Chefs nordestinos redesenham gastronomia brasileira sem importados

Vindos de estados como Paraíba, Bahia e Pernambuco, eles dispensam produtos caros trazidos de São Paulo, trocam o cordeiro pelo cabrito e desenvolvem ingredientes como mel verde

por Eduardo Tristão Girão 23/12/2015 12:39

Foi só depois de ter reportagens sobre seu restaurante publicadas em jornais do Sudeste que o chef paraibano Onildo Rocha começou a receber gente da cidade para comer no Roccia, em João Pessoa. Referência principal daquele estado, a casa completou este mês dois anos e aposta em receitas com ingredientes locais e na relação mais próxima com produtores dos arredores. Mais da metade do seu público ainda é de turistas, mas isso não o desanima.

Assim como Rocha, outros nomes nordestinos vêm desenvolvendo trabalhos significativos nos últimos anos – e tendo sempre a conquista da freguesia entre os principais desafios. Gente como o baiano Fabrício Lemos, os pernambucanos Joca Pontes e André Saburó e os alagoanos Serginho Jucá, Wanderson Medeiros e Jonatas Moreira. A vontade de inovar é o motor dessa geração, levada a pesquisas que começam no campo e terminam no prato, com surpresas que, pouco a pouco, ajudam a ampliar o mapa da nova cozinha brasileira.

Marcos Vieira/EM/D.A Press
O chef paraibano Onildo Rocha usa feijão-verde em menu especial que preparou em restaurante belo-horizontino em outubro passado (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
O chef paraibano, por exemplo, dedicou este ano a estudar as possibilidades do feijão-verde e já iniciou seu próximo projeto: está testando mel produzido por abelhas alimentadas com spirulina, uma bactéria que modifica o sabor do produto e o torna verde. Da sua cozinha, saem pratos como costeleta de cordeiro com purê de batata-doce e bolo de mandioca com sorvete de queijo de cabra e caramelo de rapadura. “As pessoas não querem sair para comer o que elas acham que podem comer em casa. Acham que, comida regional, comem em casa”, diz.

O trabalho afinado que faz com as fazendas Carnaúba e Tamanduá e com o sítio do seu Dedé, por exemplo, vem ajudando a promover a Paraíba por meio do queijo de cabra, arroz-vermelho e legumes orgânicos, respectivamente. “Um dos problemas é o cliente entender que não dá para o cardápio ser fixo, pois os produtos não são fixos. Isso ainda me incomoda muito. Minha meta é trabalhar com os ingredientes que recebo no dia”, diz. Pratos mais “comerciais”, como risoto, fazem parte da rotina da cozinha, mas levam sempre um toque regional.

 

ORGULHO
Na opinião dele, essa leva de chefs nordestinos está ajudando a fazer com que cada vez mais cozinheiros locais usem seus produtos com mais orgulho. “Esse movimento precisa se alastrar. Na Paraíba, tem mais gente, e preciso que todos apareçam mais, mostrando que não sou apenas eu a fazer esse tipo de trabalho. Já que me foi dada essa visibilidade, preciso compartilhar isso com os outros, pois não se faz um destino com uma só pessoa”, afirma Rocha.

Sérgio Lobo/Divulgação
Joca Pontes procura ser como Chico Science, ''com o pé em Pernambuco e a cabeça no mundo'' (foto: Sérgio Lobo/Divulgação)
Compartilha desse pensamento Fabrício Lemos, convidado este ano pelo chef Edinho Engel para assumir a cozinha de seu restaurante, o Amado, em Salvador. “Quero contribuir com a gastronomia baiana, pois seria injusto guardar tanta informação para mim. Para posicionar a Bahia no Brasil, misturei minha técnica com os produtos locais, dando toque de contemporaneidade”, explica Lemos. Enquanto cuida de lá, ele planeja a abertura do próprio restaurante, já batizado de Origem e com abertura prevista para março.

Em ambos os projetos, aplica os conhecimentos que acumula com constantes pesquisas. “Temos cerrado, caatinga, mata atlântica, costa. A diversidade de produtos é imensa. Trabalhar com ingredientes vindos de São Paulo era caro e nem sempre chegavam com qualidade. Estudando, entendi que estamos em cima de uma mina. São produtos diferentes e que não estão no dia a dia de todo mundo”, conta.

 

Exemplo é o licuri, coquinho com o qual faz farofa para acompanhar a casquinha de aratu, crustáceo local.

Além disso, trocou o cordeiro por cabrito, derrubou a “obrigatoriedade” do robalo e badejo entre os peixes brancos e passou a usar chocolate baiano – Ilhéus, no Sul do estado, produz amêndoas de cacau altamente valorizadas no exterior.

 

“A cozinha do Nordeste não teve a mesma exposição que a do Norte, que teve uma pessoa de fora para mostrá-la ao país. No nosso caso, nós mesmos estamos mostrando o Brasil que temos”, alfineta. Na avaliação de Lemos, ele e os colegas da região têm em comum a preocupação com a técnica na cozinha.

INGREDIENTES
Pouco a pouco, os clientes compram suas ideias no Amado, a exemplo da boa aceitação que teve a carne de cabrito. No caso de Serginho Jucá, que comanda o restaurante Sur (o nome deriva das palavras sururu e surrealismo), em Maceió, o caminho das pedras consiste em apostar nos ingredientes do cotidiano e com muita técnica. E não basta estudar os produtos regionais, como o mel de engenho e o feijão-verde: “É preciso entender do que o cliente gosta”, explica.

Na prática, exemplifica, isso significa tratar o manjado queijo coalho da praia como carpaccio, cortado fininho e tostado com maçarico, servido com castanha-de-caju-torrada e molho que remete à receita original. “O cliente é o mais importante num restaurante. Ele não é obrigado a entender da parte complicada do nosso trabalho. Hoje, está na moda contar historinha para os clientes, mas, às vezes, as pessoas só querem comer e tomar um bom vinho”, diz. Com isso, já conseguiu equilibrar clientes alagoanos e de fora na casa.

“O desafio maior era fazer o alagoano comer batata- doce fora de casa. Sofremos bastante no começo”, desabafa ele. Entre as glórias, acrescenta, está a troca do azeite pela manteiga de garrafa na cozinha. Já no restaurante Ponte Nova, em Recife, o chef Joca Pontes também se mostra adepto desse tipo de mudança, embora por meio do bom e velho “jeitinho”: “No bom sentido, trabalho enrolando o cliente. No cardápio não escrevo ‘molho de acerola’, mas ‘de frutas cítricas’, e cito ‘legumes verdes’ em vez de maxixe e quiabo”.

Felipe Brasil/Divulgação
O chef Serginho Jucá, do restaurante Sur, em Maceió, aposta em ingredientes do cotidiano e diz que ''é preciso entender do que o cliente gosta'' (foto: Felipe Brasil/Divulgação)
Ele garante que a aceitação de ingredientes como esses vem melhorando e que o momento atual é de redefinição de identidade: “O que é cozinha brasileira ou nordestina? Ainda estamos formatando essa história, que é muito recente. Antigamente, era feijoada, churrasco, carne de sol. Hoje estamos em fase de formação e em uns cinco ou 10 anos teremos uma ideia mais redonda do que é a cozinha brasileira. Eu, por exemplo, abro mais a cabeça para outros sabores, como se fosse Chico Science, com o pé em Pernambuco e a cabeça no mundo”.

 

SUCESSO EM SP
Exemplo do potencial da cozinha nordestina fora da região, o restaurante Mocotó, em São Paulo, tornou-se conhecido pelas gigantescas filas de espera, bom preço e por aprimorar receitas tradicionais. O chef Rodrigo Oliveira, que herdou a casa do pai e a levou a novo patamar, faz questão de produzir ele mesmo a carne de sol, por exemplo: ela é salgada, maturada em temperatura controlada, seca numa estufa, embalada a vácuo, cozida a baixa temperatura e finalizada no forno. Cachaças, pudim de tapioca, atolado de bode e mocofava (mocotó com favada) são outros atrativos que ajudaram a construir a fama do local, já conhecida até no exterior.

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