Meritocracia: o que as grandes personalidades do mundo pensam sobre?

A teoria tem despertado acalorados debates entre seus defensores e críticos, mas a discussão esconde problemas maiores que dizem respeito a direito e acesso a educação

por Rubens Goyatá Campante 14/07/2017 10:15

Arte EM
(foto: Arte EM)
Merecer ou não merecer as coisas da vida é uma avaliação que as pessoas sempre fizeram, em relação a si e aos outros, com a régua da noção de justiça, tão fluida, mas onipresente na experiência humana, a medir a retribuição devida ou indevida ao valor dos indivíduos. Tal avaliação baseou-se, durante muito tempo, em considerações tanto racionais quanto místicas e religiosas.

Segundo Max Weber, a religiosidade primitiva caracterizava-se pela afirmação da sorte, da força e da felicidade. Considerava-se que os infortúnios eram justos, de alguma forma misteriosa e metafísica, e que quem sofria fazia por merecer, assim como quem se deleitava. A transformação religiosa fundamental surgiu, afirma ele, quando se começou a duvidar dessa justiça, ou quando tal justiça teve de ser buscada e percebida de maneira mais elaborada, menos pronta, pois muitas vezes os bons e justos eram os que sofriam, enquanto os maus e injustos prosperavam.

Surgiu o problema da teodiceia, da justiça divina (theós – Deus, dikê – justiça), que consiste “na questão de como pode um poder, considerado como onipotente e bom, ter criado um mundo irracional, de sofrimento imerecido, de injustiças impunes, de estupidez sem esperança. Ou esse poder não é onipotente, nem bom, ou, então, princípios de compensação e retribuição totalmente diversos governam nossa vida –  princípios que podemos interpretar metafisicamente, ou mesmo princípios que escapam para sempre à nossa compreensão”. Essa experiência da irracionalidade do mundo, em termos de justiça e de merecimento para as pessoas, tem sido a força propulsora de toda evolução religiosa, assegura Weber.

No mundo moderno, a questão do “merecer”, tão fundamental nas crenças religiosas, ganhou, com a ideologia contemporânea do liberalismo, um encaminhamento supostamente mais racional e universal. Transformou-se no que se chama hoje de “meritocracia” – literalmente, o poder dos que merecem. O poder não seria mais oriundo do nascimento, ou da força bruta, ou da sorte, ou de desígnios divinos insondáveis, mas do merecimento do mais capaz e esforçado.

Quem defende a meritocracia afirma que a expansão da educação e o estabelecimento, no sistema de ensino, no mercado e no Estado, de critérios universalistas de seleção individual fizeram com que a igualdade de oportunidades se oferecesse a todos, e que, a partir daí, o esforço, a disciplina, e a inteligência de cada um são o que definem seu sucesso ou fracasso. E não haveria injustiça maior do que o poder público interferir nos resultados dessa competição “justa” e retirar recursos dos “ganhadores”, ou mesmo ajudar os que, afinal, afundariam no fracasso (e na pobreza ou miséria, tantas vezes) por sua própria responsabilidade. Ao Estado caberia assegurar a igualdade de partida, de oportunidades, jamais a igualdade ao fim da “disputa”.

Realmente, são positivos o aumento das oportunidades de educação, o fim de privilégios de nascença, a substituição, no acesso ao serviço público, do empreguismo e do nepotismo por concursos impessoais e universais. E certamente, nos tempos modernos, a competência individual tem mais peso na trajetória de uma pessoa que no mundo pré-moderno, da cultura do favor, do particularismo.

Mas é um exagero, a partir daí, afirmar que as sociedades capitalistas modernas sejam “meritocráticas”, no sentido de justas e virtuosas, já que, nelas, os ricos e prestigiados merecem plenamente sê-lo.

Examinemos, em primeiro lugar, a questão do esforço, da disposição ao trabalho. “Quem trabalha pesado se dá bem na vida e quem malogra é vagabundo”, dizem alguns. O economista Marcelo Medeiros, no livro O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade brasileira, analisou os fatores que levam à acumulação de riqueza. O esforço em si, a quantidade de tempo de trabalho, tem quase nenhuma influência: há ricos, remediados e pobres que trabalham muito; e ricos, remediados e pobres que trabalham pouco ou nada. Mas o tipo de trabalho, qualificado ou não, fecundado ou não pela boa formação educacional, importa.

A combinação, então, de qualificação e empenho seria a fórmula garantida de vitória na “corrida meritocrática”? Até certo ponto. Não completamente. O livro de Medeiros, que focou os “super-ricos” brasileiros, traz algo curioso: a partir de determinada posição na escala de riqueza, a educação deixa de ter correlação com esta. De forma geral, até o patamar da classe média alta, quantidade e qualidade de educação têm relação expressiva, sim, com a posição do cidadão na pirâmide social. Porém, os níveis gerais de educação dos bilionários “não estão” acima daqueles de indivíduos de classe média alta, por exemplo, embora os bilionários tenham rendimentos várias vezes maiores que estes últimos.

A explicação para esses rendimentos altíssimos: a proximidade, legal ou extralegal, com o Estado, e a rede específica de relações pessoais e familiares da pessoa – nada a ver com “desempenho meritocrático”. Ou seja, a educação é um dos fatores importantes para a colocação social, mas, por si só, não garante o ingresso no diminutíssimo e poderosíssimo clube dos magnatas.

Além disso, o sistema de ensino está longe de ser homogêneo e neutro como se apregoa. No Brasil, com a diferença brutal de qualidade entre a escola pública, para onde vão os filhos dos pobres, e as escolas privadas, onde estudam os filhos dos ricos, esse é um fato incontestável. No entanto, até países com ensino básico universal não estão livres de problemas. Em muitos deles, apesar de o ensino básico ser público, as boas universidades, o ensino superior – principal passaporte à riqueza e ao status –, é um sistema, em geral, privado, caro e restrito. E no próprio ensino público a suposta imparcialidade de seleção individual é questionada.

Já nos anos 1960, Pierre Bourdieu assegurava que o sistema escolar não apenas falhava como agência de justiça social como reproduzia e legitimava a estratificação capitalista. Teoricamente, as escolas selecionariam os indivíduos com base estrita na capacidade e esforço particulares, mas o faziam através de um “currículo oculto”, um conjunto de atitudes e normas implícitas que naturalizava as representações culturais das classes dominantes, ignorava as diferenças e necessidades dos alunos dos grupos desfavorecidos, e fazia com que estes aceitassem as regras da elite – uma “violência simbólica”, dizia ele, tácita, porém eficiente.

Um pouco antes, em 1958, Michael Young, um militante trabalhista inglês, tinha feito crítica semelhante, e ainda cunhara o termo “meritocracia” – num sentido negativo, completamente diferente do que tem hoje. Seu livro The rise of meritocracy (A ascensão da meritocracia) é uma obra de ficção em que descreve a Inglaterra em 2033: uma sociedade puramente tecnocrática, dirigida e dominada por uma minoria de indivíduos absolutamente privilegiados em função de seu desempenho formal e educacional, identificados e selecionados pelo sistema escolar. Como todas as outras elites, a elite meritocrática descrita no livro fecha as portas da ascensão logo que alcança o topo social: além do status e do poder, querem a oportunidade de definir, em proveito de seus filhos, o modo de seleção.

O livro é um protesto contra o sistema educacional inglês da época, supostamente comprometido com a igualdade de oportunidades, mas que, segundo ele, perpetuava a desigualdade ao relegar as crianças pobres a escolas de segunda categoria. É, sobretudo, um alerta sobre o fato de que o parâmetro do mérito educacional, desacompanhado de outras considerações éticas e substantivas, pode, de um reclamo original de igualdade, converter-se numa forma aguda de desigualdade.

A questão, para Young, é que o mérito, a qualidade de um ser humano, está muito além daquilo que é formal e costumeiramente mensurado pelo sistema educacional – especialmente por um sistema educacional burocraticamente dominado pelas orientações de eficiência produtiva e tecnológica do mundo moderno.

Em 2001, pouco antes de falecer, Young ironizou, num artigo, o significado que o então premiê britânico Tony Blair – ao prometer fazer da Inglaterra a “terra da meritocracia” – dava à palavra que ele inventara. Apostou que o dirigente não lera seu livro e lembrou que a representatividade e a liderança sociais exigem várias outras qualificações além de diplomas e certificados, citando o exemplo de Aneuri Bevan, deputado e ministro, criador do sistema de saúde inglês, que, por causa da pobreza, só tinha estudado até os 13 anos de idade.

Entretanto, digamos que não só o sistema educacional, mas também o chamado “mercado de trabalho” lograssem se fazer realmente abertos aos talentos de pessoas de todas as classes sociais, eliminando quaisquer diferenças, os “currículos ocultos”, as referências únicas tecnicistas e burocratizantes, os constrangimentos implícitos e ideológicos. Com essa verdadeira façanha, estaria garantida, finalmente, a tão almejada “igualdade de oportunidades?” Não, pois permaneceria outro obstáculo crucial: o fator herança.

Tornar-se proprietário de bens e direitos porque seus pais o eram antes de falecer é algo visto com naturalidade entre nós. Todavia, nas sociedades modernas, liberais, individualistas, as pessoas de nossos pais não se confundem com a nossa pessoa: se cometerem um delito, não iremos presos por conta disso; se tiveram algum direito, não poderemos usufruí-lo automaticamente em lugar deles. A família não é, como na Antiguidade e no Medievo, uma entidade quase monolítica. Na esfera política, a transmissão hereditária de poder é vista como anomalia, coisa superada do passado.

Como disse o filósofo Bertrand Russell: “É curioso que a rejeição do princípio hereditário na política quase não tenha tido efeito sobre a esfera econômica. Ainda achamos natural que uma pessoa deva deixar suas propriedades a seus filhos, isto é, aceitamos o princípio hereditário quanto ao poder econômico, embora o rejeitemos quanto ao poder político”.

O instituto da herança não é, porém, somente uma continuação mal percebida da velha tradição de transmissão hereditária de poder – no caso, de poder econômico. Ele é um fator poderoso de “desigualdade” de oportunidades. Um fator que, como adverte Thomas Pikety em seu livro O capital no século 21, tem se acentuado, nas últimas décadas, quando a taxa de retorno do capital, particularmente do capital financeiro-especulativo, tem crescido bem mais que as rendas nacionais, ou as rendas per capita, ou a produtividade, em que os impostos sobre as heranças têm, geralmente, diminuído, e a desigualdade social aumentado. Junto a este capitalismo rentista, está retornando, adverte Pikety, o capitalismo “patrimonial” do século 19, com suas enormes disparidades de riqueza, com a reprodução do grande capital rentista quase automática, e transmitida hereditariamente – aquela sociedade descrita nos romances de Balzac e Jane Austen, em que as personagens alcançavam o topo social não por uma vida de estudos e trabalho, mas pela herança ou pelo casamento com um cônjuge rico, vias que garantiam o usufruto fácil de rendas altíssimas.

Se essa advertência de Pikety (com a qual as conclusões de Medeiros convergem) faz sentido, como fica o discurso meritocrático? Antes de responder, pondere-se que estudos e trabalho não são absolutamente inúteis, em termos de ascensão social – só não garantem, por si, o ingresso no olimpo dos bilionários. Porém, o que importa ressaltar é que discursos servem não só para explicar a realidade, mas para justificá-la e, ao fazê-lo, influir na própria realidade.

E a explicação/justificação/influência do discurso meritocrático tem outras consequências desagradáveis, além de chancelar a disparidade de poder político, econômico e ideológico. Primeiro, costuma medir o valor das pessoas pela simples régua do êxito material. Segundo, “diz” para os que não alcançaram esse êxito que eles são os únicos e inteiros responsáveis por isso – uma meia verdade capciosa, um reducionismo injusto, pois nossas vidas sempre são uma mescla de capacidades e ações individuais, de um lado, e condições sociais, de outro. Terceiro, instiga as pessoas a, na busca desse êxito, mergulhar em níveis exagerados de competitividade e autoexigência, rotas certas para tensões internas e frustrações, que contribuem para a atual epidemia de transtornos mentais, como ansiedade, depressão etc.

Não se trata, então, de forma alguma, de negar o valor, para o indivíduo e a sociedade, da educação, do trabalho, da perseverança na busca de propósitos pessoais; ou a importância, para as instituições, de critérios objetivos de seleção de pessoal. Porém, se houvesse, realmente, as mesmas oportunidades disponíveis a todos – o que não há – tais oportunidades deveriam ser usadas mais para o desenvolvimento da pessoa em si e da sociedade que para se competir o tempo todo com os outros. E, se competição houver, não só que seja justa, mas que o mérito ou demérito nela, por maiores que sejam, não comprometam a dignidade intrínseca a que todo ser humano faz jus. Pois falta de respeito, ninguém merece!



“Compelidas a se submeter aos direitos dos mais numerosos, as classes que se autodenominam como classes altas só podem conservar sua hegemonia política ao evocar os direitos do mais capaz.”
Émile Boutmy (1835-1906), criador da Sciences Po, instituto francês de estudos políticos e sociais


“A meritocracia que nós liberais defendemos é esta: ausência de privilégios, ausência de tratamento diferenciado para igualar desiguais, em síntese, ausência de interferência do governo para reparar supostas ‘injustiças’, derivadas exatamente do fato de que, na vida, os resultados não têm necessariamente relação com as nobres virtudes.”
João Luiz Mauad, administrador de empresas, articulista e membro do Instituto Liberal


“A revolução educacional sintetiza os temas da revolução industrial e da democrática: igualdade de oportunidades e igualdade na cidadania. Cada vez mais existem oportunidades para que os relativamente desfavorecidos consigam vencer através da seleção, extraordinariamente regulamentada por normas universalistas.”
Talcott Parsons (1902-1979), sociólogo norte-americano


“É preciso manter um ceticismo saudável em relação às virtudes da meritocracia assente apenas na realização acadêmica. Uma sociedade assim não é a resposta às nossas preces por justiça e decência ou até por simples decisões sensatas. Quando se trata de liderança, estão envolvidas muitas outras qualidades além do grau acadêmico. No que toca às instituições, não devemos permitir que qualquer critério único determine quem chega ao topo e quem não chega. A diversidade é melhor garantia de abertura que o mérito, e a abertura é a verdadeira marca de origem de uma ordem liberal.”
Ralf Dahrendorf (1929-2009), cientista político alemão


“A Grã-Bretanha da elite acabou. A nova Grã-Bretanha é uma meritocracia.”
Tony Blair, ex-primeiro ministro inglês.


“Se tu acha que não é o que você merece não esquece que nem sempre prevalece o justo.”
Class A, grupo de rap brasileiro


“Somos todos geniais. Mas se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em árvores, ele passará a vida acreditando ser estúpido.”
Albert Einstein (1879-1955), físico


“Precisamos estabelecer um novo sistema de imigração para a América baseado no mérito, e não em imigrantes desqualificados.”
Donald Trump, presidente do Estados Unidos


“Minha máxima sempre foi que as carreiras devem estar abertas aos talentos, sem distinção de nascimento ou fortuna.”
Napoleão Bonaparte (1769-1821), estadista e general francês

- “Nos Estados Unidos, na França e na maior parte dos países, o discurso de glorificação do modelo meritocrático nacional raras vezes se baseia num exame atento dos fatos. Trata-se, mais frequentemente, de justificar as desigualdades existentes.”
Thomas Pikety, economista e autor do livro O capital no século 21

“Ninguém merece!”
Gíria brasileira

 

* Rubens Goyatá Campante – Doutor em sociologia pela UFMG, pesquisador da Escola Judicial do TRT – 3ª Região.