Em entrevista, Laurentino Gomes, que vendeu mais de 1,5 milhão de livros defende o método da reportagem

Laurentino Gomes acredita na forma para aproximar o leitor dos fatos da história brasileira

por 24/08/2013 00:13
Alexandre Battibugli/Divulgação
(foto: Alexandre Battibugli/Divulgação)

Ele já vendeu mais de 1,5 milhão de livros no Brasil e em Portugal. Num país que sempre se ressentiu de poucos leitores, ele não apenas frequenta todas as listas dos mais vendidos como leva até elas assuntos considerados difíceis, como a história brasileira no século 19. Depois de 1808 e 1822, o jornalista Laurentino Gomes está de volta com 1889, narrativa sobre o fim da monarquia, proclamação da República e primeiros anos do novo regime. O livro, feito no mesmo figurino dos anteriores, mesclando grandes acontecimentos com informações pitorescas e perfis biográficos, faz da reportagem o método ideal para garantir correção nos fatos e charme no texto. Não basta ser história, precisa ser bem contada. Laurentino, em entrevista ao Pensar, analisa ainda a trajetória da República brasileira e sua relação com as dívidas do presente e nossas expectativas. Depois de encerrada a trilogia dedicada ao novecentos, anuncia o interesse de se dedicar às biografias. E já tem primeiro candidato a personagem: Tiradentes.


Como você definiria seu método em comparação com os estudos de história mais acadêmicos e quem é o leitor que você tem em mente quando começa a escrever?
Acredito que a principal diferença entre o meu trabalho e o dos historiadores acadêmicos seja de foco e de público. Um historiador, quando escreve um determinado texto, geralmente tem como alvo do trabalho seus próprios pares. Podem ser colegas encarregados de avaliar uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, ou os leitores de uma revista especializada. Eu, ao contrário, tenho como alvo um público mais amplo, em geral um leitor mais leigo, não habituado a ler sobre história do Brasil. Pode ser também um estudante, criança ou adolescente. Isso me obriga a ser mais simples e generoso na linguagem. Enquanto o estudioso acadêmico usa uma linguagem mais técnica, procuro construir um texto jornalístico, no qual misturo análises mais profundas com detalhes pitorescos, curiosos e bem-humorados dos personagens e dos acontecimentos. Isso ajuda a reter a atenção desse leitor. O método de pesquisa também é diferente. Uso a reportagem como ferramenta do meu trabalho, sem me preocupar com nuances teóricas que, no ambiente acadêmico, são muito importantes. Isso me dá uma liberdade de observação e de narrativa muito grande.

Os livros 1808 e 1822 foram muito bem recebidos pelos leitores e historiadores. De onde veio a ideia de partir de datas emblemáticas como ponto de partida para seus livros?
Essas três datas – 1808, 1822 e 1889 – marcam a construção do Estado brasileiro durante o século 19. Elas funcionam como o nosso código genético do ponto de vista institucional, burocrático e administrativo, porque explicam a forma como nós, brasileiros, nos organizamos como nação independente e soberana ao romper os nossos vínculos com Portugal. Portanto, para entender o Brasil de hoje é preciso estudá-las. A ideia de colocá-las na capa dos livros, no entanto, surgiu meio por acaso. Inicialmente, o título do meu primeiro livro deveria ser Os segredos da corte. Só isso. Como faltavam alguns meses para as comemorações dos 200 anos da fuga da família real portuguesa para o Brasil, decidi, já na fase final da edição, colocar o ano desse acontecimento na capa, ou seja, 1808. E, para não ficar só número, decidi também usar um subtítulo provocativo, que fazia referências à rainha louca, ao príncipe medroso e assim por diante. O resultado foi surpreendente. Os leitores adoraram a fórmula e compraram mais de 1 milhão de livros. No fundo trata-se de uma técnica jornalística, como se usa numa capa de revista ou numa manchete de jornal. Foi repetida, com bastante êxito, no segundo livro, 1822, e agora no terceiro, o 1889. Mas não pretendo insistir nela. Este será o último livro com data na capa, caso contrário me torno repetitivo e previsível. Terei, portanto, de me reinventar nos próximos livros.

É possível um diálogo proveitoso entre historiadores e jornalistas?
Acredito que sim. Historiadores e jornalistas têm muito a aprender uns com os outros. Historiadores podem ensinar aos jornalistas método e disciplina na pesquisa. Os jornalistas, por sua vez, têm contribuição de linguagem e estilo a dar no ensino e na divulgação do conhecimento da história. O grande desafio é ampliar o interesse do público pela história sem banalizar o conteúdo. Essa é uma linha tênue e perigosa. Se o autor ficar só na superfície e na banalidade, o livro não oferecerá contribuição alguma, será irrelevante. Se, ao contrário, der um mergulho muito profundo, não conseguirá prender a atençào desse leitor menos especializado. Mas entendo também que esse é o desafio permanente do bom jornalista.

Atualmente, é comum ouvir cobrança por atitudes republicanas, em complemento a ações democráticas. Como a história brasileira fez conviver essas suas inspirações, a democracia e a república?

Basta ler o noticiário todos os dias para perceber que o Brasil tem uma república mal-amada. O feriado de 15 de Novembro é uma data sem prestígio no calendário cívico nacional. O mapa das cidades brasileira está repleto de praças, ruas e monumentos com nomes de personagens republicanos, como Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Silva Jardim e Rui Barbosa, mas poucas pessoas sabem, de fato, quem foram essas pessoas. O Brasil conhece pouco da sua história republicana e a celebra menos ainda. Essa sensação de estranheza encontra parte de sua explicação na própria forma como a república foi implantada em 1889. A troca de regime se deu por um golpe militar liderado pelo marechal alagoano Manoel Deodoro da Fonseca, que, por sinal, era monarquista até a véspera. Os propagandistas republicanos defendiam liberdades civis, ampliação do direito do voto e outras promessas que não se cumpriram. Instalada por um golpe da espada, a república brasileira logo se converteu numa ditadura sob Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A grande distância entre a prática e os sonhos republicanos é o pano de fundo deste livro 1889. A república brasileira falhou na tarefa de cumprir muitas de suas promessas nesse último século e as manifestações de rua são uma demonstração disso.

A presença dos militares, decisiva na instauração da República, se tornou uma marca na política brasileira. A superação do militarismo abre caminho para a vertente mais cidadã do ideário republicano?
Até as vésperas da queda do império, em 1889, os republicanos brasileiros estavam divididos em diversas correntes que se comunicavam precariamente e tinham muitas divergências. No Rio de Janeiro, havia a mocidade militar de Benjamin Constant que, influenciada pelo pensamento positivista de August Comte, pregava a instalação de uma ditadura republicana. Havia também os intelectuais como Quintino Bocaiúva, Silva Jardim, Rui Barbosa e Lopes Trovão, grupo que fazia muito barulho na imprensa mas tinha pouca capacidade de articulação política. Por fim, havia os cafeicultores do oeste paulista, que eram empreendedores e fascinados pela republicana liberal americana. O problema é que toda essa gente não conseguia seduzir a pequena opinião pública da época e ganhar votos. O desempenho dos candidatos republicanos nas eleições era pífio. Sem alternativa nas urnas, os republicanos caíram no colo dos militares e derrubaram a monarquia mediante um golpe liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca. Os militares dominaram a cena republicana até três décadas atrás. Tudo isso mudou com a campanha das Diretas, em 1984. Diria que foi uma segunda Proclamação da República, não mais pela espada, mas pelo povo nas ruas pedindo o direito de votar.

Mesmo num período de intensas mudanças, alguns setores mostram capacidade de se manter no poder, como os latifundiários. A reforma agrária parece ser um limite na capacidade de transformações no país. O que falta para a República brasileira derrubar essa cerca?
Espero que esse livro ajude os brasileiros a refletir sobre o país que herdamos da monarquia e da primeira fase da nossa história republicana. Nesses últimos dois séculos, desde a chegada da corte de D. João ao Rio de Janeiro, em 1808, passando pela Independência, em 1822, e pela Proclamação da República, em 1889, o Brasil enfrentou desafios que, em determinados momentos, pareciam insuperáveis. A própria existência do país esteve ameaçada várias vezes. Na época da Independência e do Primeiro Reinado as chances de divisão território em guerras civis e separatistas eram enormes. Esses desafios foram todos superados, às vezes ao custo de muito sangue e sacrifício. O Brasil falhou na tarefa de realizar coisas importantes, como prover educação para todos, incorporar os ex-escravos na sociedade produzida, reduzir a pobreza e formar cidadãos. São questões que ainda nos desafiam hoje. Por outro lado, o fato de termos chegado até aqui como um país grande, integrado, de dimensões continentais, relativamente tolerante no aspecto político, racial e religioso, nos fornece sinais de esperança em relação aos problemas do presente. As vitórias e dificuldades do passado podem iluminar a jornada em direção ao futuro.

Como você analisa as recentes manifestações brasileiras em sua vertente crítica das instituições? O que 1889 tem ainda a ensinar ao brasileiro?
Muito do que ocorre hoje no Brasil, incluindo as manifestações de rua, tem raízes nessa distância entre as promessas e os sonhos republicanos. Por quase um século, de 1889 a 1984, nós convivemos com uma república de prática monárquica, na qual o povo foi sistematicamente mantido à margem de qualquer possibilidade de participação. A construção e a organização das instituições nacionais nesse período se deu sempre de cima para baixo, como nos tempos do império. Era sempre um ditador ou um líder forte, como Getúlio Vargas, ou um general, como os presidentes do regime de 64, que se encarregava de organizar as coisas. O brasileiro participou pouco da construção do Estado nacional. Por isso, essa sensação de estranheza entre Estado e sociedade que se observa hoje. Os brasileiros não se reconhecem no que está em Brasília. Querem um país melhor, mais eficiente, mais ético e menos corrupto. Acredito que isso seja também resultado de uma experiência inédita na nossa história, que são os quase 30 anos de democracia, sem rupturas. As manifestações de rua fazem parte dessa nova equação política em que o povo brasileiro reivindica, finalmente, o direito de participar ativamente da organização do futuro. É uma jornada difícil e tortuosa, às vezes até assustadora, mas não existe outra forma de construir um país no qual todos os seus cidadãos se reconheçam.

Você pensa em escrever biografias e quem acha que mereceria ser mais bem conhecido pelo leitor interessado em história?

Gostaria, sim, de escrever uma biografia histórica no futuro. É um dos meus projetos. Sou apaixonado, por exemplo, pela figura de Tiradentes e pela Inconfidência Mineira. Gostaria muito de trabalhar nesse tema. O que me encanta é o fato de que Tiradentes passou um século completamente incógnito na história brasileira. Afinal, era uma vítima da monarquia. Foi a bisavó de D. Pedro II que decretou sua sentença de morte. Portanto, não ficaria bem ao império celebrá-lo como herói nacional. Tudo isso mudou depois da Proclamação da República. É quando Tiradentes renasce das cinzas para se tornar um herói republicano, coisa que, aparentemente, ele não era. Era reconstrução de Tiradentes me fascina.

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