Jaca enfrenta desconfiança e resistência no mercado gastronômico

Com suas virtudes descritas na literatura, a iguaria encontra paladares que a defendem e a companhia de frutas exóticas como araticum e taperebá

por Eduardo Tristão Girão 23/02/2016 07:00
 TULIO SANTOS/EM/D.A.PRESS
Jaca exposta para a venda em loja do Mercado Central, em BH (foto: TULIO SANTOS/EM/D.A.PRESS)
Há pelo menos oito livros em que Jorge Amado cita a jaca. Num deles, Os pastores da noite, ela ajuda dois amigos a reatar amizade; em outro, Tocaia grande, é chamada de “amarela ânfora de mel”. Já Câmara Cascudo, ao escrever História da alimentação no Brasil, afirma que a polêmica fruta de cheiro forte integra a classe daquelas que “transformadas em doces merecem insistência e gabos”. Já o doutor em botânica Gil Felippe, autor de títulos úteis sobre o tema, lembra que as sementes são mais que “ótimo alimento”, “são muito saborosas”.


Se nos livros a jaca goza de boa reputação, na vida real não é sempre assim. No Parque Municipal, no Centro de Belo Horizonte, as quase 30 jaqueiras estão em plena safra, mas a administração do local decidiu manter suspensa a simpática distribuição anual dos seus graúdos frutos, temendo que a queda de um deles provoque acidente. A medida foi adotada há cinco anos e, desde então, as frutas estão sendo cortadas antes do amadurecimento.

Como fora do pé esse processo é interrompido, todas as jacas do parque estão sendo descartadas. Mesmo assim, nem todas foram retiradas e ainda é possível ver pessoas comendo a fruta por lá, sinal de que a demanda não deixou de existir em função da proibição. Para se ter ideia, a procura era tão grande que, em 2009, havia lista de espera com cerca de mil interessados em levar uma jaca de graça para casa – as grávidas tinham prioridade.

Leandro Couri/EM/D.A Press
Coxinha de jaca do Carro Vegetariano: 200 unidades vendidas por semana (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Uma notícia triste, mas que em nada impacta a rotina do empresário Paulo Renato, proprietário do Carro Vegetariano e criador de uma das mais apreciadas receitas de coxinha de jaca da capital mineira. Reunindo os carros com os quais vende pratos e lanches veganos na Savassi, Pampulha e Buritis, são cerca de 200 unidades desse salgado consumidas pela freguesia a cada semana.

Cozida na panela de pressão, temperada com curry e misturada a legumes, a polpa da fruta vira “falso frango” e agrada inclusive aos carnívoros. “É o sabor mais vendido, superando outros como cogumelos, palmito e falso bacon com milho. Conheço pessoas que não são vegetarianas e até preferem essa coxinha. Nesse caso, talvez metade do nosso público seja de não vegetarianos”, conta Paulo.

A aura de fruta maldita pode fazer supor que viver dela seja difícil, mas não é bem assim. Na Feirinha do Mercado Central, loja que funciona virada para a Rua Goitacazes, no Centro da cidade, as jacas inteiras e os seus pedaços, já embalados para levar, não passam mais do que um minuto sem que alguém se aproxime para saber o preço. “Não é um mau negócio, principalmente se a gente sabe dizer para as pessoas as épocas certas das frutas que elas procuram. Elas saem felizes e sempre voltam”, diz José Linos, um dos vendedores.

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O araticum é base para molho no Restaurante Trindade (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press)
TEMPORADA
Ao lado da jaca (R$ 5 o quilo), está outra fruta da temporada, o araticum (R$ 9,99 o quilo). Parecido com uma pinha, esse típico fruto do cerrado tem aroma e sabor intensos e está nessa e em várias outras lojas do mercado. É trazido por um único fornecedor que vai e volta de Curvelo, na região Central de Minas, todos os dias até o final da safra. Há quem prefira vendê-lo por unidade, como José Antunes, da Loja Temporonas, também no Mercado, onde um único fruto custa em torno de R$ 20.


Se vale a pena? O próprio Antunes, que trabalha só com frutas como jenipapo, sapucaia e pitomba (além da jaca), responde: “Acabei de reformar minha loja”. Cléverson Ribeiro, proprietário da Loja do Tio, outro ponto de encontro de quem busca as “malditas” no mercado, engrossa o coro: “Elas custam mais caro, mas todo mundo reconhece o valor. A maioria da clientela é formada por gente do interior, que já conhece essas frutas”. No momento, ele vende araticum, jatobá, abiu, jenipapo, umbu, seriguela e graviola, esta última vinha da Bahia.

Cada fruta é identificada por plaquinhas com nome, preço e um “complemento” para ajudar a impulsionar a venda. São palavras e expressões como “superdoce”, “deliciosa”, “novinha”, “pingo de mel” e “docinha”. No caso específico do umbu, revela Ribeiro, o “da Bahia” cumpre essa função, já que, na verdade, a fruta vem da cidade mineira de Mato Verde. “A gente escreve assim só para fazer propaganda, pois ajuda a vender mais”, justifica.

Algumas dessas frutas têm se tornado mais populares graças a profissionais da gastronomia. Gente como Fred Trindade, chef do restaurante que leva seu sobrenome, em Lourdes. Ele acabou de receber do tio, que mora em Montes Claros, região Norte do estado, uma remessa de araticum com a qual fará molho para guarnecer um prato à base de peixe. Não é uma aposta tão arriscada, esclarece: “O pessoal procura coisas diferentes. No Dia dos Namorados, por exemplo, o prato de maior sucesso levava araticum (filé ao molho de araticum)”.

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"Superdoce" é a qualidade do abiu (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press)
CACHAÇA Outra fruta pouco popular, a cagaita tem sido usada em receitas de bebidas para promover a cachaça mineira produzida especialmente para coquetelaria. “Utilizamos as frutas tradicionais também, mas o sabor e perfume das do cerrado, como a cagaita, são muito característico, exótico”, diz Sandro Moraes, mestre alambiqueiro e um dos proprietários da cachaça Spiral.

Já Filipe Brasil, bartender do Restaurante Olga Nur, preparou recentemente martinis com siriguela para descobrir a reação da freguesia. “Deu um azedinho diferente, e os clientes gostaram. Essas frutas têm potencial, é só testar. Em coquetelaria não há o que dê errado, basta descobrir a proporção ideal para que o sabor apareça o suficiente. Se está equilibrado, será gostoso. Não sendo venenoso, tudo bem”, brinca.

Jaca, araticum, buriti, mangaba, taperebá, umbu, cajá e pequi são apenas algumas das cerca de 50 frutas com as quais a rede de sorveterias Frutos de Goiás trabalha. O pequi representa 30% das vendas de picolé nas lojas e quiosques que o franqueado Sandro Carvalho comanda em Belo Horizonte e a adesão a esses sabores fora do padrão é vista por ele como um movimento crescente. No caso do sorvete, os “exóticos” respondem por metade do volume consumido.


“As pessoas ainda têm receio desses sabores, mas há uma gama de consumidores que, gradativamente, vai adotando os sabores mais exóticos. Graviola, por exemplo, tem saído bastante. E cada vez mais há mais pessoas desse perfil entre todos os tipos de público. São jovens e velhos que tomam esses sorvetes e picolés sem deixar de pedir sabores tradicionais. Eu, por exemplo, sou fiel consumidor de abacate, mas adoro os de graviola e de taperebá”, observa ele.

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