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Estado de Minas

Vestibular une Racionais e Camões na mesma 'quebrada'; intelectuais se dividem sobre a questão

'Oportunismo popularesco', diz o poeta Augusto de Campos. 'Gesto de reconhecimento', afirma o filósofo Francisco Bosco


18/06/2018 08:25 - atualizado 16/07/2021 16:54

(foto: Klaus Mitteldorf/divulgação)
“Não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista”, disparou Mano Brown em entrevista ao jornal O Dia, em 1998, referindo-se a Sobrevivendo no inferno, disco lançado no ano anterior, cujas faixas traziam contundentes denúncias ao racismo e à desigualdade social no Brasil. À margem das grandes gravadoras, o álbum do Racionais MCs – grupo de rap formado por Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay – vendeu 1,5 milhão de cópias e virou fenômeno da produção independente. 

Duas décadas depois, quem diria, a “rajada de rimas” dos manos da periferia paulistana “alvejou” a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em maio, a instituição incluiu Sobrevivendo no inferno como leitura obrigatória para o vestibular em 2020. Pela primeira vez, um disco entrou na lista de textos recomendados aos vestibulandos. E o fez em grande estilo. Racionais está ao lado de Sonetos, de Luís de Camões, ícone da língua portuguesa, e de A teus pés, livro de poemas de Ana Cristina César. “É a periferia ocupando a academia!”, postou o grupo no Instagram. “É como se fosse um troféu depois de vencer várias lutas”, comentou Mano Brown. 

“Um disco de rap elencado junto a Camões é uma espécie de legitimação do saber fora dos padrões europeus, que são os acadêmicos. Esse padrão instituiu que o conhecimento de valor é o escrito e chancelado pela educação formal. A gente precisa entender que nas periferias brasileiras – e no Brasil, de certo modo, em que educação ainda é um privilégio –, quem cumpre o papel de espaço para a produção de conhecimento é a música”, afirma o cientista político Gabriel Gutierrez. Professor de produção cultural nas Faculdades Integradas Hélio Alonso, no Rio de Janeiro, ele pesquisa a obra do Racionais.

“Quem tem potência de pensamento, quem quer filosofar, mas não pode frequentar as escolas e universidades, faz música. O gesto da Unicamp soa como um reconhecimento dessa oralidade, dessa cultura de rua como espaço de elaboração do discurso”, defende Gutierrez. Há quem discorde radicalmente.

Popularesco

 “Pobre Camões!”, reagiu Augusto de Campos, de 87 anos, expoente da poesia concreta no Brasil, a respeito da lista divulgada pela Unicamp. “Chamo isso de oportunismo popularesco”, afirmou o respeitado escritor, ensaísta e tradutor.

Postado na internet em 2016, um encontro entre o rapper Renan Inquérito e Campos sugeria a simpatia do poeta pelo rap. Diante disso, a reportagem do EM entrou em contato com o intelectual para ouvi-lo a respeito da decisão da Unicamp. Campos não quis dar entrevista, mas enviou o seguinte comentário, por e-mail: “Tanto Ana Cristina como os Racionais não têm categoria para figurar ao lado de Camões numa prova vestibular. OK? Chamo isso de oportunismo popularesco”.

DIÁLOGO José Alves de Freitas Neto, coordenador da comissão organizadora do exame da Unicamp, explicou que as faixas de Sobrevivendo no inferno não só dialogam com o atual momento histórico brasileiro, como também com as mudanças promovidas nas universidades em prol da inclusão social. Em entrevista ao portal G1, Freitas Neto definiu o álbum como uma leitura do mundo pelos olhos de quem o vê sob uma perspectiva contra-hegemônica.

Na opinião do professor Gabriel Gutierrez, a obra do Racionais vai além disso. “Nessas letras não tem só um conjunto de denúncias. O grupo até viveu essa fase bem lá no início, quando lançou o primeiro trabalho, o disco Raio X do Brasil (1993). Já Sobrevivendo traz reflexões existenciais profundas, expressas em hits como Fórmula mágica da paz (‘Admirava os ladrão e os malandro mais velho/ Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga:/ O que melhorou? Da função quem sobrou?’). Nesse canto, há o que talvez seja o maior dilema dos jovens brasileiros periféricos: o engajamento no crime versus a vida no subemprego. Estamos falando, portanto, de uma obra que, mais do que um retrato da realidade, faz uma cartografia do real, um mapeamento da subjetividade”, argumenta.

Para o pesquisador, pode-se comparar o registro humano encontrado no rap ao que se observa em clássicos escritos por William Shakespeare e Marcel Proust. “O complexo olhar desses escritores para sua realidade e seu tempo fez com que suas obras fossem parar no cerne da produção de muitos pensadores. Freud vai buscar a peça Édipo Rei, de Sófocles, para elucidar um de seus conceitos-chave, o complexo de Édipo. (O filósofo francês Gilles) Deleuze bebeu da fonte do (poeta francês) Antonin Artaud. Nas Américas, é a música que constrói esse inventário social. Por isso, faz muito sentido que tantas pesquisas acadêmicas se voltem ao Racionais na atualidade”, argumenta Gutierrez.

Entre ensaios acadêmicos ou textos publicados na imprensa, não são poucas as menções a Sobrevivendo no inferno como fenômeno da cultura contemporânea. Pesquisador do rap, Paulo Roberto Souza Dutra, professor da Stephen F. Austin State University, no Texas (EUA), aponta o impacto do disco do Racionais sobre a juventude negra como um dos motivos que explicam tal reverência.

Potência

Dutra argumenta que o rap do grupo paulistano dialoga com o mundo negro da diáspora provocada pela escravidão, mas não se limita apenas a um canto de lamento. Para ele, o Racionais reafirma a cultura africana, além de tirar o jovem negro da periferia de um lugar subalterno para transformá-lo numa espécie de potência política.

“Isso é muito forte e explícito em Sobrevivendo. Estamos diante de um álbum que, na primeira faixa, traz uma saudação a Ogum e a oração de São Jorge. A terceira (Capítulo 4, versículo 3) começa com estatísticas: ‘60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial/ A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras/ Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros”, lembra o pesquisador.

Paulo Dutra pondera que o reconhecimento do rap é positivo, mas avisa: “É preciso ter em mente que ele não é literatura”. De acordo com o professor, ainda não se conseguiu compreender muito bem essa música. “Daí as tantas associações do gênero não só com a literatura, como com as artes e a filosofia, entre outros campos do conhecimento. Diria que ele é um marco literário, causando impacto semelhante ao do cinema nas letras. A sétima arte teve grande influência sobre a literatura, tanto esteticamente, incorporando recursos da narrativa cinematográfica, quanto tematicamente. Fenômeno recente, o rap que vem fazendo algo parecido com as letras”, conclui.

Entrevista - Francisco Bosco
filósofo, ensaísta e compositor)

(foto: Bruno Veiga/Divulgação)
E
m 2014, em artigo publicado na Revista Cult, você afirma que o surgimento do Racionais “é possivelmente o último grande acontecimento da cultura brasileira”. Ainda hoje acredita nisso?
Sim, acredito, e hoje ainda mais. Desde 2015, o Brasil teve seus canais de transformação institucional bloqueados por um governo ilegítimo que tentou impor uma agenda conservadora a toque de caixa. As energias mudancistas da sociedade se concentraram em larga medida nos chamados movimentos identitários. Ora, os Racionais foram os pioneiros da perspectiva racialista, isto é, de explicitação dos conflitos raciais, no campo de alta ressonância que é o da canção popular. É claro que já havia antes deles uma história dessa perspectiva no Brasil, história que tem em Abdias do Nascimento e o Movimento Negro Unificado um capítulo importante. É preciso ainda registrar que essa perspectiva começou a ser institucionalizada, a se tornar política de governo e até de Estado, nos anos FHC. Mas nada disso é comparável em termos de alcance cultural com o que os Racionais fizeram a partir de Sobrevivendo no inferno. Houve ali um verdadeiro cataclisma na cultura popular brasileira. Foi a primeira vez que, de dentro da própria cultura, questionou-se radicalmente os alicerces dessa própria cultura, ou seja, a autoimagem cultural associada ao encontro, à mistura, à cordialidade, à festa.

O que faz de Sobrevivendo no inferno um álbum tão emblemático?

Tudo o que falei acima, e que só se tornou possível porque o álbum é formalmente extraordinário. Nunca houve na canção brasileira uma lírica como aquela dos Racionais. Basta pegar a história da chamada “canção de protesto” no país. Os sambas dos anos 1930 são muito ingênuos perto daquilo. As canções a la Vandré são ideológicas, cheias de “mensagens”, mas completamente distantes da concretude avassaladora das letras de Brown. Mesmo a grande tradição dos anos 60/70 – Chico Buarque, João Bosco/Aldir Blanc etc. – é bem diferente: complexa, sofisticada, esplêndida, mas inevitavelmente metafórica, afastada da experiência direta daquele porão da sociedade brasileira, secularmente recalcado, que retornava no real (como todo recalcado) de uma forma incontornável pela poética de Sobrevivendo no inferno.

O que a inclusão de Sobrevivendo no inferno na lista da Unicamp significa enquanto fenômeno social?

Significa, em primeiro lugar, um gesto de reconhecimento da grandeza dessa obra. Isso tem implicações no modo como se pensa o cânone, os problemas relativos ao valor estético. Basicamente, estabelece que a excelência e a originalidade formais não são prerrogativas das classes médias e altas. Mas significa também que alunos terão a oportunidade de conhecer uma realidade de classe diversa da deles (de boa parte deles), e conhecerão o modo como o Brasil responde a essa realidade. Tem muita análise fina da realidade nas letras dos Racionais: o problema do reconhecimento, a relação entre capitalismo e sistema prisional, a necessidade de criar estratégias de bonding para fortalecimento das pessoas negras, a relação entre cultura do espetáculo e manutenção das desigualdades, entre outras questões.


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