Lançamentos de obras de Herta Müller reafirmam posição singular da escritora romena

por João Paulo 11/01/2014 00:13
Hector Guerrero/AFP
Herta Müller torna universal sua experiência humana e política com a ditadura Ceauscescu (foto: Hector Guerrero/AFP)

“Quando ficamos em silêncio nos tornamos desagradáveis, quando falamos, nos tornamos ridículos.” A abertura do romance Fera d’alma, de Herta Müller (e também título de um de seus ensaios mais conhecidos), é quase um programa de vida. Sua obra caminha no fio estreito do incômodo e da busca de sentido para expressar um vazio potente. Às vezes o silêncio é eloquente, por vezes as palavras são inúteis.

Ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2009, e até então conhecida no Brasil apenas pelo romance O compromisso, em tradução de Lya Luft, Herta Müller vem tendo sua obra traduzida no país desde então, revelando uma criação que desafia as classificações. Só no ano passado, foram lançados três livros, os romances Fera d’alma e O homem é um grande faisão no mundo, e a coletânea de ensaios O rei se inclina e mata.


Em contos, poemas, romances e ensaios, o leitor se defronta sempre com uma escrita de fundo autobiográfico, feita de imagens ricas e pouco usuais, num lirismo sem espaço para a leveza e com a marca política indisfarçada da luta contra o poder. Herta Müller parece ter inventado um estilo singular para dar conta de uma experiência singular, ainda que carregue em certa medida uma vivência coletiva de exclusão, violência e mordaça.

A obra da escritora Herta é uma forma de expressão da vida da mulher Herta. A linguagem, nesse sentido, é sempre a personagem central. Tudo, na existência e nos livros, caminha entre os polos da expressão da revolta e do mutismo da dor. As circunstâncias familiares, sociais e políticas são o ambiente moral da literatura da escritora.

Herta nasceu em Nitzkdorf, na Romênia, em 1953. A região é habitada pela minoria de origem alemã, o pai da romancista foi soldado da SS nazista e a mãe deportada pelo regime comunista para a ex-União Soviética, onde passou cinco anos num campo de trabalhos forçados. Ainda jovem, Herta foi perseguida pela ditadura de Nicolau Ceauscescu por se recusar a colaborar com o serviço secreto. Teve suas obras proibidas, foi expulsa de vários empregos e emigrou para a Alemanha em 1987. A vida no exílio não foi nenhuma primavera.

Os fatos externos da vida da escritora têm dupla repercussão em sua obra. Por um lado, são o objeto da narração, com personagens que parecem emergir de suas experiências de descentramento e absurdo: a perseguição política, a falta de liberdade, a morte com contorno inevitável de todas as tentativas de levar a vida adiante. Por outro lado, sua linguagem também é sintoma do mesmo estranhamento. Herta, como outros centro-europeus não alemães, escreve em alemão (Kafka, Celan e Canneti), o que parece dar um peso de escolha a cada palavra.

A Romênia é um país de inteligência exilada: Ionesco, Eliade e Cioran, cada um na sua especialidade – teatro, história das religiões e filosofia –, tiveram que abandonar o país e se realizar em outros contextos e idiomas. Não é um acaso que tenham, como Herta Müller, se tornado estilistas poderosos em francês e inglês, além de espalhar rigor, argúcia, fantasia e pessimismo pelo mundo. Sem ter para onde voltar, sem se sentir em casa no mundo. São todos meticulosos, rigorosos, classificadores. Há uma erudição estupenda na obra desses romenos, como se tivessem que inaugurar o mundo a partir de suas próprias mentes.

Mesmo tendo o alemão como língua materna (Herta era de família de alemães e aprendeu o idioma antes mesmo do romeno), o estilo da escritora parece evidenciar a todo momento que a linguagem não é um acaso, uma contingência, mas uma escolha. Como se fosse quase uma segunda natureza, um modo de chegar ao mundo. Por isso é tão comum na prosa de Herta Müller o peso da poesia, a evocação, o uso de metáforas duras. Há algo por trás da linguagem, que é o mundo, que não se dá facilmente à expressão. É possível sentir o trabalho cuidadoso em cada sentença. Não é fácil ler Herta Müller.

Aldeia e cidade


Há ainda outra dualidade presente nas obras da escritora, que, de certa maneira, colore todas as suas narrativas, das autobiográficas às ficcionais: a separação entre a vida da aldeia e o contexto urbano. No vilarejo da infância o silêncio domina, parece que as palavras não são necessárias, as pessoas se preservam e parecem saber de antemão o que o outro tem para dizer. Na cidade, por sua vez, a palavra é franca, mas parece esvaziada de sentido para dar lugar a uma exposição verborrágica do ego, que vai da lamúria à euforia. Muito barulho por nada. Pelo menos nada de bom.

E não há momento mais expressivo para esse teatro da palavra e do silêncio do que os interrogatórios políticos da Securitate do ditador Nicolau Ceauscescu, sempre presentes nas narrativas de Herta. Sabe-se que o interrogador, como o torturador, precisa da palavra de sua vítima, subjuga-o pelo discurso e pelo assentimento. Talvez por isso o silêncio, a coragem de não responder, a dissimulação da fala em vazio seja tomada como a máxima afronta. Herta sofreu na carne esse jogo cruel, pagou com a perda da liberdade e depois com o exílio. Sua literatura, de certa forma, inverte o jogo. Ela se assenhora das palavras.

A obra de Herta Müller vai, dessa forma, percorrendo três estações: a paisagem da infância na aldeia, marcada pela percepção da simpatia pelo nazismo por parte da comunidade alemã, que é a sua, orgulhosa de sua distinção e preconceito; a fase da ditadura de Ceauscescu, com seu aparato secreto de vigilância e submissão, implacável com todos que se recusassem a entregar a alma ao regime; e por fim, na Alemanha, a partir de 1987, como escritora e professora assimilada, mas ainda assim vista com olhos de exclusão. Herta nunca se sentiu em casa, suas narrativas são a expressão desse exílio permanente. No comunicado emitido pela Academia Sueca na ocasião da escolha do Nobel de 2009, o secretário se referiu à “paisagem de despatriação” e “densidade da poesia e sobriedade da prosa”. Herta Müller só tinha as palavras e o silêncio. Precisou de ambos para sobreviver.

Trecho
de 'O rei se inclina e mata', de Herta Müller

“Calar não é uma pausa durante a fala, mas algo por si só. Conheço de casa, entre os colonos, um modo de viver que não tinha por costume o uso de palavras. Quando nunca se fala sobre si mesmo, não se fala muito. Quanto mais alguém fosse capaz de se calar, tanto mais presença ele possuía. Como todos na casa, também eu havia aprendido a interpretar nos outros as contrações dos vincos do rosto, das veias da garganta, das narinas ou dos cantos da boca, do queixo ou dos dedos e não esperar por palavras. Entre calados, os olhos de nós todos haviam aprendido qual era o sentimento que o outro carregava consigo pela casa. Ouvíamos mais com os olhos do que com os ouvidos.”


Dos livros de Herta Müller lançados em 2013 no Brasil, o que chama mais a atenção é 'O rei se inclina e mata' (Editora Globo), a primeira coletânea de ensaios da escritora traduzida no Brasil, em trabalho exemplar de Rosvitha Freiesen Blume, uma especialista na obra da romena. A tradução preserva tanto a correção e fluidez da prosa, como permite ao leitor sentir o travo próprio do estilo da autora, que parece obrigar a uma leitura mais lenta e meditada. Além disso, o hábil jogo de linguagem e metáforas é preservado em toda a sua crueza e por vezes espantosa poesia.

Ensaísmo biográfico, o livro reúne nove textos, que têm sempre a linguagem como ponto de partida. Como dizer a dor? De que forma figurar a falta de liberdade? Como encontrar o tom certo para falar da violência psicológica? Como adequar a palavra e a coisa a que ela se refere? Herta Müller conhece as limitações da linguagem à medida que a vida se torna mais dura. Na infância, ainda na aldeia, “na língua do vilarejo”, as palavras “pousavam em todas as pessoas ao meu redor, diretamente sobre as coisas que elas designavam”.

Os títulos dos ensaios já dão uma amostra do estilo da escritora. Por eles, não se adivinha do que se trata, mas lidos os textos, se tornam referências poéticas que parecem condensar a experiência transposta em palavras: “Em cada língua estão fincados outros olhos”, “Pegar uma vez – largar duas”, “O olhar estranho ou a vida é um peido na lanterna”, “Quando algo paira no ar, em geral não é nada bom”.

Nos ensaios, a escritora fala sobre a comunidade alemã de sua região, sobre interrogatórios, sobre o hábito nazista de raspar os cabelos, sobre os castigos infantis, sobre a perda de amigos, sobre a perseguição política, sobre os loucos, sobre a vigilância que não permite intimidade, sobre a vida na Alemanha. Ela se impressiona com a força que o passado vai ganhando à medida que fica mais distante, fala de Romênia como um território ao mesmo tempo do passado e do presente: “Ouvi falar que o suco de frutas de Timisoara é gostoso. Não vou degusta-lo, senão acabo bebendo junto um medo que eu não tenho mais”.

Já os dois romances trazem, com estruturas distintas, a mesma atmosfera e os mesmos demônios. Em 'Fera d’alma' (Editora Globo), sem divisão de capítulos, pequenas narrativas vão se encadeando para criar um painel de quatro vidas unidas em torno da mesma situação de horror. As situações lembram a vida de Herta. A narradora é uma escritora e tradutora, filha de pai nazista, que com três amigos desafia o regime romeno, sofrendo por isso as consequências.

A narradora emigra com um companheiro para a Alemanha, de onde não fogem da perseguição política nem de seus fantasmas pessoais. Os outros dois jovens ficam no país e passam por situações duras e diferentes provações. Como indica o título, cada personagem se assemelha a um animal, o que vai ditar se comportamento. Aliás, para Herta Müller, controlar comportamento parece ser a sina das ditaduras, com seu poder de internalizar o mal, a mais eficiente de todas as armas. Não há liberdade possível quando se ama o ditador.

Amor e morte

Já 'O homem é um grande faisão no mundo' (Companhia das Letras) tem outra forma, embora com a mesma circunstância política. Aqui, ambientado num vilarejo, a família Windisch espera a concessão dos passaportes para a emigração para a Alemanha. O documento só será conseguido depois que uma das personagens se prostitui. A fuga, como se vê, não traz liberdade. O título do livro se refere a uma história que destaca que os homens, como os faisões, chamam os predadores com suas cores, para que com isso as fêmeas possam salvar a ninhada. No romance, contudo, ninguém se salva. A luta pela liberdade se dissolve na desesperança.

Com pequenos capítulos, em estilo fragmentário e atravessado o tempo todo por metáforas e prosa poética, vão sendo contadas pequenas histórias que ora fazem avançar a narrativa, ora lampejam brilhos para reflexão, quase sempre tristes. Como a história de um casal que faz amor no cemitério, pensando em seus namorados mortos; a mosca que deixa um pássaro morto e pousa na lágrima de uma mulher; uma macieira que come as próprias maçãs.

Tudo em Herta Müller que não é estético é político demais.


Obras de Herta Müller

'O rei se inclina e mata'
. Tradução de Rosvitha Friesen Blume
. Editora Globo, 216 páginas, R$ 39,90


'Fera d’Alma'
. Tradução de Claudia Abeling
. Editora Globo, 250 páginas, R$ 34,90


'O homem é um grande faisão no mundo'
. Tradução de Tercio Redondo
. Editora Companhia das Letras, 134 páginas, R$ 34,50

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