'O Paciente' reconstitui dias finais de Tancredo Neves às vésperas da posse

Sérgio Rezende lança amanhã o longa sobre os momentos finais do político que 'uniu o país na esperança (quando foi eleito pelo voto indireto) e no desespero (quando morreu)', diz o diretor

por Mariana Peixoto 12/09/2018 08:00
FOTOS: MORENA FILMES/DIVULGAÇÃO
O roteiro do filme foi feito a partir do livro do historiador Luis Mir, que teve acesso aos prontuários dos hospitais onde Tancredo foi operado (foto: FOTOS: MORENA FILMES/DIVULGAÇÃO)
Às vésperas da posse, o presidente eleito que faria a transição entre a ditadura e o regime democrático é internado às pressas. A imprensa e o meio político correm para o hospital. Os médicos, que em um momento inicial o diagnosticaram com apendicite supurada, mal conseguem chegar ao bloco cirúrgico – o hospital está tomado por uma multidão. Tudo deve ser realizado na maior discrição possível, mas não há como. A sala de cirurgia é tomada por médicos e não médicos – pelo menos 25 pessoas.

Tancredo Neves deu entrada no Hospital de Base do Distrito Federal em 14 de março de 1985, dia anterior à posse (que ele nunca tomou) como o primeiro presidente civil do Brasil após 21 anos sob o jugo dos militares. De lá, ele só saiu 12 dias mais tarde, rumo a São Paulo, onde foi internado no Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas. Foi no hospital paulista que ele morreu, em 21 de abril. Sua declaração de óbito registra como causa da morte falência de múltiplos órgãos decorrente de septicemia.

Resumida, esta história é de pleno conhecimento público. Mas seus detalhes, não. Vista sob a mira de uma lupa, a narrativa de O paciente – O caso Tancredo Neves, filme de Sérgio Rezende que estreia nesta quinta-feira (13), é tão absurda que, em mais de um momento, pensamos que a ficção deu uma torcida na realidade. Em uma das sete cirurgias a que Tancredo foi submetido ao longo de 38 dias, ele ficou com o abdômen aberto por um tempo considerável, porque o Hospital de Base não tinha o fio de vicryl (fio de sutura).

Othon Bastos interpreta o personagem-título; Esther Góes é dona Risoleta, mulher de Tancredo; Leonardo Medeiros, Dr. Pinheiro Rocha, o primeiro cirurgião que o operou; Paulo Betti, Dr. Walter Pinotti, o cirurgião paulista chamado às pressas a Brasília e que assumiu o caso a partir da segunda cirurgia; Emílio Dantas vive Antônio Britto, porta-voz do presidente eleito; Lucas Drummond é Aécio Neves, na época secretário de Tancredo.

“O paciente não é um filme sobre Tancredo Neves, mas sobre o final da vida dele. (Lançar o filme) A três semanas das eleições é muito bom, pois a marca mais clara do Tancredo é a do conciliador. Muita gente via isso como um defeito. Para mim, é uma qualidade. Ainda mais com esse radicalismo em que estamos nos afundando cada vez mais”, afirma Rezende.

O longa nasceu do livro homônimo, publicado em 2010 pelo historiador e pesquisador médico Luis Mir. Naquele março de 1985, Mir conheceu Tancredo um dia antes de sua internação. Chegou a vê-lo depois uma única vez. “Estava indo para uma recepção na embaixada da então União Soviética quando chegou a notícia de que o presidente iria fazer exames no Hospital de Base. Em vez de ir para a embaixada, fomos para o hospital. Cheguei a vê-lo saindo do Galaxy de robe”, conta Mir.

ENTREVISTAS

No livro, o autor refez todo o percurso da internação e morte de Tancredo. Entrevistou os médicos que participaram do caso (foram 42 entrevistas) e teve acesso a prontuários e documentos tanto do Hospital de Base quanto do Instituto do Coração. “Aquela famosa frase ‘eu não merecia isso’ foi dita por ele logo após a chegada ao Incor, quando foi fazer uma cintilografia. Três médicos que participaram do exame me confirmaram a frase”, afirma Mir.

E foi pautado na pesquisa de Mir (e em reportagens de TV e jornais) que Rezende construiu o filme. O roteiro de Gustavo Lipsztein deixa de lado o político e concentra-se na figura de Tancredo e no corpo médico que o acompanhou. Nos bastidores, o que se vê é briga de egos, dissimulação e manipulação de informações. Um bom exemplo está ainda no início da narrativa. Oficialmente, a primeira cirurgia foi bem-sucedida. Pois Tancredo teve uma parada respiratória e quase morreu – na época, não se falava isso.

Mir, que teve contato com algumas versões do roteiro, afirma que 80% do que está no filme realmente aconteceu. O que é ficção são algumas conversas privadas, como relata Rezende, que, com O paciente, realiza seu sexto filme sobre um personagem ou história real. “Aprendi ao longo dos filmes que existem coisas que não há como ter registro. Como, por exemplo, o que o Lamarca falou para o Zequinha dois minutos antes de ser metralhado. Você tem que entrar um pouco no coração e na mente dos seus personagens”, diz o diretor, que estreou em longas em 1980, com O homem da capa preta (sobre Tenório Cavalcanti) e já dirigiu filmes sobre o Visconde de Mauá, Zuzu Angel, Carlos Lamarca e Antônio Conselheiro.

Rezende fala em “thriller médico” quando se refere ao longa-metragem. O tom um tanto burocrático da narrativa não combina com essa definição. Ainda que a história tenha grandes momentos, acompanhamos a agonia do personagem sem sentir emoção – que fica reservada para a parte final, com as imagens documentais do episódio da morte de Tancredo.

É um filme para qual geração? Aquela que acompanhou o processo de redemocratização do Brasil ou a mais jovem, que vê Tancredo apenas como o avô de Aécio Neves? “Nem uma nem outra. É um filme com uma história emocionante para quem gosta de cinema. É um filme que não serve a políticos de nenhuma natureza, pois ele fala do Brasil, dos anseios do povo brasileiro, já que Tancredo uniu o país na esperança (quando foi eleito pelo voto indireto) e no desespero (quando morreu)”, diz Rezende.



Um ator em pele de “raposa”

Othon Bastos está com 85 anos, 10 a mais do que Tancredo tinha pouco antes de morrer. Para viver o personagem histórico, o ator só raspou o centro da cabeça para ficar com a calvície característica do político. “Pode ser que eu esteja mais gordo”, admite ele, que teve apenas 15 dias para se preparar para o papel – na época das filmagens, Bastos havia terminado de gravar sua participação na série Carcereiros.

“Não estudei a vida do Tancredo nem a política da época. Apeguei-me ao momento humano dele dentro de um hospital, o de um homem lutando desesperadamente para sobreviver. A todo tempo eu me perguntava como me sentiria se estivesse em uma situação daquelas”, diz o ator.

No filme de Rezende, Tancredo tem poucas cenas realmente dramáticas. A mais forte delas, que faz um retrato interessante da chamada “raposa” da política mineira, é um flashback. Tancredo, ainda no início da narrativa, relembra de uma história de quando era promotor, na década de 1930. Ele havia condenado um homem pelo assassinato da mulher.

O assassino, que cumpriu pena, reencontrou-o anos mais tarde numa barbearia. Chamado Jesus, o homem que matou a mulher é o barbeiro e se lembra de Tancredo quando está com a navalha no pescoço dele. “Aquilo é humor puro, pois ele conta o fato com muita ironia”, comenta o ator. Num momento posterior da trama, essa passagem ganhará um tom mais melancólico.

Othon Bastos, que viveu intensamente o período do início da redemocratização e das Diretas Já – “Lembro-me de que fomos para a rua, gritamos pela liberdade e abaixo a ditadura, corremos e fomos detidos” – acha que o filme vem em boa hora. “Estamos vivendo em uma época de pusilânimes. É uma loucura. E são poucos aqueles em quem podemos acreditar.”

CAUSA OCULTA

Eleito por voto indireto depois de uma impressionante campanha popular, Tancredo Neves, atormentado por dores no abdômen – que ocultou enquanto pôde –, foi internado no Hospital de Base de Brasília e operado. Foi a primeira de uma série de sete cirurgias malsucedidas (um dos pulmões já saiu danificado da cirurgia inicial) a partir de um diagnóstico equivocado. Após ser descartada a apendicite, a versão oficial informava que Tancredo havia sido vítima de uma diverticulite. O presidente eleito, de acordo com Luis Mir, tinha leiomiossarcoma, um tumor canceroso que estava “pendurado numa porção do intestino delgado”. “Mas ele não morreu do tumor”, diz Mir, que agora luta para conseguir a liberação, via Conselho Federal de Medicina e dos conselhos regionais de São Paulo e do Distrito Federal, dos processos éticos e disciplinares das sindicâncias anunciadas na época.

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