Prestes a completar 500 anos, Lei da Pureza da cerveja é cada vez mais questionada

Norma alemã fixa quatro ingredientes únicos para a bebida. No Brasil, há receitas com aveia, laranja, framboesa e coentro

por Eduardo Tristão Girão 04/03/2016 08:30
LEANDRO COURI/EM/D.A.PRESS
De acordo como preceito alemão, uma cerveja pura só pode levar água, malte de cevada, lúpulo e levedura (foto: LEANDRO COURI/EM/D.A.PRESS)
Dia 23 do mês que vem, os alemães vão comemorar os 500 anos da Reinheitsgebot, mais conhecida como Lei da Pureza, aplicada à produção da cerveja. Foi promulgada pelo duque bávaro Guilherme IV e, para encurtar a conversa, estabeleceu que a bebida só poderia ser feita com três ingredientes: água, malte de cevada e lúpulo – a levedura foi incluída depois. Ainda hoje, esse antigo regulamento é aplicado por muitos produtores e tido como verdade incontestável por número ainda maior de consumidores pelo mundo. Mas por quê?


A criação da Lei da Pureza teve motivações políticas e econômicas, ou seja, não foi pensada só para garantir cerveja de boa qualidade à população. Havia a necessidade de regular o comércio do trigo (cervejeiros e padeiros disputavam o grão), havia a intenção de abalar a Igreja (que controlava a venda de ingredientes como ervas, até então usadas na bebida), havia o objetivo protecionista de excluir cervejas estrangeiras do mercado alemão (como as belgas, que até hoje levam frutas e grãos, por exemplo).


Mesmo entre tantos motivos que não o de simplesmente beber uma caneca de boa cerveja, a Lei da Pureza tornou-se referência. Porque, de fato, serviu para regular a fabricação da bebida numa época em que era possível encontrar, conforme escreve Michael Jackson em seu livro Cerveja, “ingredientes dúbios como urtiga e cogumelos”. A cerveja padronizada de acordo com a Reinheitsgebot tornou-se comercialmente vantajosa e, com isso, o conceito de “puro malte” começou a ser entendido por muitos como garantia de qualidade.


A legislação alemã sofreu várias mudanças ao longo do tempo, a cerveja de trigo foi legalizada, outros estilos da bebida (com outros ingredientes) foram permitidos e a Lei da Pureza não vigora mais. Entre produtores, ela é cada vez mais vista como um “manual” da escola cervejeira alemã do que um código a ser respeitado. “Quando começamos, eu até citava a Lei da Pureza no rótulo. Praticamente ninguém mais faz cerveja assim, a não ser que queira ser fiel à escola alemã”, diz Marco Falcone, proprietário da cervejaria mineira Falke Bier.


Na opinião dele, como a Alemanha é uma das três principais escolas cervejeiras do mundo (ao lado da inglesa e da belga) e a lei é tida como patrimônio cultural local, tais preceitos permanecerão sendo seguidos. Além disso, a variedade de estilos da bebida hoje no mercado é tão grande que não faz sentido acreditar que apenas a cerveja que leva água, malte de cevada, lúpulo e levedura pode ser considerada boa. Nem que seja a única pura. A criatividade das premiadas microcervejarias brasileiras está aí para desmentir isso.


“Essa mudança partiu dos conhecedores, sommeliers de cerveja e produtores, o que é bom, pois demonstra amadurecimento. A cerveja não pode ficar amarrada a esse tipo de limitação, há muita coisa boa por aí. Desconstruir verdades como essa é importante”, analisa Ronaldo Morado, estudioso e autor do livro Larousse da cerveja. Para ele, a principal contribuição da Lei da Pureza foi a definição de parâmetros para padronização da cerveja enquanto um produto.


Morado também enxerga o uso da Reinheitsgebot com propósito marqueteiro, por meio de palavras como lei, pureza e malte: “A partir dos anos 1960, 1970, virou espécie de selo. Esse jogo de palavras foi muito bem usado, como se dissesse ao leigo que aquilo era um símbolo de qualidade. Foi o gancho que as cervejarias alemãs aproveitaram muito bem para vender seus produtos. Acho legítimo usar como marketing”. Mesmo assim, para ele, a velha lei não caducará graças à sua importância histórica.


Jornalista e professora da Academia Sommelier de Cerveja (que fundou com Marco Falcone), em Belo Horizonte, Fabiana Arreguy concorda com Morado. “O que vai sobreviver é o elemento histórico, não um critério em vigor. A própria Alemanha tem revisto esses conceitos. O mercado está em mutação constante, com o público tendo acesso a muita diversidade. Hoje se faz pesquisa até com levedura brasileira e não sabemos se a cevada será mesmo o grão principal lá na frente. Não faz sentido continuar produzindo cerveja como há 500 anos.”

FRAMBOESA Cervejarias mineiras de portes diferentes não adotam a Lei da Pureza como modelo e preferem a liberdade como princípio norteador da produção. “Para nós, ela não é referência. Na verdade, ela nunca foi pauta aqui na cervejaria, a não ser pelo seu conteúdo histórico interessante. Estamos livres para criar nossas cervejas como bem entender, acreditamos na experimentação, na ousadia e na busca por métodos e insumos que possam agregar algo às nossas cervejas”, resume Lucas Godinho, da Capa Preta.


A cervejaria dele produz rótulos que têm ingredientes como aveia, framboesa e um malte alemão conhecido por dar à cerveja aroma que lembra o do melão. Mesmo assim, é com respeito que ele se refere a essa tradição: “A Reinheitsgebot se tornou uma marca, a Alemanha é referência mundial em cultura cervejeira e a Lei da Pureza faz parte da formação dessa história”. Na visão dele, como os cervejeiros brasileiros se inspiram muito no que é feito nos Estados Unidos e na Bélgica, a lei deverá cair no esquecimento naturalmente.


Christian Brandt, mestre cervejeiro da Wäls, uma das mais premiadas cervejarias mineiras, também cita as referências externas como motor dessa mudança. “Isso tem acontecido também por conta da escola norte-americana, o que é bem legal, pois sai daquele caminho-padrão. Esse é o futuro, a inovação por meio de outros ingredientes e não só por conta de processos. Essa lei vai acabar ficando obsoleta, pelo menos aqui no Brasil, pois o mercado pede outras coisas.”


Laranja, coentro e outros ingredientes integram receitas das cervejas da Wäls. “Lei da Pureza não passa nem perto, mas fazemos tudo dentro do que é cada estilo”, conta Brandt. Para quem quiser conferir essa mudança com os próprios olhos, fica a dica: aos sábados, o mestre cervejeiro apresenta cervejas diferentes, que não estão à venda. Os últimos experimentos levaram gengibre e maçã, para se ter ideia.

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