'Se não houver interpretações equivocadas, terei falhado', diz Daniela Thomas

Estreia 'O banquete', longa de Daniela Thomas cujo protagonista é inspirado no diretor de redação da Folha de S. Paulo Otavio Frias Filho, morto no dia 21.

por Mariana Peixoto 13/09/2018 08:00
IMOVISION/DIVULGAÇÃO
Ação do filme transcorre unicamente num cenário, durante a noite em que os convidados se reúnem para o jantar (foto: IMOVISION/DIVULGAÇÃO)
“Eu luto pela minha liberdade, o sr. por uma vaidade ferida; e no entanto minhas razões são públicas e de interesse geral, ao passo que as suas é que são particulares, sombrias como a própria solidão; eu defendo para cada um a possibilidade de expressar o que pensa sem ir para a cadeia por isso, enquanto o sr. se agarra à lei de imprensa do regime militar; eu procuro alcançar o exemplo dos grandes jornalistas do passado.”

Em 25 de abril de 1991, o então diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, publicou a Carta aberta ao sr. presidente da República. Seu destinatário era Fernando Collor de Mello, que havia entrado com três processos contra Frias e outros jornalistas do diário paulistano.

O banquete, filme de Daniela Thomas que chega nesta quinta (13) aos cinemas, traz como mote um texto pedindo a renúncia de Collor. Mas são as relações de sedução e poder de um grupo de pessoas o foco do longa-metragem.

“Vamos beber enquanto o navio afunda, meu amor”, é a proposta que Nora (Drica Moraes) faz aos convidados de um jantar em sua casa. A desculpa do evento, que reúne um pequeno grupo, são os 10 anos de casamento de Mauro (Rodrigo Bolzan) e Bia (Mariana Lima). Mauro é o diretor de redação de uma revista prestigiada (Nora é seu braço direito); Bia, de igual prestígio, é uma atriz que está saindo de mais uma sessão de um espetáculo.

Mauro, o autor do editorial pedindo a renúncia do presidente, aguarda sua eventual prisão. No grupo ainda estão Plínio (Caco Ciocler), advogado do jornalista e marido de Nora; Lucky (Gustavo Machado), o colunista de variedades da mesma revista; Maria (Fabiana Gugli), crítica de teatro e amante de Mauro. A longa noite ainda terá outros personagens.

Irônico e por muitas vezes mordaz, o texto de O banquete traz muito das observações de Daniela Thomas acerca de conversas de que participou e que ouviu ao longo de anos e anos. Nasceu como uma peça de teatro (nunca montada) e chega aos cinemas após uma não exibição bastante discutida.

O filme estava em competição no Festival de Gramado. A sessão competitiva seria em 22 de agosto – Frias morreu na madrugada do dia 21, em consequência de um câncer no pâncreas. A diretora decidiu retirar o longa da disputa “com o objetivo de respeitar este momento de luto da família”, segundo nota distribuída à imprensa.

Para quem acompanhou a época em que o filme é ambientado, não há como não tentar fazer relações com a vida real. A personagem de Mariana Lima, por exemplo, é fortemente inspirada em Giulia Gam e Bete Coelho. Ambas foram dirigidas no teatro por Daniela; Giulia e Bete namoraram, nos anos 1990, os irmãos Otávio e Luiz Frias, respectivamente.

O banquete chega aos cinemas um ano após o polêmico Vazante.
No 50º Festival de Brasília, em setembro de 2017, o longa de Daniela foi alvo de críticas severas, feitas em tom de protesto por parte de espectadores que enxergaram nele insensibilidade à condição dos negros escravizados.

Para além das relações reais que O banquete pode ter levado para a ficção, é um filme que deve ser saboreado do início ao fim. Por seus diálogos (e a interpretação do elenco, homogênea e com momentos para que cada intérprete faça seu solo) e também pela maneira como foi realizado.

O banquete se passa numa única noite com todos os personagens em volta de uma mesa. Daniela ensaiou duas semanas com o elenco e filmou em outras duas. “Para se realizar um filme numa única locação é preciso compensar a ausência de cenários, paisagens, horizontes, com a convicção de que o jogo entre os atores irá segurar a atenção do espectador”, afirma a diretora em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.

Qual foi a dificuldade de filmar num único ambiente (e ainda com um espelho ao fundo), fazer os planos-sequência?

Filmamos em blocos de, no mínimo, meia hora ininterrupta. Eu ficava atrás de uma parede, com um monitor, e dava orientações ao Inti (Briones, fotógrafo) por rádio (que ele ouvia por fone de ouvido). Vasco (Pimentel, diretor de som) ficava atrás da cortina, no jardim da casa. O set tinha 360 graus. Inti podia enquadrar tudo, a não ser a si próprio. A razão para filmar longos planos-sequência é o meu desejo de focar na reação dos atores, mais do que nas falas, e eu precisava do “desarmado” que acaba por acontecer quando se faz um plano tão longo que não há como um ator controlar sua aparência, a maneira como vai emitir as falas, respeitar marcas.

O banquete surgiu de um texto que você escreveu para teatro. Que adaptações o texto sofreu para ser filmado? Os atores tiveram muita contribuição nele?
A principal adaptação aconteceu nas duas semanas de ensaio. Costumo dizer que os atores roubaram os diálogos de mim. Mas eu amei cada mudança que eles propuseram. Eles como que “mastigaram” as falas. E alguns dos momentos mais inspirados do diálogo não são meus.Todos os atores reescreveram suas falas como parte do processo de ensaios. E não apenas como forma de azeitar os diálogos, mas trazendo suas vivências, suas próprias histórias para dentro do filme.

O protagonismo feminino é evidente em O banquete. Acredita que as relações entre sexo e poder mudaram muito nos 25 anos que separam o período enfocado no filme dos dias atuais?
O filme foi rodado agora por razões circunstanciais. Ou melhor, porque o Beto Amaral, meu parceiro de Vazante, leu o texto e se apaixonou, buscou financiamento e viabilizou o filme. Não por alguma razão ligada a protagonismo feminino. Essas mulheres são inspiradas nas muitas que conheci vida afora, desde a minha avó, passando pela minha mãe e as mulheres da sua geração, até as mulheres da minha própria geração. Sempre estive cercada de mulheres muito fortes, cheias de personalidade e talento. Por outro lado, sempre senti o peso daquilo que o filósofo alemão Adorno identificou como a característica principal da condição feminina: a captura das mulheres dentro da lógica masculina. Sinto que ainda hoje nos identificamos com o desejo que o homem inventou para si e busca nossa parceria para satisfazer. Mas sinto também que há mudanças substanciais acontecendo, capitaneadas pelos movimentos identitários. Estamos vivendo um momento muito potente.

Quando da retirada de O banquete da competição no Festival de Gramado por causa da morte de Otavio Frias, você argumentou que o encontro “entre ficção e realidade” poderia gerar “possíveis interpretações equivocadas”. Há como assistir a O banquete e não pensar em Frias, Giulia Gam, Bete Coelho, por exemplo? Espera interpretações equivocadas agora que o filme chega aos cinemas?

Se não houver eu terei falhado. O banquete é inspirado numa infinidade de pessoas com quem convivi desde pequena. As tangências com a figura pública do Otavio serviram para criar o pouco de trama que existe nesse argumento. Uma carta aberta ao presidente, a ameaça de prisão (que, aliás, nem sei se existiu). Estive em volta de mesas com artistas, atores e jornalistas a maior parte da minha vida. O banquete é tanto sobre o Otavio e Bete e Giulia quanto é sobre mim mesma e centenas de outras figuras incríveis que conheci. Ao não me afastar muito de fatos da vida real, corri o risco dessas interpretações. Essa foi a razão para tirar o filme de Gramado. Evitar a sobreposição de vida e ficção naquele momento tão inoportuno.

Que reflexos da recepção crítica de Vazante você levou para O banquete?

Filmei O banquete bem antes de lançar Vazante. Fiz O banquete graças ao Beto Amaral; e Vazante graças ao Beto e à Sara Silveira, com absoluta liberdade e convicção. E espero continuar a filmar assim.

Vazante tratava de um passado histórico para tentar falar de seus reflexos no presente. O banquete é ambientado em um passado também histórico, mas muito mais próximo. É a sua maneira de fazer também uma reflexão sobre o Brasil atual?
Acredito que sim. Gosto de imaginar que o cinema é um lugar privilegiado para refletir, investigar, desvendar. Invento hipóteses e tento criar situações dramáticas para explorá-las. Em Vazante, foi a hipótese da miscigenação brasileira ser fruto do estupro e não de relações voluntárias entre senhores e suas mulheres – meninas brancas e escravas negras. Em O banquete foi o conceito da captura das mulheres pela lógica do desejo masculino. Tento criar mundos para suscitar discussões sobre nossa condição.

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