Saiba como Lacan pode te ajudar a ouvir música

Em debate nesta quarta (24), na Academia Mineira de Letras, o psicanalista Sérgio de Mattos e o músico Sérgio Rodrigo debatem sobre o papel da música no desenvolvimento da 'escuta criativa' e na apreensão do 'sem sentido'

por Walter Felix 24/10/2018 13:00

Tulio Santos/EM/D.A Press - Carolina Spyer/Divulgação
O psicanalista Sergio de Mattos e o músico Sérgio Rodrigo participam do programa Lacan na Academia (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press - Carolina Spyer/Divulgação)
O verdadeiro delírio sonoro é fazer com os sons uma experiência tal como James Joyce fez com as palavras”, afirmou o maestro e compositor francês Pierre Boulez (1925-2016). A frase é usada como provocação para o debate desta quarta-feira (24) na Academia Mineira de Letras, que relaciona a experiência musical com o conceito de inconsciente real da psicanálise. O encontro reúne o psicanalista Sérgio de Mattos e o multi-instrumentista e compositor Sérgio Rodrigo, em mais uma edição do programa Lacan na Academia.

“O que chamamos de inconsciente real é diferente do inconsciente transcendental, de Freud, em que tudo é organizado pela linguagem e pelo sentido. Pode-se aplicar em todo o tipo de música feita em torno de representações, que evocam sentimentos e, de alguma maneira, apresentam uma narrativa”, aponta Sérgio de Mattos. “Já o inconsciente real está ligado a algo fora de sentido. É a parte do inconsciente em que se encontra um núcleo indecifrável, organizado mais por traços, marcas e palavras sem exatidão. Ocorre quando a palavra é usada por sua materialidade, como uma marca, uma tatuagem, sem produzir sentido”, afirma.

 

No encontro desta noite, ele elenca músicas contemporâneas que se encaixam nessa discussão, associando-as à noção de “fora de sentido”. O francês Edgar Varèse (1883-1965) e o húngaro Béla Bartók (1881-1945) são alguns compositores usados como exemplo. “São músicos contemporâneos que, quando ouvimos suas obras, percebemos a ausência de narrativa e representação. É um trabalho com a materialidade do som, em que você não consegue encontrar algo da ordem do sentido”, diz Mattos.

Além da experiência nos consultórios, Sérgio de Mattos também é baterista, desde a adolescência. “Após a entrada no mundo da filosofia e da psicanálise, fui levado a conhecer mais o que é a música e buscar diferentes formas de música”, conta. Ele analisa a presença da experiência musical nos estudos de Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981). “Lacan cita várias vezes a música, desde o começo até o fim de seu ensino, ainda que não tenha se debruçado, de fato, sobre o assunto. Já Freud não se importava tanto com essas questões. Ao passar por algum lugar em que havia música, tampava os ouvidos. Não suportava escutar algo que movia o seu afeto sem entender o porquê, já que era tão ligado ao sentido e aos significados das coisas.”

INCONSCIENTE REAL
Mattos ressalta, para os profissionais dedicados à psique, a importância de se investigar o inconsciente real por meio da música. “Essas músicas contemporâneas ajudam os psicanalistas a ouvir algo que também está fora de sentido. Com elas, é possível educar o ouvido em relação ao sem sentido e suportar esse ponto que produz até certa angústia. Uma composição de Stockhausen (compositor alemão), por exemplo, pode incomodar e parecer uma mera barulhada, sem melodia ou narrativa.”

Além da música, outras linguagens artísticas podem ter interface com a seara da psicanálise. Com frequência, o inconsciente real se manifesta na literatura, por meio da poesia, e pode ser aplicado também ao cinema. Mattos cita 35 doses de rum (2007), da cineasta francesa Claire Denis, feito em homenagem ao japonês Yasujiro Ozu. “A mesma discussão pode ser trabalhada em torno do buraco de sentido desse filme”, cita.

O músico Sérgio Rodrigo, por sua vez, marca presença no encontro apresentando o conceito de delírio sonoro. Com a abordagem, ele questiona como o irreal interfere na mente do artista no momento da criação sonora. “Ao se questionar o delírio sonoro como algo que tenha a ver com uma postura mais investigativa e especulativa em relação ao som, passamos também pelo questionamento de em que medida o músico ou compositor permite que sua relação com a matéria seja conduzida ou atravessada por uma experiência mais delirante. A criatividade passa por esse lugar de abrir a nossa forma de expressão para as forças que são da ordem da especulação e da fantasia”, afirma.

“Discutiremos como esse tipo de processo psicológico opera no processo criativo. Qual a relação da dimensão da técnica com o mundo do devaneio, da fantasia e da imaginação. E como isso se concretiza nos processos artísticos, definindo lógicas e técnicas de trabalho”, adianta Sérgio Rodrigo.

O artista atenta para o fato de que a provocativa frase de Pierre Boulez se relaciona diretamente com o contexto em que foi proferida. “A frase surge em meio à arte europeia do pós-guerra. Repensamos essa afirmação do ponto de vista histórico, partindo da contemporaneidade e da realidade brasileira”, diz. “Daquele período aos nossos dias, notamos diversas alterações na relação do artista com sua matéria de expressão. Podemos apontar, por exemplo, os efeitos da tecnologia nos processos de criação.”

Para Rodrigo, profissionais de música e psicanalistas veem seus ofícios se aproximarem pelo ato da escuta. “As relações que os sujeitos estabelecem com a música são muito interessantes. Muitas vezes, nós, ouvintes, mantemos com a música uma ligação superficial, definida por critérios estéticos que não passam por um crivo subjetivo. Passaremos (no debate) pela possibilidade de imaginar processos de formação musical voltados para a definição de uma escuta criativa mais aberta.”

SIMPATIA Rodrigo diz que a psicanálise permite estudar os aspectos mentais de James Joyce a partir de sua escrita experimental e especulativa. “Há uma relação de mútua simpatia, mas também de negação entre as duas áreas (arte e psicanálise). Existe tanto o momento em que a psicanálise ajuda a pensar a música, quanto os tensionamentos entre essas atmosferas”, afirma. “Muitos enxergam o processo criativo como uma espécie de análise, mas também existe uma resistência em ambientes artísticos por não acharem que a criação cabe integralmente na psicanálise e que tampouco há uma convivência, uma afinidade ou condicionamento.”

Para o músico, o encontro desta noite tem a particular importância de levar ao público leigo o debate sobre a afinidade entre experiência musical e estudos da psique. “A ideia é realmente abranger áreas mais diversificadas, conseguir mover algo, criar uma reflexão por meio da provocação e deixar uma pulga atrás da orelha.”

LACAN NA ACADEMIA – CONVERSANDO COM A LITERATURA
Com Sérgio de Mattos e Sérgio Rodrigo. Quarta-feira (24/10), às 19h30. Academia Mineira de Letras, Rua da Bahia, 1.466, Lourdes. (31) 3222-5764. Entrada franca.

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