Literatura de Rodrigo Lacerda oferece a elegância da incerteza

Em crítica, professor Sérgio de Sá traça um panorama da obra do escritor a partir de seu novo livro de contos, 'Reserva natural'

04/05/2018 14:43

Wikimedia
Tela 'Leão faminto luta contra o antílope' (1905), de Henri Rousseau (foto: Wikimedia)
Sérgio de Sá/Especial para o EM
 

Em seu primeiro livro de narrativas curtas (Tripé, 1999), Rodrigo Lacerda enxergava na estante nova um santuário ecológico, “onde as aves se reencontram após as migrações, cada espécie chegando de um lugar diferente do planeta”. Os livros-pássaros iam se acomodando no espaço que lhes cabia na imaginação e na realidade, em lugares para pousar e repousar. Na arrumação, havia “conforto”, apaziguamento, “segurança”.

Quase 20 anos depois, a natureza se apresenta em Reserva natural como iminência de um desastre. Só que muito mais humano do que natural, menos catastrófico do que plasmado em evidências mínimas. Nos cinco contos da primeira parte da obra, “Território”, o leitor fica sempre à espera de um tsunami moral. Lacerda, autor em extinção no Brasil contemporâneo, prefere a folha que suaviza a floresta com elegância.

As previsões que o texto abre para desdobramentos e desfechos não se concretizam aos olhos nus de quem lê. As duas últimas frases do excelente Santuário da Lagoinha dão conta disso: “Elisa teve um pressentimento. E deu um passo para trás”. No campo dos relacionamentos entre homens e mulheres, nem tudo é como o narrador pode (ou quer) deixar transparecer. Nem tudo resulta, como haveria de convir, em nocaute.

Porque Rodrigo Lacerda permanece, sem dúvida, um autor generoso. A “reserva” no sentido de “dissimulação e recato”, soprada pela escritora Adriana Lisboa na orelha do volume, diz muito de uma postura equilibrada. A ação das tramas aqui está dentro do alcance humano, com seus erros e acertos. Há uma tensão – amorosa, passional e sexual – que se dissipa na concretude do tempo real, da existência como a vivemos.

No conto-título, que abre o livro e agrega um pouco de todas as histórias, a doença terminal mistura biografia com biologia, o que se repetirá sintomaticamente na narrativa final. A escrita da memória se recompõe ao som das pedras de gelo no copo etílico. Entre encanto e desencanto, o narrador excursiona por uma natureza tão espetacular quanto discreta. Olha, detalha e recua, enquanto busca domar dramas pessoais e familiares.

Os cinco contos da segunda parte, Fauna, formam grupo mais desigual, em bom e mau sentido. Há momentos de gargalhadas abertas nos pastiches de “Concurso”, que toca a paródia de modo voluntário. As intenções biográficas de candidatos a escritor entrecruzam os desejos literários do próprio autor-jurado, pressionado pelo prazo de uma estética em interrogação: o que é escrever ficção nesse imenso e desorientado país?

Se as respostas fragmentadas de Concurso resultam em divertido painel, a criação de tipos perde força à medida que o livro pega a reta final. O traficante de Movimento e a gorda de Paraíso ainda garantem passeio curiosíssimo pela linguagem da nossa vida animal. A memória deste leitor é remetida ao bom Rubem Fonseca. Mas o morador de rua e o cientista das duas últimas histórias parecem forçar a amizade.

Fiquemos, assim, na estante que comporta os contos de engano. A paquera, o namoro e o casamento, com a fidelidade sempre por um fio de frase, constituem territórios ameaçados pela cultura, pela ciência, pela tecnologia. O leitor sabe da contradição do título: se é reserva, deixou de ser natural. Nessa espécie rara de enquadramento, a literatura de Rodrigo Lacerda nos oferece uma lição deliciosamente incerta.

Sérgio de Sá é doutor em estudos literários pela UFMG, professor no Departamento de Jornalismo da Universidade de Brasília e autor do livro A reinvenção do escritor – literatura e mass media.