Salas da cidade não exibem filmes de destaque da temporada, como 'O insulto' e 'Corpo e alma'

Conflito entre distribuidores e exibidores fortalece o streaming

por Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Mariana Peixoto 08/02/2018 20:03

Candidato da Hungria ao Oscar de filme estrangeiro, Corpo e alma, de Ildikó Enyedi, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, chegou ao Brasil em 21 de dezembro. Seu concorrente na mesma categoria, o libanês O insulto, de Ziad Doueiri, é exibido no país desde ontem.

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'O insulto' estreou nesta quinta (8) nas salas do país e pode ganhar o Oscar em março, mas é ignorado em Belo Horizonte (foto: Imovision/divulgação)

Os dois longas não estrearam em Belo Horizonte, apesar da visibilidade que indicados da Academia de Hollywood geralmente ganham. Pode ser que ainda entrem em cartaz, pois a cada semana uma pequena luta se instaura entre distribuidoras e exibidoras para conseguir uma sala de exibição. As possibilidades são pequenas, pois semanalmente há uma nova lista de produções inéditas para estrear.

“É inacreditável. Belo Horizonte se tornou a pior cidade do Brasil para lançar um filme”, afirma Jean Thomas Bernardini, da Imovision, distribuidora dos dois filmes supracitados e líder no setor de cinema de arte. No passado o terceiro mercado do país, hoje a capital mineira perde para Porto Alegre, Salvador e Recife. Belo Horizonte ganha das capitais gaúcha, baiana e pernambucana em número de salas. Levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) de 2016 coloca a cidade em terceiro lugar no país: São Paulo encabeça a lista, com 1.031 salas, seguida pelo Rio de Janeiro (366) e por BH (259).

O caso dos dois concorrentes ao Oscar não é único. A lista de filmes recentes que não chegaram à capital mineira passa também por produções como Artista do desastre, de James Franco, candidato à estatueta de roteiro adaptado. O longa estreou em 25 de janeiro apenas em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Niterói. Em comunicado, a distribuidora Warner Bros. apenas afirmou: “A definição do circuito de exibição é feita em parceria com os exibidores, sempre usando como base o perfil do filme e do público de cinema.”
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'Artista do desastre' só pode ser visto em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Niterói (foto: Warner/Divulgação)

“Lançamento regional é uma estratégia para filmes mais incertos comercialmente. Se não chegam a BH é porque não foram bem nas praças onde foram testados”, explica o distribuidor Bruno Wainer, da Downtown Filmes. Um bom exemplo disso é a refilmagem de Dona Flor e seus dois maridos, produção comercial com elenco televisivo (Juliana Paes, Marcelo Faria e Leandro Hassum), que foi lançada entre novembro e dezembro no Norte e Nordeste e, posteriormente, em São Paulo e Rio.

Bernardini lamenta a dificuldade de exibir filmes em BH – a lista de produtos da Imovision não lançados reúne outros seis títulos, desde maio de 2017. “O cinema independente não pode desaparecer. E a gente sabe que quando uma pessoa deixa de ir ao cinema por mais de seis meses, dificilmente ela volta”, diz.

“Belo Horizonte é, obviamente, uma cidade importante e estratégica. Mas só existem três espaços (que se dedicam à produção independente, mais autoral): o Belas Artes, o Ponteio e o 104”, comenta Ana Luiza Beraba, da distribuidora Esfera. As três salas do Belas Artes exibem filmes autorais; o Ponteio, com quatro, divide sua programação entre fitas independentes e grandes lançamentos. O 104 está fechado desde 21 de dezembro.

“A gente está vivendo um fenômeno no sistema de distribuição e exibição. Com o cinema digital, houve um boom de novas distribuidoras. Há cada vez mais títulos para serem lançados no Brasil. Só que o parque exibidor não aumentou na mesma frequência. BH é o maior retrato desse funil”, explica Ana Luiza.
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'Corpo e alma' é exibido desde dezembro, mas passou longe da cidade mineira (foto: Imovision/divulgação)

De acordo com a Ancine, em 1971, havia 2.154 salas de cinema no Brasil – a população do país, em 1970, era de 93 milhões de pessoas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2016, o país passou a contar com 3.160 salas, contra uma população de 207 milhões de pessoas (dados de julho de 2017).

“O México, país menor do que o nosso, tem hoje 6 mil salas. Por aí a gente vê como o gargalo da exibição é um problema enorme”, continua Ana Luiza, autora do estudo “Cinema de arte no Brasil – 2011/2013”, publicado no Filme B, o maior portal sobre o mercado de cinema no país. Um dos dados que o estudo apontou foi que 56% dos títulos que chegam às salas são de arte, mas apenas 4% delas exibem essas produções.

PROBLEMAS Ana Luiza sente o efeito desse estudo na própria Esfera. Criada em 2012, a distribuidora já lançou 54 longas-metragens no país – 27 não estrearam em BH. “O circuito autoral de exibição é bem espalhado, com salas nas principais capitais. Isso faz com que a gente consiga uma capilarização. Mas, geralmente, são pequenas salas, e muitas enfrentam problemas sérios.”

Desde 2014 à frente do Belas Artes, Adhemar Oliveira, do grupo paulistano Cinearte, afirma que houve “queda de público” desde que assumiu o cinema. Para ele, o grande desafio na programação das três salas belo-horizontinas é “fazer caber os títulos em lançamento”. Acrescenta ainda que as produções da corrida do Oscar Corpo e alma e O insulto não estrearam no Belas “somente por falta de espaço”.

O 104, por seu lado, vive um problema maior, que pode afetar o futuro da sala, localizada na região central. Em 2017, ela ficou aberta de março a dezembro graças a recursos provenientes de incentivo fiscal. Este ano, a situação está pior. Produtor-executivo do espaço, Gustavo Ruas explica que o 104 tem, por ora, garantidos apenas seis meses de funcionamento com recursos próprios. O cinema volta a funcionar em março.

“Como não conseguimos captar recursos pela lei federal (de incentivo), estamos tentando via lei municipal. A expectativa é de que até setembro ou outubro tenhamos aporte financeiro por meio da captação municipal”, diz Ruas. Dedicada exclusivamente ao circuito independente, a sala exibe três títulos por semana. “A demanda é grande, então tentamos buscar filmes que tenham algum potencial de público. A ideia é mesclar a programação artística com produções experimentais e outras mais populares”, acrescenta.

No caso do 104, “populares” são filmes que tenham alcançado alguma repercussão no circuito de arte. Ano passado, por exemplo, a sala exibiu Moonlight, o vencedor do Oscar. Procurada pelo EM, a Cineart, proprietária do Ponteio (e maior exibidora do estado), não quis se pronunciar.

 

Independência ou streaming


Diretor do Festival de Cannes, Thierry Frémaux, em sua estreia atrás das câmeras, empreendeu um trabalho de ourivesaria. Dos milhares de filmes curtos que os irmãos Louis e Auguste Lumière, chamados pais do cinema, fizeram, Frémaux selecionou e recuperou trechos de 114 para construir o documentário Lumière! A aventura começa.

Lançado no Brasil em dezembro – Frémaux participou de sessões no Rio de Janeiro e em São Paulo –, Lumière! é mais um exemplo de produção importante que não chegou a BH por falta de sala. Resta ao cinéfilo recorrer ao streaming. O longa está disponível nas plataformas Now, iTunes, Vivo Play, Google Play e YouTube, com preços para locação que variam de R$ 9,90 a R$ 14,90.

“Principalmente no mercado do filme independente, o streaming é um segmento complementar, que traz receita extra e permite que a produção tenha abrangência nacional. Os filmes independentes podem estrear nas capitais, mas raramente chegam à segunda cidade dos principais estados. E isso não é o Brasil”, comenta Fábio Lima, da Sofá Digital.

Criada há cinco anos e com atuação na América Latina, a empresa é uma agregadora digital, fazendo a ponte entre as distribuidoras independentes e as plataformas. Os lançamentos do streaming obedecem ao modelo do cinema: a cada quinta-feira, novos filmes chegam às plataformas. A Sofá, inclusive, criou um serviço para orientar os cinéfilos a respeito dos lançamentos, dada a quantidade de produções. O usuário se cadastra no site filmmelier.com para receber a newsletter de acordo com as preferências que indicou.

Lima comenta que o mercado de streaming no Brasil tem algumas particularidades. “Filme de terror (com bom mercado no circuito comercial) não vai bem. A gente deve lembrar que, no Brasil, o pagamento é feito via cartão de crédito, o que costuma ser um inibidor. Porém, aqui, o filme francês funciona bem no streaming, enquanto no México não”, conclui.

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