Emicida lança seu segundo álbum solo e aborda questão racial

Para rapper, Brasil precisa definir se seu caminho será 'muro ou ponte'

por Ângela Faria 18/08/2015 09:04

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JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO
Rapper Emicida, que lança 'Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa'. Clipe de música do disco ultrapassou 900 mil visualizações no YouTube (foto: JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO)
“É o momento de ter um discurso sério. O Brasil vive um tempo em que o radicalismo está se fundindo à ignorância”, afirma o rapper Emicida a respeito de seu segundo álbum solo, 'Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa'. O disco expõe o racismo, denuncia o apartheid social em nossas áreas de serviço e toca o terror no mito do brasileiro cordial. O clipe da faixa Boa Esperança, dirigido por Kátia Lund e João Wainer, é cinema: mostra um motim de empregados domésticos humilhados pelos patrões – “guerra civil” doméstica com direito a fogo no varal, grã-fino amordaçado, cuspe nas travessas e caos na sala de jantar.


Nome de ponta do hip-hop nacional, Emicida, de 29 anos, fez um disco político. “Tudo é caso pensado, nada está por acaso aqui”, afirma, definindo 'Sobre crianças...' como a sua contribuição à reflexão sobre o país. Ele argumenta que o impasse brasileiro é muito mais profundo do que a crise enfrentada pela presidente Dilma Rousseff.

“Se a gente quiser ‘resolver’ o Brasil, temos que começar pelo racismo, que, inclusive, antecede a República”, afirma. “O tempero do mar/foi lágrima de preto (...)/Só desafeto, vida de inseto, imundo/Indenização?/Fama de vagabundo”, canta ele em 'Boa Esperança'. Fina ironia, o título do álbum veio do nome de um dos navios negreiros que aportaram por aqui. O clipe ultrapassou 900 mil visualizações no YouTube.

 

 

 

Emicida celebra a imensa riqueza cultural da África em seu novo trabalho, enfatizando que o continente “não se resume a braços e pernas acorrentados”. No início do ano, ele passou 20 dias em Angola e Cabo Verde. Para abordar a herança atemporal da casa-grande, evitou o imaginário tradicional – pretos açoitados e pelourinhos, “a escravidão que, hoje em dia, já é olhada de maneira confortável”. Preferiu questionar outra lógica: a do senhor de engenho, que, segundo ele, persiste neste século 21, humilhando faxineiras, discriminando negros e vociferando a favor da redução da maioridade penal.

DOMÉSTICAS “Até hoje, os direitos das domésticas são negados, questionados”, lembra o filho de uma delas – dona Jacira, que, aliás, comanda o motim do clipe 'Boa Esperança'. A cultura do escravismo persiste no quartinho da empregada, no elevador de serviço, reforça Emicida, advertindo que só a conscientização, a educação e a busca do conhecimento serão capazes de desviar o país da direção do abismo. “Na falta de Machado de Assis, de Xangô/Vai sobrar martelo de juiz, de doutor”, versa ele.

O rap nacional desempenhou o papel de educar, estimulando o favelado a ter autoestima, o preto, a assumir sua cor, seu cabelo e suas raízes. “Política é conectar”, ressalta o MC, chamando a atenção para um paradoxo: a ignorância se multiplica justamente na era da informação, com suas redes sociais, computadores e smartphones. “Por outro lado, 12 anos de um governo mais popular abriram a possibilidade para o mano entrar na faculdade e pensar: ‘Este lugar pode ser meu, vou chegar lá e vencer!”. Para ele, no contexto de radicalização política que domina o país, marcada pela intolerância, o desafio está posto: “Você tem que definir – vai ser muro ou ponte?”.

Com 14 faixas inéditas, o novo disco equilibra “pedradas” políticas – 'Boa Esperança', 'Trabalhadores do Brasil' (com o poeta Marcelino Freire) e 'Mandume' – com relatos pungentes ('Mãe', tributo às batalhadoras chefes de família da periferia, como dona Jacira) e delicadezas do amor ('Passarinhos', 'Amoras', 'Madagascar' e 'Baiana'). Tributo à África, 'Mufete' encantou Djavan, que fez questão de postar nas redes sociais um vídeo elogiando o disco, gravado em São Paulo, Cabo Verde e Angola.

Caetano Veloso divide os vocais com o rapper na romântica Baiana. Vanessa da Mata é outra convidada, assim como Kaku Alves (que foi guitarrista de Cesaria Évora), verdadeira multidão de talentos africanos (entre eles, os percussionistas Ndu Carlos e João Morgado), além de Rico Dalasam, o destaque do chamado “rap gay” nacional. Emicida dialoga com o pop, o samba e o mainstream. Há leveza e canções para tocar no rádio, mas a luta não tem descanso nem no acalanto para a filha pequena, orgulhosa de ser pretinha como as amoras. Até Malcom X, Zumbi e Luther King batem ponto no delicado louvor à negritude. Outras referências do álbum vêm dos escritores Mia Couto, Pepetela e José Eduardo Agualusa.

Defesa ideológica do 'mau português'

 

Em seu novo disco, Emicida reverencia a obra de escritores brasileiros e africanos – Machado de Assis, Marcelino Freire, Pepetela, Mia Couto e José Eduardo Agualusa entre eles. O 'Auto da Barca do Inferno', do português Gil Vicente (1465-1537), é referência deste trabalho. Na faixa Baiana, ele divide o microfone com Caetano Veloso – que, recentemente, passou um pito público em sua própria equipe por causa de uma crase malcolocada. Apesar do ilustre – e rigoroso – convidado, o rapper não se intimida em versar em “português ruim”, cheio de erros de concordância – marca registrada do hip-hop.

“Por que o nosso jeito de falar é errado?”, reage o rapper, questionado a respeito da opção de escrever “já viu eles chorar” ou “na era cyber, cês vai ler/ os livro que roubou nosso passado”. Para Emicida, o coloquial, a língua realmente praticada nas ruas, é esteio do rap. “Língua culta é como um terno, não serve para o verão. Nos dias de calor, a gente escolhe a bermuda, o chinelo”, compara, convicto de que a língua oral é um patrimônio popular que precisa ser preservado – e não motivo de vergonha.

“A cultura oral é o grande tesouro da nossa língua”, diz. “A linguagem coloquial é o nosso dialeto. A língua escrita tem que fazer justiça à língua falada”, conclui Emicida, para emendar: “A rua é nóiz”. Assim mesmo, com z, avisa.

 

MC fecha com major e cobra por downloads

 

'Sobre crianças...' marca um momento emblemático nos 10 anos de carreira de Emicida, construída na cena independente – lançou seis EPs e mixtapes, além do aclamado disco solo 'O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui' (2013).

Parceria da Sony com a Laboratório Fantasma, produtora criada pelo rapper e seu irmão, Evandro Fioti, e Natura Musical, 'Sobre crianças...' é o primeiro trabalho de Emicida cujo download gratuito não será oferecido aos fãs. A negociação com a major durou três anos. Ele explica que o acordo permite ampliar a distribuição do disco, inclusive para o exterior. Confiante na eficácia do streaming junto ao público e nas lojas digitais, ele informa que o CD físico estará disponível no fim do mês.

O rapper não teme a pirataria – “Eu venho dela”, diverte-se. E revela: o acordo com a Sony lhe permitiu, pela primeira vez em 10 anos de batalha, “conversar” com as rádios. “E aí, vai pagar jabá?”, provoca a repórter. “Do meu bolso, não”, responde Emicida, às gargalhadas, citando Elton Medeiros: “Amando ou odiando o capitalismo, você vai viver dentro dele”.

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