gladys). Levou uma cópia do filme e marcou uma exibição numa sexta à meia-noite, em um daqueles cinemas especializados em lançamentos de obras marginais e exóticas, que então proliferavam em Nova York. Para chamar as pessoas, publicou um anúncio no Village Vanguard, no qual Perdidos foi apresentado com seu título americano, Almeida meets Mr. Good Vibes. Nunca perguntei isso a ele, mas tenho a nítida impressão de que foi ele mesmo quem criou esse título. A exibição foi um sucesso e Veloso me contou que o elogio que mais o deixou feliz foi ouvir de um anônimo americano que Perdidos lembrava muito o cinema do mestre Yasujiro Ozu. Hoje, o filme se tornou um clássico do cinema brasileiro. Para mim, um dos 10 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Homo sapiens é um filme muito pessoal. Como você o avalia na carreira de Veloso?

Homo sapiens nasceu de um projeto de Veloso com o grande Alberto Cavalcanti, para quem ele iria produzir O doutor judeu, que seria o último longa dele. A coisa foi andando, negativos foram comprados, mas desentendimentos com a Embrafilme interromperam o projeto. Veloso, de posse de várias latas de negativo virgem, decidiu então fazer um novo filme. Associou a crônica falta de grana com uma proposta estética audaciosa e, apenas com a família (sua mulher, Betty, e os filhos Jacira e Gonzalo – Lourenço ainda não era nascido), filmou Homo sapiens, no qual ele, Veloso, era novamente Almeida, o Imortal. Só que sem qualquer som; o filme começava com uma cartela: “Psiu! Um filme em silêncio”. Sempre que projetado, Veloso exigia um acompanhamento musical ao vivo. Fui a duas dessas sessões: a inaugural teve nosso amigo e crítico de cinema Marcello Castilho Avellar improvisando lindamente ao piano. Na segunda, foi o violão de Juarez Moreira. Filme bem-humorado, delicioso.

Como foi o projeto e a feitura de O circo das qualidades humanas, feito em parceria contigo?

O projeto do Circo nasceu por volta de 1998, quando Jorge Moreno, cineasta, trabalhava como diretor da Rede Globo Minas. Fui apresentado a ele por uma prima que trabalhava como sua secretária e Moreno me falou da ideia que tinha de produzir um longa-metragem a ser dirigido por quatro diretores. Ele seria um deles e me convidou para ser outro. Imediatamente lhe propus a inclusão de Veloso, como um terceiro diretor desse filme de quatro histórias, e a de Cunha de Leiradella como roteirista. Cada um de nós escreveu sua própria história e Leiradella se encarregou de misturar umas às outras, que era a nossa intenção. Foi um tempo longo de preparação, durante o qual eu, Veloso e os demais demos cursos, na busca de nomes para elenco e equipe técnica. Filmamos até rapidamente em Congonhas e, uma vez pronto, fomos com o filme ao Festival de Cinema de Recife. Veloso, que não filmava há algum tempo, ficou feliz com o resultado, e eu também. Desde então, ele trabalhou em dois roteiros que pretendia filmar: o primeiro, Alguns vieram correndo, foi concluído (mas não filmado). É uma releitura de uma obra-prima de Vincente Minnelli, Deus sabe quanto amei, com Sinatra, Dean Martin e Shirley MacLaine. Veloso, sempre brincalhão, dizia que seu título era a tradução literal do original americano, Some came running. Portanto, fazia questão de que, nos Estados Unidos, o filme fosse chamado de God knows how much I loved. O outro roteiro, As caixas de Pandora, ficou apenas nas anotações. E Veloso escreveu também, em parceria com seu primo Mário Alves Coutinho, Viagem dentro da noite, que também não chegou a ser filmado. Para terminar, gostaria de lembrar um curta que ele fez em 1979, com patrocínio da Funarte, quando ele e eu tivemos nossos projetos premiados. Fiz meu segundo curta-metragem, Os verdes anos (1979), sobre a revista modernista de Cataguases, e Veloso dirigiu Toda a memória das Minas (1978), no qual usou filme vencido, que dá uma sensação de antiguidade ao que é mostrado. O filme aborda os contadores de “causos” mineiros – e Veloso sabia bem do que estava falando, pois sua família é cheia desse pessoal fantástico, sempre com histórias extraordinárias para contar.