Disciplina na UFMG debate as estruturas segregantes e discriminatórias

Chamada "Casa grande", aula fala sobre preconceitos e a divisão de classes

por Larissa Ricci 01/09/2017 09:12

 

Reprodução/Debret e o Brasil
Obra de Jean-Baptiste Debret retrata cena de uma ceia em família no Brasil do século 19 (foto: Reprodução/Debret e o Brasil)

O quarto de serviço, popularmente chamado de quarto de empregada, faz parte da tradição arquitetônica brasileira: um cômodo pequeno, uma separação evidente que demarca a “área de serviço” e a “casa principal”. Essa não seria mais uma das marcas da mentalidade escravocrata do nosso país? No fim de julho, alunos do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) colocaram esse costume em questão e criticaram um trabalho da disciplina chamada Casa grande, que consistia em projetar um imóvel de alto padrão com espaço separado para empregados. Por meio das redes sociais, uma nota foi publicada pelo diretório acadêmico da Escola de Arquitetura (EAD) da UFMG, na qual os estudantes consideraram que o projeto “incorpora a senzala e reforça os moldes de dominação em pleno século 21”. A reivindicação colocou a prática em discussão e dividiu opiniões – a matéria publicada pelo Estado de Minas viralizou em 27 de julho, e teve mais de 90 mil compartilhamentos.

No trabalho proposto, o professor Otávio Curtiss previa que os alunos deveriam se reunir em duplas para fazer estudo preliminar e anteprojeto de uma residência de 800 metros quadrados em um terreno de 4 mil metros quadrados no condomínio Vale dos Cristais, em Nova Lima (Grande BH). O projeto do imóvel, com cinco suítes, incluía área de serviço com cozinha, lavanderia, despensa, depósito, cômodos técnicos e quartos e banheiros para oito empregados. Para os estudantes, o caso ilustra como “a estrutura escravocrata ainda segue presente no cotidiano brasileiro”. Já para o docente, “os alunos não são obrigados a cursar essa disciplina para obter o grau de arquitetos”.

O programa da disciplina já chama a atenção pelo nome, pelo empréstimo poético – proposital ou não – da obra de Gilberto Freyre Casa-grande & senzala (1933). A professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG Maria Antonieta Pereira acredita que “o problema está no conteúdo e na visão de mundo que se oferece ao estudante. Seria possível aos estudantes e professores projetarem uma “casa grande”, que justamente por ser grande pudesse misturar patrões e empregados, sem lugares de distinção de raça, classe ou cor de pele?”.

O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) Caio Santo Amore explica que “a arquitetura, o urbanismo e a organização dos edifícios e das cidades sempre reflete a estrutura social que sustenta aquele mundo”. Ele argumenta que, muitas vezes, somos levados a naturalizar essas relações e as determinações da sociedade. “A naturalização das relações de classe, ou melhor, da dominação de uma classe dotada de poder político e econômico sobre outra, que vende sua própria força de trabalho, é mais evidente nos espaços privados, no lugar da moradia, mas está presente também nos demais ambientes construídos que frequentamos cotidianamente”, pontua.

Santo Amore exemplifica descrevendo a estrutura de um hotel, em que os espaços de serviços e os funcionários ficam isolados da área dos hóspedes. “Somos levados a sentir e a pensar que num espaço onde estamos para descansar ou para nos divertir, não há trabalho.”

Ele estende esta lógica para outros ambientes. “Hospitais, escolas, shoppings, teatros, restaurantes, clínicas e até uma simples lojinha, geralmente, têm, lá no fundo, seus estoques, seus escritórios e áreas administrativas, seus espaços produtivos e também áreas de estar dos funcionários: vestiários, lavanderias, copas, banheiros, áreas de descanso, ‘fumódromos’.”

Apesar de presente em qualquer edificação, o quarto de empregada leva esta lógica para o âmbito doméstico. “Uma casa de uma pessoa ou uma família rica, que é servida a todo momento, vai requerer uma série de ambientes de serviço, que são frequentados, sobretudo, por empregados”, diz o professor.

A historiadora Mary del Priore afirma que, no passado, os serviçais eram obrigados a estar próximos de seus  senhores para servi-los com mais eficiência e, por isso, eram acomodados nas proximidades de onde exerciam suas funções. Segundo ela, apenas “em meados do século 19, o crescimento da cultura do café e a existência de manuais para cuidar bem dos escravos introduziu as senzalas como as conhecemos: um prédio com muitos cômodos em linha, separados por meias-paredes, com uma só porta de saída para cada quarto, onde dormiam casais ou escravos jovens do mesmo sexo. A preocupação em oferecer ‘certo conforto e intimidade’ aparece, pois o escravo se tornara uma mercadoria cara”, explica Priore.

Com o fim da escravidão, as criadas e criados – muitos brancos e estrangeiros – ofereciam seus serviços e, uma vez contratados nas cidades, escolhiam dormir dentro ou fora da casa dos patrões. “O quarto de empregadas surge com o crescimento das cidades e a migração campo-cidade, que teve forte impacto entre os anos de 1970 e 1980”, diz Priore.

A relação entre a arquitetura e a desigualdade social é também colocada em primeiro plano no filme Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert. Val, interpretada pela atriz Regina Casé, deixa Pernambuco para trabalhar como doméstica em uma casa de família de classe alta na capital paulista. O enredo é construído a partir da arquitetura da casa, contraste entre o amplo e espaçoso quarto de visitas – sempre desocupado – e o minúsculo quarto de empregada que Val habita. A personagem vê sua vida mudar quando a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), vem visitá-la e coloca em questão todos esses costumes. A filha da doméstica não quer seguir a mesma profissão da mãe, mas sim prestar vestibular para arquitetura.


FUTURO 

O aspecto geracional da profissão começou a mudar somente a partir dos anos 2000, com a implementação de políticas públicas de distribuição de renda e de maior acesso aos cursos de ensino superior. Mary del Priore aponta que a tecnologia e novos hábitos de consumo também causaram impacto na presença dos empregados domésticos nas casas de família. “Quando a indústria de alimentos congelados e o freezer se instalaram nos anos 1980, muita gente deixou de ter cozinheira. Atualmente, com um número imenso de mulheres chefes de família, trabalhando fora, as refeições não são mais feitas em casa, mas em restaurantes a quilo”, pontua Priore. Tais mudanças de hábitos e consumo estão transformando o quarto de empregadas num quarto de guardados e depósito.

De acordo com Caio Santo Amore, em apartamentos de classe média em sociedades menos desiguais é comum que máquinas de lavar e secar roupas estejam junto ao fogão, forno, geladeira e máquinas de lavar louças. “Não como um ambiente de serviço separado. São sociedades em que praticamente não existe essa figura do trabalhador doméstico, exceto faxineiros e faxineiras eventuais, muitas vezes estudantes que podem fazer esse serviço à noite ou em fins semana como forma de complementar renda”, acrescenta Caio.

Após a chuva de críticas, a Escola de Arquitetura da UFMG decidiu que a disciplina Casa grande deverá ser revista. O professor Guilherme de Vasconcelos, presidente da Câmara Departamental do Departamento de Projetos (PRJ) da Escola de Arquitetura, se desculpou por meio de nota e afirmou que “o racismo denunciado na nota coletiva de repúdio nos faz refletir sobre a disciplina, tendo em vista que o termo casa-grande remete à carga histórica e sua correlação com a senzala, o que é agravado ao ser associado com o programa proposto”.