Laurentino Gomes encerra trilogia com '1889', dedicado ao fim da monarquia e à Proclamação da República

O jornalista é autor de trilogia sobre a história brasileira no século 19

por João Paulo 24/08/2013 00:13
Reportagem histórica. A definição do gênero praticado por Laurentino Gomes, autor dos sucessos 1808 e 1822, é uma aproximação de dois campos do saber. Do jornalismo ele busca a correção, o império do fato, a pesquisa exaustiva, o texto leve, a articulação entre estrutura e personagens, a captação do interesse do leitor disperso entre outras notícias. Da história vem o tema, o rigor, o cuidado para não incorrer em anacronismos, a busca em iluminar o presente com o conhecimento do passado.

O sucesso de público dos dois primeiros livros do jornalista – que venderam juntos mais de 1,5 milhão de exemplares no Brasil e em Portugal – é indicação  de que o estilo atrai leitores quando praticado com seriedade. Se 1808, que abriu a série, quando foi lançado tinha a seu favor o bicentenário da chegada da família real ao Brasil; e 1822, sobre a Independência, chegava num momento especial das relações entre o país e Portugal, o desafio agora era trazer o interesse para o mais próximo possível das raízes da realidade atual. Afinal, deve ser por isso que a história anda fazendo tanto sucesso nas livrarias, nas bancas de revista, nos eventos literários e nas telas de cinema: o brasileiro quer saber – e fazer – mais do que demonstrou ser capaz até agora.

Laurentino manda hoje para as livrarias de todo o país o terceiro volume de sua trilogia sobre o século 19 brasileiro, 1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a Proclamação da República (Editora Globo) e diz que encerra com ele sua série de títulos com datas na capa. Entre os projetos que acalenta está uma biografia de Tiradentes. O tema da República brasileira – processo que começou quase por acidente e ainda não completou seu ciclo histórico – tem o estímulo de um período marcante do passado e um impulso para compreender mazelas que habitam o presente, elementos que definem bem o projeto do autor.

O livro segue de perto o método dos anteriores. Só que não se trata agora de um regime que desperta apenas interesse histórico, mas do nosso próprio sistema de governo, a República. Compreender como foi pensada, instaurada e desenvolvida em seus primeiros momentos é uma forma de buscar a genealogia do que somos. Se o povo foi descartado no momento de sua proclamação, tendo assistido a tudo “bestializado”, e assim permaneceu por mais de 100 anos, o momento da República agora é outro. Como afirma Laurentino Gomes, “é desse desafio que os brasileiros se encarregam atualmente”.

O autor fez o dever de casa. A bibliografia anota mais de 150 livros, entre clássicos de Sérgio Buarque de Holanda, Emília Viotti da Costa e José Murilo de Carvalho, Heitor Lyra, Oliveira Lima, Hélio Silva e Gilberto Freyre, além de pesquisas em universidades brasileiras e norte-americanas em busca de documentação sobre o período. Laurentino, como repórter, viajou ainda aos locais que serviram de cenário, para dar cor local e atmosfera ao texto. O autor deixa claro, no entanto, que não é historiador nem tem revelações e novas interpretações a fazer. Seu trabalho é ordenar, dar consistência e narrar o período histórico com o máximo de clareza e graça.

Em 1889, o leitor vai encontrar, em sínteses feitas sempre com cuidado aos fatos, mas sem perder a abertura ao curioso e ao psicológico, eventos que antecederam e vieram logo em seguida à proclamação. Laurentino intercala capítulos sobre o contexto com pequenos perfis de personagens históricos, dos principais aos coadjuvantes, ajudando com isso a dar substância humana ao desenrolar dos fatos. E haja fato para ser descrito e compreendido. O volume da bibliografia mostra que se trata de um dos períodos mais estudados da história brasileira, ainda que não haja consenso entre os especialistas sobre vários aspectos.

Se das datas históricas o 15 de novembro talvez seja a menos prestigiada, isso não implica ausência de interesse pelo período. Os personagens da República nascente não fazem parte do panteão popular e são tidos mais como militares ou ideólogos datados, cumpridores de certa inevitabilidade histórica que ocorreria com ou sem sua participação. Esse equívoco é um ponto a mais de destaque e alimenta a curiosidade por 1889, ao revelar ao leitor a vida e obra política de nomes como Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant, Floriano Peixoto, Luis Gama, José do Patrocínio, Quintino Bocaiúva, Silva Jardim e outros. Entre as figuras célebres, sobressai o perfil algo melancólico e solitário de Pedro II – mas nem por isso distante da genética mulherenga do pai.

Explicar o nascimento da República brasileira não é tarefa fácil. O autor precisou articular em sua narrativa informações sobre economia, política e sociedade, apresentar o contexto da luta abolicionista, trazer elementos que permitissem compreender o estágio vivido pela monarquia brasileira e mostrar ao leitor de que forma a onda republicana se espalhou entre a oficialidade jovem. Além disso, foi preciso recuperar movimentos pré-republicanos, compendiar revoltas populares dos séculos 18 e 19, explicar imbróglios como a questão militar, passar em revista as motivações e resultados da Guerra do Paraguai e equilibrar todas as informações no território filosófico herdeiro do século das luzes e do nascimento do positivismo.

No paralelo O ensaio de Laurentino Gomes traz ainda elementos que atiçam a curiosidade do leitor para fatos menos oficiais e mais picantes, como a disputa entre Deodoro da Fonseca e Gaspar da Silveira Martins pelo amor da filha do barão do Triunfo. Como conta o autor, ao ser preterido pela bela, Deodoro guardou um rancor que brotaria em meados de novembro de 1889, ao saber que o “inimigo” havia sido nomeado por dom Pedro II para chefiar um novo ministério. O marechal, que na véspera havia se recusado a destronar o poder da monarquia, se limitando a destituir o gabinete do visconde de Ouro Preto, teria decidido finalmente proclamar a mudança de regime. Pode não ser toda a verdade, mas revela uma motivação humana que não costuma frequentar os livros de história.

Outros eventos já conhecidos, como o último baile da Ilha Fiscal, ganham descrições coloridas e movimentadas. Sem tanta cor e dinâmica, por outro lado, se revela o cotidiano da família real. Pedro e as filhas viviam em estado de quase penúria e discrição, sem ceder aos encantos da realeza europeia de origem. Recusavam-se a dar festas e recepções, habitando um palácio que alugava salas a barbeiros e outros comerciantes, para escândalo dos representantes estrangeiros que chegavam ao Brasil. E as festas preteridas pelo imperador – que se maçava com elas como confessa em bilhetes à amante condessa do Barral – não eram acontecimentos menores na vida da corte. Há quem defenda até que a falta de diversão em palácio impediu que muitos conchavos fossem feitos e com isso ampliada a sobrevida do Império.

Como sabe que a história é muitas vezes contada pela ótica dos vencedores, Laurentino usa o sábio princípio do jornalismo para apresentar sempre os dois lados, deixando ao leitor a tarefa de julgar. Assim, o mesmo Pedro II discricionário dos propagandistas da República é o homem austero e culto que carregava esperanças pelo futuro do país e que chegou a confessar que preferia ser presidente republicano a imperador. Deodoro da Fonseca também é retratado em sua ambivalência, entre o militar doente e fraco e o republicano de última hora a mudar o regime pela espada.

Se a República foi proclamada mais em razão do esgotamento da monarquia que da força dos ideais republicanos propriamente ditos, a decomposição do regime monárquico em si não era – como não foi – garantia de sucesso político e social. Sobretudo pela ação dos mesmos personagens que lucraram com a monarquia e que armaram contra ela para manter sua posição. Ao lado dos verdadeiros defensores do novo regime e dos militares descontentes, a elite da terra e da política vê surgir um regime ainda sem povo e sem verdadeiras instituições republicanas. Saiu uma oligarquia monárquica para dar vez a uma oligarquia republicana. A tarefa da mudança ficou para depois e foi sendo adiada por sucessivos golpes militares (mais um atavismo renitente) e manutenção de privilégios de toda ordem.

Há um momento em que democracia e república se somam, ou deveriam se somar, unindo a soberania popular com instituições livres, justas e universais. É o que nos legou a história. E é a tarefa que nos cabe para que a República, finalmente, deixe de ser apresentada como algo feito em nome do povo para ser sua autêntica obra. A história pode ser inspiração. Mas também um alerta.



1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República

• De Laurentino Gomes
• Editora Globo,
• 416 páginas, R$ 44,90

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