De volta a BH, Mano Brown diz que Racionais é 'soldado da liberdade'

Rapper vê 'retrocesso' no Brasil, afirma que o povo 'quis assim' e defende a importância do rap neste momento histórico. O veterano elogia Djonga: 'Ele é mais útil do que partido político, padre e pastor'

Ângela Faria 13/09/2019 04:00
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
O rapper Mano Brown se apresenta como convidado de Djonga no Festival Sarará, em Belo Horizonte (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Em fevereiro de 2018, Mano Brown declarou que nada havia a comemorar no aniversário de 30 anos do Racionais, o mais importante grupo de rap brasileiro.“Só há luto”, desabafou, referindo-se à guinada conservadora da periferia – cenário e inspiração das contundentes letras da banda.
 

Jair Bolsonaro derrotou o PT, o Brasil mudou. E a fúria negra ressuscita outra vez, como diz o rap. Neste sábado (14), a banda desembarca em BH para fazer o quinto dos nove shows da turnê 3 Décadas, que será encerrada em outubro, em São Paulo. “Baixo-astral, eu? Não há baixo-astral”, garante Brown. O Racionais – um “soldado”, “uma formiga atômica”, segundo ele – prossegue engajado em sua luta pela liberdade. “Nossa utilidade é maior ainda”, avisa.

Em 30 anos de estrada, Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue fizeram de seu rap o porta-voz dos excluídos, denunciando feroz e poeticamente a desigualdade social, o racismo e a violência estrutural do Brasil. Foi assim que o quarteto – “voz anticordial na cultura brasileira”, como definiu o ensaísta Francisco Bosco – cavou sua trincheira na por vezes bem-comportada cena musical do país.

O “soldado” Brown diz que não está em guerra, mas lembra os tiros que vêm eliminando índios, a crescente violência contra as mulheres, o recrudescimento do racismo e do machismo, além das queimadas na Amazônia que revoltam o mundo.
 
“O povo quis assim, pagou pra ver”, afirma. “Quem votou nisso que está aí entrou porque quis. Queriam o conflito, não o diálogo. Queriam cadeado e cerca elétrica, não a justiça. Quem agiu assim ignorou o semelhante”, diz. E adverte quem planeja gritar palavrões contra o presidente da República em seus shows: “Se quiser xingar, xinga. Mas vai tomar orelhada (sermão) do Brown. Vá zoar o show de quem você quiser, não o meu”.
 
Para ele, o brasileiro deve assumir o caminho político que escolheu, no voto. “Vou cobrar”, avisa. “A nova onda é xingar Bolsonaro. No Brasil, derrubar presidente é divertido...”, ironiza.

O rapper diz que, durante a campanha, foi ridicularizado por memes, stalkers e piadas ao defender suas convicções políticas e questionar a forma como se  deu a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Agora, o pessoal vem dizer que não apoiou o que está aí?”, dispara.

Mano Brown jura: está longe da política e não quer falar de PT. Ano passado, em pleno comício carioca do candidato petista Fernando Haddad, advertiu que o partido já havia perdido a eleição por ter se afastado do povo. A sinceridade teve seu preço.
 
“Vi a direita usar a minha fala”, comenta, esclarecendo que não recuou em relação àquela atitude. “Pela minha mente passou um pouco de arrependimento, mas um ano depois, com a poeira assentada, acho que acertei”.
 
Brown considera erro estratégico o Partido dos Trabalhadores “não ter passado o bastão”, insistindo em candidatura própria ao Planalto. Critica a “tirania democrática”, a “luta para permanecer no poder”.
 
Conta ter comentado com o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) que não achava inteligente “tentar um presidente petista de novo”. Para ele, o “radicalismo dos dois lados” pôs o Brasil num caminho perigoso.

“Escolheram o retrocesso em vez do progresso. A maioria não sabe nem o que foi a ditadura, o que é uma ditadura. É fácil misturar macarrão e areia e jogar na goela do povo. Sempre foi assim, desde a época do descobrimento.”

Citando o recuo de avanços sociais registrados nos últimos anos, o rapper diz que a mentalidade individualista da classe média contaminou o Brasil. “Agora, o cidadão só pensa em sua segurança. Se o filho do vizinho morrer, azar o dele, porque o meu está trancado dentro de casa, na igreja, sei lá onde. A mentalidade do medo é o que mais vende. Você se tranca em casa, pede pizza, paga a TV a cabo, come essa comida lixo que te faz ficar doente, acima do peso, tomando remédio. Isso acontece na favela também.”

Na opinião de Brown, questionar a cultura do medo – alimentada pela intolerância política – é a “nova guerra” a ser enfrentada. Letras do disco Sobrevivendo no inferno (1997), base do repertório deste sábado (14), vão “cair” no vestibular da Unicamp ao lado de poemas de Camões e de Ana Cristina César.
 
Brown comemora o fato de o hip-hop conquistar, a duras penas, seu espaço na música brasileira. “Estamos vivendo o melhor momento da história do rap brasileiro”, diz. “Hoje, ele é mais do que útil para conduzir, como Moisés, o nosso povo à liberdade espiritual, mental e econômica também.”

Jeferson Delgado/Divulgação
Show da turnê 'Racionais: 3 décadas' chega a BH neste sábado (14) (foto: Jeferson Delgado/Divulgação)
Na opinião de Brown, a nova geração de rappers – o mineiro Djonga, o baiano Baco Exu do Blues, o pernambucano Diomedes Chinaski e o brasiliense Hungria, entre outros – tem grandeza para assumir essa missão. Muito se diz que o Racionais salvou vidas, inspirando jovens a driblar o caminho do crime. “Esses novos rappers vêm de baixo, conhecem a vida difícil do brasileiro, vão resgatar muita gente”, aposta o veterano.

No final de agosto, Brown participou ao lado de Djonga do Festival Sarará, na Esplanada do Mineirão. A dupla foi ovacionada. O veterano se orgulha do amigo mineiro, de 25 anos. “É um negro retinto de Minas Gerais. Ele tem a ideia, a raça, a raiz. Autor autêntico, talentoso. Djonga vai conduzir a multidão de negros para buscar a liberdade. Ele é mais útil do que partido político, padre e pastor. Um instrumento de Deus e do orixá dele, Xangô”, afirma.

A vigorosa cena do hip-hop, em que depontam Djonga, Criolo, Emicida, Rael, Baco Exu do Blues e Karol Conká, entre muitos outros, não deixa de ser fruto das sementes que o Racionais plantou, há 30 anos. Mas Brown avisa: “Nunca fui latifundiário do rap. Essas sementes vieram também do Sabotage, Thayde, MV Bill, Dexter... De muita gente.”

RACIONAIS 3 DÉCADAS
KM de Vantagens Hall. Av. Nossa Senhora do Carmo, 230, Savassi, (31) 3209-8989. Abertura: DJ Pat Manoese e Fabrício FBC. Neste sábado (14), a partir das 22h. 6º lote: R$ 200 (inteira) e R$ 100 (meia-entrada). Recomenda-se verificar previamente a disponibilidade de ingressos. Vendas on-line no site Tickets for Fun.

TÚNEL DO TEMPO
Mano Brown define o repertório da turnê Racionais 3 décadas como “túnel do tempo”. Capítulo 4, Versículo 3, Homem na estrada, Diário de um detento, Negro drama e Vida loka (Parte 2) são alguns dos hits.
 
Pela primeira vez, o grupo se apresenta com banda – metais, teclados, percussão, bateria, baixo e guitarras. “A banda vem reforçar a batida, mas sem perder a pressão. A ideia não é ficar acústico, leve e sofisticado”, garante. Um dos destaques é Marighella, rap dedicado ao líder esquerdista morto em 1969 por agentes da ditadura militar.
 
Marighella é a cara do Racionais”, diz Brown, classificando como “jogada genial”  Wagner Moura convocar Seu Jorge para interpretar o comunista em seu filme, cuja estreia no Brasil, prevista inicialmente para 20 de novembro, está indefinida.

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