'Imagine estar às vésperas de dar à luz e descobrir que as crianças estão nascendo com problemas'

Em Pernambuco, mães aguardam respostas sobre o destino de seus bebês nascidos no surto de microcefalia. Já são 1.236 casos suspeitos e 103 confirmados, situação que apavora as famílias e os especialistas

por Carolina Cotta 18/01/2016 09:46

Carolina Cotta
Juliana Pontes Souza, de 20 anos, aguarda o diagnóstico de Laura, que nasceu com a cabecinha medindo 31 centímetros, no interior de Pernambuco (foto: Carolina Cotta)
Recife – Mães ansiosas, com seus bebês quase sempre envoltos em mantas, com enormes laços de fita e gorros no tórrido calor, enchem os hospitais pernambucanos envolvidos no diagnóstico de microcefalia. Os olhares desconfiados surgem de todos os lados. Quem está ali por outro motivo quer matar a curiosidade e confirmar se está diante de um dos 1.236 casos que transformaram Pernambuco nos quatro últimos meses. Quem carrega um desses bebês no colo também “corre o olho” no do lado. Perceber que não estão sozinhas traz um certo conforto para essas mães. Nada de pais. Quase sempre elas estão acompanhadas das próprias mães, avós, tias e irmãs.

Na manhã da última quinta-feira, a sala de espera do Departamento de Infectologia Pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), era uma reunião de mulheres desconfiadas. E tristes. É lá, e no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) e no Hospital Barão de Lucena – os três hospitais de referência onde podem ser confirmados os casos suspeitos da Região Metropolitana do Recife –, que o surto de microcefalia mostra seu lado mais cruel. De repente, uma anomalia que atingia cerca de uma dezena de casos por ano em todo o estado parece uma condição comum.

 

Acompanhe a série 'Microcefalia: o mal que assombra o Brasil':

Especialistas não sabem dimensionar impacto da microcefalia na evolução das crianças 

Pesquisadores se debruçam sobre zika para confirmar relação com microcefalia

“Não sei o que vai ser da minha filha. Espero que ela seja uma criança normal, mas se ela tiver qualquer coisa vamos amá-la do mesmo jeito.” A incerteza de Juliana Pontes Souza, de 20 anos, acompanha a de outras mães de bebês diagnosticados ou com suspeita de microcefalia em Pernambuco. A família de Laura, que nasceu com o crânio medindo 21 centímetros, pouco sabe sobre a microcefalia e sua evolução. Apesar da condição ser descrita na medicina há anos, esta é a primeira vez que a anomalia congênita tem tantos diagnósticos, e pelo que tudo indica, por um vírus novo e sobre o qual pouco se sabe.

O desconhecimento não justifica, entretanto, as derrapadas do Ministério da Saúde. E do titular da pasta, que semana passada deu uma declaração infeliz enquanto anunciava o investimento em pesquisas para uma vacina contra o zika vírus. Marcelo Castro disse que não seria possível vacinar 200 milhões de brasileiros e que a estratégia se concentraria em pessoas em período fértil. E completou dizendo que torceriam para que essas pegassem zika antes, pois, assim, ficariam imunizadas pelo próprio mosquito. Mesmo reconhecendo como ágil o enfrentamento do ministério, especialistas criticam a rápida associação do surto com o vírus zika. Apesar das evidências serem muito fortes, ainda não há comprovação científica. Tudo ainda é uma suspeita. Uma suspeita forte.

Certo é que, no Pernambuco de hoje, temem-se duas coisas: tubarão e Aedes aegypti. Mas quem não está no mar curte a brisa com pernas e braços de fora. O surto de microcefalia atribuído, pelo Ministério da Saúde, ao vírus zika, está na boca do povo, mas ainda não foi capaz de mudar os hábitos da população. “O turista mal pergunta, mas quem é daqui não fala em outra coisa. Reclama das consequências da dengue, da chikungunya e agora do zika. As famílias estão com medo de ter entre elas um caso de microcefalia, mas não mudaram muita coisa por causa disso”, diz o taxista Leandro Gomes.

As praias de Boa Viagem e Porto de Galinhas estão lotadas. Segundo a Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur), as notícias sobre os casos de microcefalia não alteraram a expectativa de reservas para o verão; mas, claro, muitas grávidas deixaram de desembarcar na capital pernambucana, que notificou os primeiros casos de microcefalia, em outubro, e lidera em número de casos suspeitos.

REVOLTA E ACEITAÇÃO
A recepcionista Rosana Vieira Alves da Silva, de 25 anos, é uma das mães dessa geração especial. Com as filhas Vitória Evillen, de 7, Layane Sophia, de 2, e Luana, de 3 meses, aguardava a coleta de uma amostra de sangue da recém-nascida, diagnosticada com microcefalia, com uma expressão bem mais leve que a das outras mães ao seu lado. Luana também é um caso diferente, porque, apesar de nascida no meio do surto, teve um exame positivo para toxoplasmose e a mãe não relata sintomas de zika na gestação. Mas saber a causa é o que menos importa agora. A experiência como mãe lhe permite enfrentar a condição de Luana com mais serenidade.

“Quando me falaram que ela tinha a cabeça no limite do que poderia ter, fiquei doida. Só soube que algo estava errado quando ela nasceu. Amo-a demais. Fico vendo essas mães chorando e penso que a Luana, pra mim, é só alegria”, comentou. A microcefalia de Luana é muito sutil, quase imperceptível, mas as consequências começaram a aparecer. “Meu marido achou que era algo simples e que iria se resolver. Mas ela começou a ter crises epiléticas e ele se assustou.”

Fotos: Carolina Cotta/EM/D.A Press
A recepcionista Rosana Vieira encontra forças para enfrentar a condição da filha Luana com serenidade (foto: Fotos: Carolina Cotta/EM/D.A Press)
O jeito como Rosana curte sua filha é uma exceção. A maioria das mães não consegue conter as lágrimas à primeira pergunta. Carla Fernanda Reis da Silva, de 30 anos, com a pequenina Luane no colo, ainda aguarda o resultado da tomografia para ter o caso confirmado. Mas a cabecinha da filha é tão pequena que não sobram esperanças. A menina nasceu, dois meses atrás, com perímetro cefálico de 29,5cm. Carla não lembra de ter tido sintomas de zika na gravidez. Aos oito meses de gestação, ficou apavorada com o noticiário sobre a microcefalia. Semanas depois, aquilo se tornou sua realidade.

“Imagine o que é estar às vésperas de dar à luz e descobrir que as crianças estão nascendo com problemas. Quase fechando nove meses, fiz um ultrassom. A médica me alertou que ela tinha a cabeça pequena. Fiquei péssima. Sem comer, sem dormir. Só chorava. Tenho tristeza, raiva. Esperei tanto por essa filha... mas ela é especial”, lamenta a mãe, ainda longe da aceitação. Algumas desistem. Uma criança com microcefalia foi deixada em um abrigo no Recife. Outra foi rejeitada pela mãe, mas está sendo criada pelas tias.

Kits para grávidas
O teste para identificar simultaneamente dengue, zika e chikungunya será disponibilizado prioritariamente para mulheres grávidas, afirmou ontem, no Rio, o ministro da Saúde, Marcelo Castro. Um dia após a confirmação das três primeiras mortes por chikungunya no país, o ministro apresentou na Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) o novo kit de diagnóstico desenvolvido pela instituição. Atualmente é necessário realizar os três exames separadamente. Até o fim do ano, o ministério vai encomendar 500 mil kits. Durante a divulgação do kit, o vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico do Instituto Carlos Chagas, Marco Krieger, explicou que a leitura da análise sairá em duas ou três horas.

Bastidores do caos
Primeira a perceber o aumento de casos nas maternidades, neuropediatra pernambucana relembra a trajetória da situação inédita. Em apenas uma semana, foram 12 confirmações

Rafaela Gomes Pereira, de 21 anos, soube, ainda durante a gravidez, que a filha teria microcefalia. “No oitavo mês de gestação, o médico pediu um ultrassom de rotina e me perguntou se eu tinha alguma queixa. Na época, final de outubro, não se falava dos casos, logo depois tudo estourou. Ele me disse que ela teria esse problema. Deus sempre escolhe pessoas especiais para cuidarem de filhos especiais. Se fui escolhida, é porque sou capaz. Mas é difícil demais, porque a gente sempre quer um filho saudável. Mas foi melhor saber antes”, afirma a mãe de Rita Cecília, de 2 meses. Com a avó de Rita, Ilma Márcia Gomes, de 39, Rafaela viajou mais de 550 quilômetros, de Salgueiro ao Recife, para fazer os exames necessários à confirmação do diagnóstico.

Fotos: Carolina Cotta/EM/D.A Press
Ilma Márcia com a filha, Rafaela, e a neta, Rita Cecília: descoberta da microcefalia ainda na gravidez (foto: Fotos: Carolina Cotta/EM/D.A Press)
Ilma está “babando” na netinha. Quando soube da microcefalia, passou dois dias chorando, mas a aceitação de Rafaela a confortou. Mesmo assim, ela fez uma promessa para Santa Rita, a santa das causas impossíveis. “Ela se chamaria Ana Cecília, mas, quando soube da microcefalia, pedi a Santa Rita para que ela não nascesse com essa situação, mas que viesse com vida. Ela pesou 1,6kg ao nascer e o baixo peso era outra preocupação.” Não bastasse o sofrimento de ver a criança nascer com uma condição incapacitante, a família enfrentou uma situação constrangedora. “Fizeram fotos dela assim que nasceu e essas imagens circularam na internet. Diziam que eram cenas fortes, porque ela nasceu praticamente só com a face e com as perninhas para trás.”

Dois meses depois, as perninhas estão aparentemente normais. Segundo a neuropediatra Vanessa van der Linden, essas malformações estão sendo observadas em algumas crianças. “Não sabemos o mecanismo de ação do zika vírus. Se ele mesmo provoca as lesões, se libera uma toxina. Não sabemos se outras doenças associadas estão envolvidas. Tudo precisa ser pesquisado”, defende. Rafaela, como outras mães ouvidas pelo Estado de Minas, se nega a acreditar na relação da microcefalia com o zika. Mas teve os sintomas aos dois meses de gestação. “Sei até quando ela pegou”, conta Ilma. “Fomos passar o Dia das Mães em Arco Verde, onde tinha muitos casos de zika. Meu sobrinho estava doente. Assim que voltamos, Rafaela teve as manchas. Achei que era rubéola, mas o médico receitou dipirona e repouso.”

CARACTERÍSTICAS
Em 2014, Pernambuco registrou 12 casos de microcefalia. Em agosto de 2015, esse também foi o número encontrado, mas em uma única semana. Como neuropediatra, Vanessa  estava acostumada a ver crianças com infecção congênita no berçário. Mas uma por mês, ou mesmo uma a cada dois meses. Quando se deparou com cinco casos ao mesmo tempo, percebeu que havia algo estranho. Poucos dias antes, ela já tinha atendido um caso de microcefalia severa que chamou a atenção não só pelo tamanho da cabeça, bem menor que o padrão dessas anomalias, mas pelo fato de a mãe ter apresentado expressivas manchas vermelhas pelo corpo durante a gravidez.

Essa primeira criança logo passou por uma tomografia. Foi quando Vanessa identificou a presença de calcificações, que sugeriam, então, uma causa infecciosa, e não genética. A criança passou por exames para checar as possíveis infecções – citomegalovírus, toxoplasmose, rubéola, herpes e sífilis –, mas todos os resultados foram negativos. “Era uma das menores cabeças que eu já tinha visto, e ela tinha outra característica peculiar, que são dobrinhas pelo excesso de pele no couro cabeludo. Eu já ia começar a investigar se, apesar das calcificações, podia ser uma doença genética quando apareceram as cinco crianças na mesma semana”, lembra Vanessa.

Carolina Cotta/EM/D.A Press
"Nosso medo era que essas crianças voltassem para suas cidades. Quando se nasce com a infecção congênita, a investigação precisa ser rápida" - Vanessa van der Linden, neuropediatra do Hospital Barão de Lucena (foto: Carolina Cotta/EM/D.A Press)
Os casos eram semelhantes. Cabeças bem pequenas, calcificações e ventrículos grandes. O caso inicial, comparado com os novos cinco casos, mostrava outra particularidade. “O padrão de calcificação era muito diferente daquele provocado pelo citomegalovírus. Todas as crianças tinham calcificações parecidas, muito marcantes, concentradas logo abaixo do córtex”, lembra.

INVESTIGAÇÃO
A maioria das seis mães tinha apresentado manchas avermelhadas pela pele, chamadas exantemas ou rash cutâneo. Vanessa procurou ajuda da infectologista Regina Coeli, do Huoc. Os principais agentes causadores de microcefalia já tinham sido investigados. Era preciso checar outros vírus que também provocam manchas na pele. A dengue, teoricamente, não provoca infecção congênita por não conseguir acessar a placenta. “Nosso medo era que essas crianças voltassem para suas cidades. Quando se nasce com a infecção congênita, a investigação precisa ser rápida.”

Então, veio a surpresa. Quando Vanessa comentou os casos com a mãe, a também neuropediatra Ana van der Linden, ela contou que no Impi, onde atende, havia sete casos iguais. Vanessa ligou para outros hospitais e descobriu que também neles havia casos de microcefalia. “De repente, todo dia chegava um bebê. É tudo muito novo, mas o enfrentamento foi muito ágil. Em poucos dias, tivemos reuniões com o Ministério da Saúde e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas), fizemos um protocolo e começamos a notificar.”

CONFIRMAÇÃO
O fato de Pernambuco vir enfrentando uma epidemia de zika desde maio de 2015 colocou as suspeitas sobre o vírus. Entre seus sintomas, estão as manchas vermelhas. Ele já era epidêmico, e ser transmitido pelo mosquito explicaria a dispersão da doença por todo o estado.

Mas logo eles ultrapassariam as fronteiras de Pernambuco. E foram os casos na Paraíba que reforçaram as evidências de uma relação da microcefalia com o vírus zika. A identificação de uma possível microcefalia em dois bebês ainda em gestação permitiu colher amostras do líquido amniótico e foi encontrado o zika vírus. Ainda era preciso checar se ele alcançava a criança. Um bebê com microcefalia que morreu logo após o parto, no Ceará, deu aos médicos a peça que faltava ao quebra-cabeça: a autópsia confirmou a presença do vírus nos tecidos da criança.

ORIGEM DO PROBLEMA
A infecção congênita é uma das causas da microcefalia. Ela ocorre quando um agente infeccioso, como um vírus ou um parasita, consegue ultrapassar a barreira placentária e atingir o feto. Uma das principais características da infecção congênita é uma agressão ao cérebro que provoca calcificações. Essas, geralmente, não são encontradas em microcefalias causadas por doenças genéticas, podendo ocorrer em casos raros.

Onda de temor
Joao Carlos Lacerda/EM/D.A Press
Perímetro cefálico abaixo de 32cm é indicativo para microcefalia (foto: Joao Carlos Lacerda/EM/D.A Press)
A associação dos casos de microcefalia com o zika vírus causou um pavor generalizado, principalmente entre as mulheres grávidas e aquelas em idade fértil. Segundo a ginecologista e obstetra Adriana Scavuzzi, coordenadora do Centro de Atenção à Mulher do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), não há orientação formal para que as mulheres evitem a gravidez, mas os cuidados devem ser intensificados. “Elas precisam avaliar seu estado geral de saúde, tomar ácido fólico. O pré-natal precisa reforçar as boas práticas obstétricas e as mães devem fazer sua parte, protegendo o corpo com calças e blusas de manga comprida e recorrendo a repelentes e mosquiteiros.”

Em Pernambuco, onde o alto índice de casos exigiu a criação de um fluxo, mães com ultrassom suspeito só precisam ir aos hospitais de referência para confirmar diagnóstico. “Certeza de que a criança tem microcefalia só é possível após o nascimento e a tomografia. Mas o ultrassom pode dar indícios se as medidas da cabeça não estiverem na média esperada. Os casos em que é discreta a alteração na cabeça provavelmente não são percebidos ainda no útero. O ultrassom capaz de detectar o problema é aquele entre 32 e 35 semanas”, explica.

Desde que a notificação de gestantes com exantemas tornou-se obrigatória, entre 2 de dezembro de 2015 e 9 de janeiro de 2016, foram notificadas 464 gestantes nessa situação, de 55 municípios pernambucanos. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, desse total, cinco gestantes já apresentam confirmação de microcefalia intraútero. Adriana explica que todas as gestantes suspeitas, além do ultrassom em hospital de referência, precisam colher sangue e urina para a pesquisa do zika, já que têm sintomas. “É uma situação muito triste e que exigirá um esforço de todos, das famílias e das equipes envolvidas. Estamos vivendo uma ansiedade muito grande. Mas chega a ser comovente o apego dessas mães aos filhos e a adesão ao processo de diagnóstico. Elas nunca faltam”, comenta.

Enquanto isso...

EUA registram primeiro caso

O Departamento de Saúde do Havaí confirmou ontem que um bebê que nasceu com microcefalia no estado americano foi infectado pelo zika vírus. Segundo comunicado do órgão, a mãe pode ter contraído a doença quando visitou o Brasil, em maio do ano passado, e o bebê pode ter adquirido a infecção no útero. Na sexta-feira, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CVC) recomendou que mulheres grávidas adiem viagens para 14 países e territórios nas Américas onde o zika vírus está circulando, incluindo o Brasil. A agência de saúde pública dos EUA também exortou as mulheres em idade fértil que estão tentando engravidar a consultar um profissional de saúde antes de viajar para esses países e tomar medidas para evitar picadas de mosquitos durante as suas viagens se decidirem visitar esses locais.