

Confira 'Guerreiro de Aruanda', em parceria com Emicida:
O Brasil profundo dá régua e compasso ao baile do MC paulistano. Em vez de partir da bateria eletrônica rumo às batidas tradicionais, Gaspar inverteu a rota. Começou pelos emboladores, tambores da capoeira, cocos e pandeiros para só depois apertar o play do computador. Com isso, ele e seus parceiros oferecem uma viagem singular ao universo do canto falado. Viagem, aliás, que não se limita a harmonias, batuques e beats. Gaspar “subverteu” também métricas aprendidas com repentistas e cantadores para reinventar o seu jeito de rimar. É rap, mas tá diferente.
O fã de Mano Brown, Afrika Bambaataa, Nino Brown, Sabotage e Rapin’Hood – mestres do hip-hop – pesquisou e aprendeu direitinho com Luiz Gonzaga, Totonho do Tamandaré, Carlos Silva, Teo Azevedo, Ariano Suassuna, Bráulio Tavares, Sebastião Marinho e Zé de Riba, “orixás” da cultura popular brasileira. No “rap de pé quebrado” de Gaspar, o flow combina com o martelo agalopado. E versos decassílabos, tão caros à poesia nordestina, embalam o “improviso diverso/ com sotaque diferente” desse filho de sanfoneiro e neto de boiadeiro potiguar.
Aos 36 anos – 20 dedicados ao Z’Africa Brasil, um dos grupos de rap mais importantes do país –, Gaspar foi a campo. Levou dois anos em pesquisas pelo Nordeste e no interior de São Paulo para chegar a Rapsicordélico. Desde o início, sua banda buscou um jeito próprio de fazer hip-hop, mas o CD solo do vocalista radicaliza esse processo. Se o gênero surgido nos anos 1960 nos bairros negros de Nova York ganhou harmonias do jazz e blues e a percussividade jamaicana, o Brasil, com seu berimbau e seus tambores, “esticou os couros”, diz o MC.
E haja couro! Um “coco rapeado”, Mestres griôs, abre o disco com scratchs e batidas potentes sampleadas por KL Jay. Pedrada pura, cordel dançante com referências a Racionais MCs e a Jorge Ben Jor. Logo a seguir, Guerreiro de Aruanda traz um congo de ouro (ritmo do candomblé) mesclado com miami bass, “pai” do funk carioca, para homenagear Ogum. Emicida e Gaspar rogam a São Jorge para proteger a sofrida gente brasileira. O poeta sertanejo Lirinha (ex-Cordel do Fogo Encantado) se junta ao anfitrião em Mãe África para celebrar o casamento do jongo com o rap, com a bênção de mestre Totonho do Tamandaré. “Quando mãe negra dança no terreiro/ Deixa marcas profundas na cidade”, diz a canção alusiva ao impacto da escravatura na formação de nosso povo.
Em Rapinbolada, Gaspar e Zeca Baleiro dobram, redobram e multiplicam septilhas para promover um arrasta-pé cuja batida viaja por maracatu, baião e repente. Tá provado: improviso nordestino e o freestyle dos duelos de MCs não são primos tão distantes assim... Afoxé, marujada, maracatu e umbigada fazem a festa no terreiro hip-hop, irmanados ao funk, ragga e mangue beat. A batucada (com referências a Eu sou raiz, de Aniceto do Império) abre Destruidor de celas, com a presença do rapper Dexter, que amargou a prisão por 13 anos. É ele quem puxa o samba em homenagem a Zumbi, Jesus Cristo, João Cândido, Malcom X, Panteras Negras, Angela Davis e Lampião, guerreiros defensores da liberdade.
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O Z’África Brasil está conectado ao mundo, frequentemente canta no exterior, e tem parceiros espalhados pela França, Espanha, Canadá, Itália e África. Vou misturar o rap celebra essa globalização, lembra Gaspar: Lou Piensa, integrante do grupo canadense Nomadic Massive, canta em espanhol, inglês e francês. “Manos arriba/ Es un asalto mental/ Como la historia z’africana/ esto es elemental”, diz. Adepto da psicodelia, Gaspar diz que essa cultura setentista o inspira a “buscar o inimaginável”. Música é arte cósmica, defende.
CARNAVAL
Militante do hip-hop que propaga “valores comprometidos com a construção de um mundo melhor”, o MC chama a atenção para a consolidação do rap no cenário cultural brasileiro. Conta que nunca trabalhou tanto na época do carnaval como agora. De fato, a agenda está animada. Enquanto o Racionais MCs fez show no Recife em pleno domingo folião, Gabriel O Pensador animou a quadra da Escola de Samba Cidade Jardim, em BH, e a batucada em Ouro Preto. Criolo bateu ponto em Fortaleza e Marcelo D2 saudou o Galo da Madrugada em Pernambuco.
Por sua vez, o mineiro Flávio Renegado cumpriu agenda carioca. Ou seja: foi-se o tempo em que rap era confinado ao clichê “música de gueto”. Hoje, reforça Gaspar, Criolo canta com Milton Nascimento e inspira Chico Buarque. Gog grava com o grupo Teatro Mágico. Caetano divide o microfone com Emicida.
“Se samba, pagode e sertanejo são reconhecidos como música brasileira, por que o rap não é reconhecido também?”, questiona Gaspar. As letras engajadas de Rapsicordélico falam de orgulho negro, da luta do brasileiro pobre para sobreviver num país marcado pela desigualdade e do legado nordestino. O Z’África Brasil, orgulha-se o MC, mantém cinco projetos destinados a jovens na periferia paulistana, oferecendo aulas de dança e música, além saraus e atividades relacionadas às culturas afro-brasileira e islâmica.
“Hip-hop é transformador”, defende Gaspar, embora crítico a letras que enaltecem o sexismo, o machismo e “a celebração das marcas de tênis”. O MC avisa: “O nosso momento é agora”. Apaixonado pela arte do povo, ele não vê a hora de conhecer Ouro Preto. “Aleijadinho é o nosso gênio negro”, entusiasma-se o rapper que se diz “formado em rualogia na universidade da vida e pós-graduado em quilombologia nuclear”.