Crianças devem ficar longe das manifestações?

Atos de intolerância também atingem a vida dos pequenos. Mas é possível aproveitar as oportunidades que surgem para transmitir valores importantes para as novas gerações

por Valéria Mendes 28/03/2016 09:50
Cristina Horta/EM/D.A Press
publicitária Silvia Niffenegger e o marido, Leonardo Correa, optaram por não levar Isa, 11, e Martim, 3, às manifestações: "O clima de intolerância está muito acirrado" (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
A rivalidade no futebol, a intolerância no trânsito, a fila do supermercado, as manifestações do dia 13, as manifestações do dia 18, a sensação de um país dividido. Toda e qualquer situação vivida pelas famílias e suas crianças são janelas de oportunidades para conversar e transmitir às novas gerações valores como tolerância, respeito, cidadania – atitudes que precisam estar presentes na construção de um país melhor e desejo que une brasileiros e brasileiras de todos os cantos. Nada é tão atual e tem consumido tanta energia quanto o acirramento da disputa política que tem impactado não apenas o rumo do Brasil, mas a vida de cada um, incluindo meninos e meninas de todas as idades. “Educar tem muito a ver com olhar para o mundo junto com a criança e falar sobre o que se vê”, afirma a professora do Departamento de Psicologia Social do Instituto Social de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Belinda Mandelbaum.

Para a especialista, a decisão de levar crianças e adolescentes a manifestações deve vir acompanhada do sentido que a família dá para esse ato. “Levar os filhos é uma forma de permitir à criança uma experiência de um evento público que é parte da história do nosso país. Os pais devem contextualizar o que está ocorrendo dentro da capacidade de entendimento de cada criança”, afirma.

No entanto, com cada vez mais gente ocupando as ruas e o clima de animosidade se acirrando, há que se ter cuidado para não fazer desse momento uma experiência negativa. “Se os adultos estão munidos de raiva, polarizando o discurso entre o bem e o mal, essas atitudes não ampliam a consciência da história do país. Provavelmente, temos aí pessoas manipuladas por um discurso de ódio e vazio de significado”, pondera.

A psicopedagoga e psicanalista Cristina Silveira considera que os aspectos relativos à discussão sobre o futuro do país são positivos e a nova geração de adolescentes e de crianças está tendo uma oportunidade única de poder participar desse processo com liberdade, ao contrário das gerações anteriores, que não puderam se expressar dessa forma em momentos históricos, como foi no caso da ditadura. “O exercício da cidadania é um direito de qualquer pessoa, algo que deve ser aprendido e respeitado ao longo do desenvolvimento das crianças e adolescentes, com orientação baseada na ética”, afirma.

Experiência positiva
Arquivo Pessoal
O engenheiro Vinicius Guimarães Villaça diz que o interesse dos filhos com a situação política atual veio da escola (foto: Arquivo Pessoal )
A história da estudante Érica Miranda Villaça, 12 anos, é exemplo de como o envolvimento nas questões políticas pode ser positivo. Desde as eleições do ano passado, ela e o irmão, André, 10, têm participado de manifestações. “Gosto de ir aos protestos, brinco, me divirto e sinto que estou ajudando o país”, conta. Tanto é que a jovem resolveu “fazer política” ao se candidatar e vencer as eleições deste ano para representante de turma.

No colégio onde Érica estuda, entre as funções de um representante de turma – cada classe tem dois eleitos, um menino e uma menina –, está a de fazer o mapa da sala “para evitar conversas paralelas e fazer a aula render”. Esse mapa é alterado mensalmente. Apesar de ser uma medida impopular, a jovem diz que está lidando bem com a situação, porque os colegas têm consciência de que o conteúdo está atrasado em relação a outras turmas do colégio. “Separar as turminhas é legal, pois é uma oportunidade de as pessoas sem muita afinidade se aproximarem um pouco”, diz.

Sobre as manifestações, a jovem diz que se sente motivada a participar porque, segundo ela, percebe no dia a dia a crise econômica pela qual o país passa. “Um das coisas que adoro fazer é comprar pela internet e sempre que o dólar sobe, eu fico triste”, exemplifica. A estudante diz que todos os seus amigos e amigas estão, em certa medida, envolvidos com os acontecimentos políticos atuais. “A nossa turma tem um grupo no WhatsApp e, no dia que o Lula foi levado pela Polícia Federal, conversamos bastante sobre isso”, conta.

Sobre o clima de intolerância, Érica diz que as pessoas têm motivos para estar com raiva e um deles é a corrupção. “Acho que brigar é um pouco exagerado, temos que respeitar a opinião do outro. Também não acho que uso de ‘palavrões’ seja certo, mas as pessoas têm motivos para ter raiva, muitas perderam o emprego”, argumenta.

DEBATES
Pai de Érica e André, o engenheiro Vinicius Guimarães Villaça diz que o interesse dos filhos com a situação política atual veio da escola. “À medida que esse interesse foi se intensificando no contato com o assunto pelas redes sociais, resolvemos abordar o tema também em casa. Somos uma família que está sempre presente nas manifestações”, relata.

Belinda Mandelbaum reforça que a escola, como espaço para produção de conhecimento, deve se envolver nessa discussão, promover debates dentro da sala de aula e mostrar que é possível divergir e conversar. “O adolescente já tem a capacidade de pensar sobre a situação política atual e ele deve ser ajudado nisso. Há elementos educadores nesse contexto e o fato de as pessoas estarem ocupando as ruas é um sinal em si de conquistas históricas. Essa história deve ser contada e o conhecimento que permite relativizar os pontos de vista é o caminho para a transformação individual e coletiva”, afirma. Para a psicóloga, a escola deve capitalizar esse momento para transformá-lo em aprendizagem, pesquisa e produção de conhecimento. “A política é um assunto que está na boca do povo e isso, por si só, é um elemento mobilizador da aprendizagem”, observa.

O despertar da consciência política

A psicopedagoga e psicanalista Cristina Silveira reforça que consciência política é construída pela criança de acordo com as orientações e modelos ambientais, sejam eles da família, da escola ou da sociedade em geral. “Essa consciência deve ser edificada sob pilares de justiça e dignidade social e expressa por atitudes de respeitabilidade. Uma criança ou um adolescente está em processo de formação e, em geral, não têm ainda maturidade psíquica para discernir exatamente sobre um processo político como o que estamos vivenciando atualmente. Cabe aos adultos que os educam clarear os fatos e informar, de forma adequada a cada idade, aquilo que eles estão preparados para apreender”, diz.

Para ela, gritos e manifestações inflamadas podem até impressionar as crianças, mas ensinam muito pouco. “Os adultos devem ter em mente que a responsabilidade é muito grande quando se tem crianças que se espelham em suas atitudes para construir sua visão de mundo. Nesse momento inflamado, crianças e adolescentes precisam entender que, apesar de ter liberdade para pensar, existem regras sociais que limitam algumas atitudes”, salienta. Belinda Mandelbaum concorda: “Infelizmente, estamos vendo pouco espaço para o debate. O próprio ato de bater panela traz, em si, o silenciamento do outro, o ensurdecer-se”.

A advogada Bela Aires, mãe de Maria Clara, de 8, e Maria Júlia, de 5, também tem incluído as crianças nas idas às manifestações. “Vou naquelas que julgo ser mais tranquilas e levo minhas filhas porque acho importante mostrar a elas que é possível defender o que se pensa sem, com isso, deslegitimar o pensamento do outro. Para mim, o importante é que minhas filhas saibam expressar suas opiniões, seja qual for o assunto, mesmo que sejam diferentes da minha. Inflamar o ódio é errado e desnecessário, mas temos que educar as crianças para que elas conheçam a história política do país onde vivem”, diz.

Arquivo Pessoal
William Fernandino Vasconcelos vai com a esposa Cássia e os filhos Cayque e Bertha às manifestações: "O que quero transmitir a eles é que o direito à manifestação é legítimo, uma forma que a população tem para expressar a opinião sobre os rumos do país" (foto: Arquivo Pessoal )


SOCIALIZAÇÃO
O consultor em educação corporativa William Fernandino Vasconcelos, de 44, também tem levado os filhos, Cayque, de 10, e Bertha, de 7, às manifestações que têm ocorrido em Belo Horizonte. Para ele, a socialização está incluída no processo de educação das crianças, que precisam aprender a lidar com as diferenças e respeitar cada indivíduo. “O que quero transmitir a eles é que o direito à manifestação é legítimo. É uma forma que a população tem para expressar a opinião sobre os rumos do país. Obviamente, fico preocupado com a questão da segurança, com as situações de confrontos que temos assistido pela TV. Por isso, chegamos cedo e não ficamos muito tempo. O importante, para mim, é que meus filhos tenham consciência de que é preciso batalhar pelas coisas que a gente acredita e que a política influencia a vida de todos. Vimos pessoas manifestando de forma errada, faço questão de pontuar esse comportamento e mostrar que não é xingando e ofendendo que a gente será ouvido”, salienta.

Respeito cabe em qualquer lugar

Professora titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP Isabel Cristina Gomes vê com ressalvas a decisão de levar crianças em manifestações, em razão do clima de intolerância. “Uma coisa é a criança pequena, estando num ambiente público, presenciar uma situação de expressão de raiva. Outra, é quando os pais estão diretamente envolvidos. A criança que vê os pais expressarem condutas raivosas, mesmo que seja contra políticos ou o juiz de uma partida de futebol, vai reproduzir essa atitude. É função parental evitar atitudes agressivas na frente da criança e respeitar o outro. O primeiro olhar da criança na construção de seus valores morais, sociais e políticos está direcionado para família”, avalia.

Para a especialista, famílias que estão adotando condutas raivosas em manifestações públicas ou dentro de casa, usando xingamentos, como palavras de ordem, e desrespeitando o ponto de vista do outro, não estão educando. “O que enxergo em situações como essa é a individualidade dos adultos sendo colocada em primeiro lugar quando comparada à função parental. Acho antiético os pais que saem do lugar de educadores ao agirem de forma agressiva diante dos acontecimentos políticos atuais”, salienta.

A especialista chama a atenção, ainda, para os cuidados que as famílias precisam ter para não transmitir às crianças a noção de valores ambivalentes. “É importante ser coerente entre o que se fala e o que se demonstra”, ressalta. Um exemplo claro do perigo dessa ambivalência é a questão do castigo físico, já proibido por lei no Brasil. Um pai ou uma mãe que bate para educar está transmitindo à criança que violência física e amor podem conviver.

DESIGUALDADE
A publicitária Silvia Niffenegger, de 43, mãe de Isa, de 11, e Martim, de 3, considera importante incluir a política como tema na educação dos filhos. Para isso, ela usa exemplos do dia a dia. “Minha filha outro dia me disse que todo mundo tem iPad. Aproveitei a oportunidade para conversar sobre desigualdade social e expliquei a ela que existem crianças sem acesso a caderno. Acho importante mostrar os privilégios que ela tem em relação às outras pessoas. Desde as últimas eleições presidenciais venho trabalhando essa temática dentro de casa, principalmente porque meninos e meninas vêm repetindo comportamentos agressivos em relação a políticos dentro do ambiente escolar. Da mesma forma que, no futebol, não deixo ninguém chamar cruzeirense de ‘Maria’. Somos atleticanos. Não acho certo usar palavrões para se referir a um político e a ninguém”, afirma.

Arquivo Pessoal
A advogada Bela Aires, mãe de Maria Clara, 8, e Maria Júlia, 5, acredita que é importante educar as crianças para que elas conheçam a história política do país onde vivem (foto: Arquivo Pessoal )
A publicitária acredita que o momento político atual deve ser aproveitado pelas famílias para estimular o diálogo. “Acho que mães e pais podem usar os exemplos diários para conduzir conversas sobre o direito do outro. Não deixo meu filho mais novo, por exemplo, falar que a camisa do time de futebol do colega é feia porque não é igual à dele”, observa.

A mãe de Isa e Martim, entretanto, optou por não ir a nenhuma manifestação, porque considera que o clima de intolerância está muito acirrado. “O clima geral é de agressividade e é impossível não se envolver em alguma medida. Na época das eleições, não se falava em outra coisa na escola, era um assunto das rodinhas de conversa. Desde essa época, nossa família, por exemplo, está rachada. No caso da Isa, usei o contexto familiar de divergência política para mostrar a ela que sempre existe mais de um lado para uma mesma história”, conta.

Para ela, o exemplo é o melhor ensinamento. “A criança observa o comportamento dos pais a todo momento. Não adianta fazer uma coisa errada e depois dar uma palestra sobre o que é certo. Minha filha me olha com orgulho quando paro na faixa de pedestres para uma pessoa atravessar, mesmo com motorista buzinando atrás da gente. Sou uma pessoa que está sempre com pressa e estressada, mas acho que consigo passar a essência de gentileza e respeito às regras e às diferenças”, diz.

Transformação para o bem
A raiva é um sentimento natural do ser humano e não precisa ser estimulada, seja em manifestação política seja em outras situações da vida, como trânsito ou futebol. “Os sentimentos fazem parte da natureza humana, mas o que devemos mostrar às crianças e aos adolescentes é que existem formas de comunicar a frustração, a contrariedade e a revolta sem violência. É importante transformar a raiva em palavras: falar e ouvir. Uma criança que vê o pai ou a mãe agindo de forma violenta se vê legitimada por eles a reproduzir o discurso de violência”, salienta Belinda Mandelbaum.

Para Cristina Silveira, se as crianças não encontram 'contenção psíquica' para os seus rompantes e experimentações de agressividade, elas vão manifestar tais comportamentos livremente, até que algum ambiente social imponha os limites necessários. “Não há a menor possibilidade de uma criança fazer aquilo que os pais apenas falam. O que elas aprenderão e repetirão são os comportamentos dos adultos vivenciados em seu cotidiano, no dia a dia, na prática. Portanto, a máxima que diz 'faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço', não existe no quesito educação dos filhos”, explica.

A especialista salienta, ainda, que é possível exercer a agressividade e a raiva de forma positiva. “São sentimentos que nos impulsionam para o enfrentamento da vida, que mune o ser humano de coragem e devem ser traduzidos em linguagem e atitudes. É essa transformação que deve ser ensinada e fazer parte da educação que nossas crianças necessitam e têm o direito de receber”, conclui.