Conheça a trajetória de Cafi, autor da capa de 'Clube da Esquina'

Fotógrafo pernambucano é tema de 'Salve o prazer', documentário de Lírio Ferreira que estreia nesta segunda, no Curta. Lô Borges, Alceu Valença e Ronaldo Bastos participam

Mariana Peixoto 28/09/2020 04:00
Karina Hoover/divulgação
Lô Borges e Cafi na casa da família do cantor e compositor mineiro, no bairro Santa Tereza, em BH (foto: Karina Hoover/divulgação)

Carlos da Silva Assunção Filho, o Cafi, tinha 14 anos quando deixou o Recife natal a bordo de um avião da Panair rumo ao Rio de Janeiro. Chorou as nove horas que durou a viagem. Chegou à capital fluminense em 1965, onde viveu até os 68 anos. Mas carregou Recife com ele até morrer, vítima de infarto sofrido na Praia do Arpoador, no réveillon de 2019.

É outro recifense com um pé aqui e outro acolá, o cineasta Lírio Ferreira, quem conta a trajetória de Cafi. Por sugestão do próprio, vale dizer. Com lançamento nesta segunda-feira (28) no canal Curta!, o documentário Salve o prazer, codirigido por Natara Ney, é um retrato cheio de afetos daquele que ficou conhecido por ter fotografado algumas das capas de disco mais icônicas da música popular brasileira.

Odeon/reprodução
Cafi assinou a capa do %u201Cdisco do tênis%u201D, primeiro álbum solo de Lô Borges (foto: Odeon/reprodução)
 

MILTON

Foram muitos (em torno de 300) álbuns de grandes artistas. A capa mais conhecida é a do álbum Clube da Esquina (1972). Mas a partir da estreia na função com É a maior! (1970), de Marlene, Cafi não parou. Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Azevedo, Nana Caymmi, Lô Borges, Beto Guedes, Alceu Valença, Fagner, Gonzaguinha. Seu último trabalho foi a capa de Besta fera, disco de Jards Macalé lançado em fevereiro do ano passado.

Odeon/reprodução
A foto dos meninos à beira da estrada de terra faz parte do %u201Crepertório%u201D do cultuado Clube da Esquina (foto: Odeon/reprodução)
 

“Conhecia o Cafi só de nome, por causa das capas. Quando fui para o Rio, no final da década de 1990, para minha sorte e privilégio o conheci”, lembra Lírio, que chegou a morar no apartamento do fotógrafo por um período. Quando veio o convite para dirigir o filme, os dois se encontraram em Olinda. “Fiz uma grande entrevista com ele em 2016 e aquilo serviu de base para o roteiro”, acrescenta.

Cafi/divulgação
A última capa de Cafi: Besta fera, disco de Jards Macalé (foto: Cafi/divulgação)
 

O projeto foi retomado em 2018, com todas as sequências rodadas de uma vez só. Partindo de Pernambuco – Olinda, Recife, Nazaré da Mata e Paulista –, o filme viaja por Minas Gerais – Belo Horizonte e Ouro Preto –, passa por Petrópolis até chegar ao Rio de Janeiro.

“Cafi estava sempre em movimento, então o coloquei assim. Anda de bicicleta, de barco, até de elevador. Queria que o filme também tivesse esse movimento”, conta Lírio.

Em cada um desses lugares, Cafi vai conduzindo sua própria história, seja nos encontros com amigos e parceiros, seja por meio de observações de sua visão de mundo. O homem que se apaixonava todos os dias, volta e meia ele canta o samba Alegria, de Assis Valente, de onde veio o verso “salve o prazer” que dá título ao filme.

 

Em Nazaré da Mata, observando os maracatus, Cafi revela que Dorival Caymmi conseguiu um encontro dele com Mãe Menininha do Gantois (foi depois de um passe recebido que o fotógrafo conseguiu registrar as apresentações de maracatu devidamente). Na casa de Alceu Valença, em Olinda, ele explica a influência do maracatu na capa do álbum Cinco sentidos (1981).

AMIZADE

Foi no Recife, com Ronaldo Bastos, que Cafi escutou pela primeira vez Canção do sal (1966) na gravação de Elis Regina. Impactado pela música, um pouco depois conheceu seu autor, Milton Nascimento. A amizade foi imediata. A dupla fez 18 capas de discos, incluindo a de Minas (1975), que exibe, pela primeira vez, o close frontal do rosto de Milton.

A relação com o Clube da Esquina é relembrada em encontros no apartamento de Ronaldo, no Rio (enquanto os dois jogam pingue-pongue), e com Lô Borges na casa de sua família, em Santa Teresa, em Belo Horizonte. 

A imagem do álbum duplo de Milton e Lô de 1972, com os dois garotos desconhecidos de Nova Friburgo (RJ), foi tirada por Cafi de dentro do carro, com o vidro fechado. O arame farpado foi o que mais chamou a atenção de Cafi, ele conta.

Houve muita resistência da gravadora em lançar o disco Clube da Esquina com aquela imagem. Em 2012, o Estado de Minas revelou a identidade dos meninos da capa – José Antônio Rimes, o Tonho, e Antônio Carlos Rosa de Oliveira, o Cacau.

O “disco do tênis” (1972), como é chamado o primeiro disco solo de Lô Borges, só se tornou como tal porque o cantor e compositor não queria ter seu rosto impresso no álbum. Lô teria sugerido uma capa com papel de pão.

Outra capa de um disco dele, Nuvem cigana (1982), exibe a foto de Lô recém-acordado em sua casa – Cafi tirou a foto no susto. Nuvem cigana, também o nome da produtora que Cafi teve com Ronaldo Bastos, surgiu depois de uma viagem de ácido dos dois na praia.

O documentário revela outros encontros do fotógrafo. “Eles ultrapassaram a música, pois Cafi foi testemunha de momentos incríveis. Como não daria para trazer todo mundo, pensei em pessoas-chave. O Jards (Macalé) é muito amigo dele, o Alceu Valença trazia toda a referência de Olinda, a Débora Colker é mãe de dois de seus três filhos, o Zé Celso Martinez a sua conexão com o teatro, o Miguel Rio Branco, seu compadre, fala da conexão com outras artes”, continua Lírio.

Com a morte de Cafi, que chegou a assistir ao documentário quase finalizado, o projeto ganhou outro vulto. Como projeto para a televisão, Salve o prazer tem pouco mais de 50 minutos. Lírio guarda meia hora de material inédito, que espera transformar em um longa-metragem para ser exibido no circuito de cinemas.

ACERVO

Há um mês, entrou no ar o site Cafi Digital (www.cafidigital.com.br), primeiro passo para restauração, digitalização e catalogação do acervo do fotógrafo, com cerca de 120 mil imagens. O projeto é comandado pelo produtor cultural Miguel Colker, de 34 anos, o caçula de Cafi.

“Meu pai era um cara muito ligado à memória. Progressista por essência, sempre transgressor, ele também teve um olhar de afeto e respeito às tradições. O acervo não era algo como business, mas a extensão da vida dele”, diz Miguel.
De acordo com o filho, Cafi nunca teve estúdio ou escritório. As milhares de fotos que fez ao longo de quase 50 anos ficavam guardadas em seu apartamento.

Com sua morte, o material foi para o escritório da produtora de Miguel, no bairro carioca de Santa Teresa. “Ele está da maneira que meu pai deixou, organizadinho, com datas. Mas ele só digitalizava o que precisava”, acrescenta.

O processo teve início recentemente. A pesquisadora Carla Lopes, que trabalhou por 30 anos no Arquivo Nacional, está à frente da equipe encarregada de higienizar, catalogar e digitalizar todo o acervo. A previsão é de que a missão leve seis meses. No momento, Miguel busca patrocínio – o projeto de recuperação do acervo de Cafi está orçado em R$ 400 mil.

Com as caixas começando a ser abertas, algumas relíquias já foram descobertas, como a fotografia de Belchior sem bigode tocando violão. “Ainda não chegou na parte do Clube da Esquina. Só capas do Milton ele fez 18, então eram muitas sessões de fotos e também de gravações. Acredito que deve ter muita coisa inédita”, finaliza Miguel.

SALVE O PRAZER

Documentário de Lírio Ferreira e Natara Ney. Estreia
nesta segunda-feira (28), às 23h, no canal Curta!. 
Reprise na terça (29), às 3h e às 17h; quarta (30), às 11h; sábado (3/10), às 15h30; e domingo (4/10), às 23h.

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