Premiado em Berlim e Gramado, filme paraguaio As herdeiras estreia em BH

Primeiro longa de Marcelo Martinessi é ''metáfora de seu país'', diz diretor ao Estado de Minas

por Silvana Arantes 30/08/2018 08:00

IMOVISION/DIVULGAÇÃO
Ana Brun, premiada como melhor atriz no Festival de Berlim, é Chela, a protagonista (foto: IMOVISION/DIVULGAÇÃO)
“Oh, louca divina, que canta e que chora, que ri e que reza; atreva-se!”

Em As herdeiras, o multipremiado filme do diretor paraguaio estreante em longas-metragens Marcelo Martinessi, que chega nesta quinta-feira (30) aos cinemas brasileiros, Angy (Ana Ivanova) recita os versos do poeta Manuel Ortiz Guerrero (1897-1933) como sendo seus.

O atrevimento ganha sentido de homenagem, e não de apropriação indébita, nesta história com a qual Martinessi critica “uma elite que não aprecia a beleza, que não entende a poesia, que tem uma dívida gigante com sua riqueza cultural”.

Trata-se da elite paraguaia, da qual Martinessi faz parte. Talvez por isso o filme (no qual ele assina também o roteiro) tenha sido capaz de desenhar um retrato tão sutil e convincente das relações de classe nesse país “que sempre teve um romance com seus ditadores. O ditador (Alfredo Stroessner) foi embora para Brasília em 1989, mas o sistema repressivo ficou  na escola, na família, na sociedade”, como aponta o diretor. “E me preocupa viver num país em que temos dificuldade para nos relacionar como iguais, no qual sempre buscamos alguém que nos proteja, onde há sempre essa relação de dependência.”

A trajetória particular que metaforiza o contexto nacional é a de “uma mulher que vive presa a uma classe social e a uma relação e que, quando seu cônjuge vai para uma prisão real, começa um lento processo de recuperação”. A mulher em questão é Chela, papel que deu a Ana Brun o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, em que Martinessi também foi reconhecido com o troféu Alfred Bauer, destinado a filmes que “abrem novas perspectivas na arte cinematográfica”.

O cineasta evitou dar a Chela um marido, porque não queria se meter “em questões de gênero, sobretudo num país em que há enorme violência física contra a mulher”. Tendo Chiquita (Margarita Irun) como companheira há décadas, a vizinha Pituca (María Martins) como a pessoa que involuntariamente colabora com seu processo de transformação e a faz conhecer Angy, e Pati (Nilda Gonzalez) como a nova fiel empregada, o mundo de Chela é essencialmente feminino. Por ele ainda circulam muitas mulheres endinheiradas, na qualidade de potenciais compradoras dos objetos de valor que Chela coloca à venda, na tentativa de diminuir as dívidas de Chiquita – razão de seu encarceramento.

O fato de um casal em decadência econômica manter uma empregada pode parecer muito inverossímil ao público de países europeus e asiáticos aos quais Martinessi tem levado seu filme. “Mas, na vida real, vive-se assim. As domésticas no Paraguai são tão mal pagas que acabarão sendo o último luxo ao qual essas mulheres se agarraram”, explica o diretor e roteirista.

DESISTÊNCIA Pouco antes do início das filmagens e depois de um longo trabalho do diretor com as intérpretes para desenvolver seus personagens, a protagonista anunciou a Martinessi que havia desistido do papel. Atriz bissexta e advogada estabelecida, ela temia que o fato de viver uma mulher lésbica num filme acabasse tendo impacto negativo em sua carreira nos tribunais.

No momento da formação do elenco, Martinessi ouviu de seus coprodutores estrangeiros a sugestão de escalar atrizes internacionalmente famosas, portanto, não paraguaias. Simplesmente pensar nessa hipótese fez o diretor sentir que “todo o filme vinha abaixo”, pois rodá-lo com um elenco estrangeiro “absolutamente não faria sentido” com o que As herdeiras queria dizer.

Perder sua protagonista às vésperas de iniciar as filmagens era outra inesperada maneira de o projeto ir ao chão. O desastre foi evitado com uma solução que não poderia ser mais cinematográfica. Ana Patricia Abente Brun, conhecida como a advogada Patricia Abente, reviu sua decisão de abandonar As herdeiras, mas resolveu que apareceria nos créditos como Ana Brun, o nome pelo qual não é identificada. Ou melhor, não era.

O (imprevisível) sucesso de As herdeiras, premiado no Festival de Berlim, aclamado pela crítica, vendido para 30 países, vencedor de quatro Kikitos no Festival de Gramado (melhor filme, diretor, roteiro e atriz) fez Ana Brun viver um fenômeno semelhante à meteórica ascensão de Daniela Vega, estrela do chileno Uma mulher fantástica, de Sebastian Lellio, que também começou sua carreira internacional em Berlim e terminou vencendo o Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano.

É um percurso muito coerente com o fim da estrofe de Manuel Ortiz Guerrero que Martinessi colocou nos lábios de Angy em seu filme: “Atreva-se sempre; esse é um grande culto, que poucos professam”.

 

Veja o trailer:

 

Diretor viveu no Brasil para finalizar o longa 

As herdeiras tem coprodução do selo brasileiro Esquina Filmes, de Júlia Murat. Alemanha, Noruega e França também se envolveram no financiamento de seu orçamento – de US$ 700 mil. A parceria com o Brasil fez com que Marcelo Martinessi tivesse uma assistente de direção brasileira (Flávia Vilela) e o som de seu filme foi feito em São Paulo, onde morou por um mês para acompanhar de perto o trabalho.

Viver em São Paulo não era inédito na vida do cineasta. Após o golpe que depôs Fernando Lugo da Presidência do Paraguai, Martinessi, que à época trabalhava na TV pública de seu país, decidiu se afastar. Passou um tempo na capital paulista e outro em Londres, onde havia estudado cinema.

“Fiquei mais distante e pensando no meu país e na classe a que pertenço”, diz o cineasta. Ele julga que a distância foi positiva para o resultado do roteiro, porque lhe proporcionou certa perspectiva. “O Paraguai é um país que asfixia em muitos sentidos. Cada vez que chego, sinto que é uma grande prisão – de classe social, de sobrenome, de relações.”

As herdeiras foi escrito em 2014, em Paris, durante uma residência artística oferecida pela Cinéfondation, braço do Festival de Cannes. Mas, uma vez pronto, o filme foi parar no Festival de Berlim, onde Martinessi se sentiu pouco à vontade. “Um festival tão grande assim me soa intimidador. Com um filme em competição, há muito o que fazer – muito tapete vermelho, muita atenção da imprensa, muitas festas. No meu caso, quase posso dizer que não sentia nenhuma emoção. É como se estivesse fazendo um papel. A emoção acho que veio depois.”

A ausência de uma indústria cinematográfica propriamente dita no Paraguai – o país produz aproximadamente quatro longas por ano – faz com que ele seja um país invisível no planeta do cinema, como Martinessi observou em seu encontro com a imprensa em Berlim, após a projeção do filme. Mas nem tudo são desvantagens. “Também temos a chance de não ter uma indústria que te imponha limites na hora de rodar, e eu queria ter a liberdade de filmar algo não excessivamente preparado”, afirma.

Amigos e parentes dos membros da equipe fizeram as vezes de figurantes. As cenas do roteiro ambientadas no cárcere foram rodadas num presídio real e incluem um monólogo da atriz Natalia Calcena  inspirado na história de uma das internas. Ou seja, em As herdeiras, Martinessi desfruta da liberdade de construir um mundo próprio em que a ficção é legítima herdeira da realidade.

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