Beijar a boca dos filhos é um mau costume?

Famílias se dividem entre as que pensam que o selinho é um gesto natural e de intimidade e as que não concordam com essa demonstração de afeto. Veja o que pensam alguns pais e especialistas

por Valéria Mendes 16/10/2014 10:00

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Soraia Piva/EM/D.A Press
"O selinho é uma demonstração de carinho, mas a criança não pode ser objeto da satisfação do adulto" - Heloísa Cançado Lasma, psicóloga clínica e professora da PUC Minas (foto: Soraia Piva/EM/D.A Press)
Bebês e crianças são ímãs de carinho e afeto. Não é raro que estranhos ou pessoas com pouca proximidade com os pequenos se sintam à vontade para abraçar, pegar no colo, apertar a bochecha ou beijar uma criança. Muitos meninos e meninas, entretanto, não são receptivos a esses gestos por parte de quem eles não conhecem e confiam. Alguns pais não costumam gostar e provavelmente concordam que essas atitudes constituem, de fato, uma invasão do espaço, do corpo e da liberdade dos pequenos. Mas e quando o gesto parte dos pais? E se for um beijo na boca do filho ou filha? Nessa situação, a história pode ser mais complexa.

A psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira lembra que beijar a boca dos filhos é um conceito para algumas famílias, mas preconceito de outras. A história da médica veterinária Mariana Castro, de 29 anos, ilustra bem essa dualidade. “Muitas pessoas acham nojento, feio. Para mim, demonstra intimidade”. Caçula da família, ela se recorda dos selinhos que recebia da mãe na infância e que é a forma como elas se cumprimentam até hoje. “Minha mãe morre de orgulho dessa nossa proximidade”, conta. Grávida de uma menina, Mariana já é mãe de Joaquim, de 1 ano, e também troca beijinhos na boca com o filho. “Quando ele faz biquinho e estica a cabeça para frente é por que quer um selinho. Acho a coisa mais linda do mundo, é de coração. Agora, se eu fizer em algum momento que ele não quer, levo um empurrão”, conta.

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A mãe de Joaquim diz entender a questão imunológica que envolve o hábito, mas não entende o preconceito - inclusive dentro da própria família. Ela se recorda que a avó materna não aprovava o gesto da mãe dela. “Minha mãe seguia o que os outros diziam e não o que ela sentia. Mato a vontade de ser mãe do meu jeito”, diz. Mariana tem dois irmãos - a diferença entre ela e o segundo filho é de 11 anos -, mas diz que o selinho era só para ela, fato que a médica veterinária credita à influência da avó. Essa questão é tão presente no universo da família Castro, que Mariana conta que, um dia antes da avó morrer, deu um selinho nela. “Dei por que estava me sentindo a vontade, mas lembro que minha mãe me puxou com receio de que minha avó me batesse”, diz.

Na adolescência, Mariana quis evitar o hábito. “Eu me lembro de um dia que minha mãe foi me levar à escola. A gente ia de bicicleta... Na hora de se despedir, ela me chamou e perguntou: - Não está se esquecendo de nada não? E eu disse: - Mãe, pelo amor de Deus, olha o mico, estou no colégio. Ela ficou chateada e depois fui saber que ela chorou muito quando chegou em casa. Pedi desculpa. Apesar de ser uma adolescente na época, sempre fui muito consciente do carinho dela por mim”, narra. A médica veterinária acredita que as mães se reprimem em relação ao selinho nos filhos por conceitos pré-estabelecidos como ‘beijo na boca é só entre casal’. “É um nível de intimidade sem valor, acho muito bonito”, diz.

Thiago Ventura/EM/D.A Press
(foto: Thiago Ventura/EM/D.A Press)

A criança e o outro
Psicóloga clínica e professora do Departamento de Psicologia da PUC Minas, Heloísa Cançado Lasmar faz algumas ressalvas. “Sim, o selinho é uma demonstração de carinho, mas a criança não pode ser objeto da satisfação do adulto. A criança pequena tem muita pouca possibilidade de sair desse lugar porque é completamente dependente da mãe, do pai ou do cuidador”, pondera. A especialista explica que a criança é um sujeito com muita dificuldade de encarar o que é ser separado do outro. “Já é uma dificuldade de todos nós, sempre queremos ser o primeiro, o queridinho da mamãe ou de alguém a vida inteira, mas a vida é feita de repartição. Quem não conseguir sair do colo da mãe, não conseguirá fazer o próprio caminho. A criança não deve ser usada como objeto de prazer do outro”, afirma.

Cristina Silveira reforça que, na visão psicanalítica, entre 5 e 7 anos o selinho não é aconselhável já que a criança está na fase edipiana e passa por um processo chamado castração. “Se for uma criança com amor intenso pela mãe ou pelo pai, esse selinho pode ganhar um sentido erotizado e dificultar a resolução dessa fase”, explica. Para ela, no caso de crianças menores de 5 anos a questão cultural familiar ganha mais peso. “Têm famílias que enxergam esse beijinho na boca como algo inadmissível, a criança vai seguir o valor que essa família tem”, diz.

O que a psicanalista e psicopedagoga acha fundamental para pais e mães adeptos do selinho é a conversa com os filhos. “A criança precisa entender o que é certo e o que é errado. O diálogo é muito importante. “É um gesto de carinho? Ok, mas os pais precisam proteger a criança com informação, devem explicar e repetir sempre que o beijinho na boca é só entre eles. A criança que cresce no ambiente onde o selinho acontece, vai achar que em outras situações pode fazer a mesma coisa”, salienta.
Arquivo Pessoal
Regiane Reis, 32 anos, mãe de Poliana, de 2, é contra o selinho (foto: Arquivo Pessoal)

Preconceito
Analista de marketing, Michelle Adams Lapouble é mãe de Gabriel, de 8 anos. Ela conta que cresceu em um contexto familiar de muito carinho. “A gente se beija, se abraça e meu filho cresce nesse ambiente, sempre dei selinho nele”, conta. Ela relata, no entanto, que já passou por situações em que precisou enfrentar a incompreensão do outro. “Um amigo do meu marido disse ao meu filho quando nos viu trocando um beijo na boca: - Você não pode beijar a mulher do seu pai assim. Meu filho respondeu ‘o beijo do papai é diferente, sempre vou beijar a minha mãe’”, recorda-se. Um café da manhã em uma padaria também já foi cenário de conflito em função do hábito entre mãe e filho. “Dei um pedacinho do meu pão para o Gabo – apelido de Gabriel - e ele me deu um beijinho depois. Uma mulher começou a gritar, me sacudiu, dizendo que não podia fazer aquilo. Ele ficou assustado”, narra.

Michelle acredita que naturalmente esse gesto vai se perder entre eles. “Ele está na fase em que vê um casal de namorados se beijando e diz ‘eca!’, também já faz questão de tomar banho sozinho. Sou intuitiva no relacionamento com o meu filho, vai chegar a hora de parar com o selinho”, pondera.

Heloísa Cançado Lasmar diz que a criança que “ocupa o lugar de preferência na satisfação da mãe pode ter, no futuro, dificuldade para sair desse papel, de se tornar independente desse outro. Ser o objeto mais importante da mãe tem suas vantagens, mas o preço é alto. Cada vez mais vemos a inibição dos adolescentes para enfrentar os desafios próprios”, reflete.

“Quem não gosta de um carinho?”, pergunta a especialista. Segundo Heloísa, as brigas entre irmãos - que parecem disputas por coisas – são, na verdade, brigas pelo amor da mãe ou do pai. Para ela, a cena de crianças um pouco maiores, a partir dos 4 anos, que afastam o beijo é sinal de autonomia. “O adulto fica sentido, chatiadíssimo, mas é um ótimo prognóstico, significa que criança está crescendo e enfrentando as coisas dela, que ela não fica passiva no lugar de objeto do outro”, observa. A psicóloga lembra ainda que as crianças são muito espertas. “A gente sempre tenta cortar a esperteza delas por que elas nos deixam um tanto sem graça ao fazerem coisas diferentes das que a gente gostaria. Na medida do possível, isso é muito saudável”, completa.
 Paula Beltrão/Arquivo Pessoal
"A criança precisa saber o papel de cada um dentro da família, onde cada um se encaixa" - Gabriela Mata Machado, 39 anos, mãe de Laura, 1 ano (foto: Paula Beltrão/Arquivo Pessoal)

Quem é contra
Regiane Reis, 32 anos, mãe de Poliana, de 2, é contra o selinho. “Para mim, o natural é não dar. As crianças são muito imaginativas, fantasiosas... É importante que desde pequenas saibam separar o que é de adulto e o que é de criança”, pontua.

A administradora Gabriela Mata Machado, 39 anos, é mãe de Laura, 1 ano, e diz que cresceu escutando sobre criação de crianças já que a mãe é psicóloga infantil e o pai, pediatra. Ela não acha o selinho entre pais e filhos algo natural. “A criança precisa saber o papel de cada um dentro da família, onde cada um se encaixa. O beijo na boca é uma coisa a mais que as crianças começam a perceber e que precisam entender que se trata de um gesto entre casais”, acredita. Para ela, existem outras formas de demonstrar carinho e afeto. “Sou muito de contato físico, mas beijo a bochecha, o narizinho, os pés. O selinho pode parecer algo inocente, mas as mães tendem, não conscientemente, a colocar os filhos como objeto”, observa.

Para a psicóloga clínica Heloísa Cançado Lasmar, “tomar a criança como parte de si é não suportar que, mesmo muito pequena, ela já é uma pessoa diferente. As mães tendem a enxergar os filhos como parte delas mesmas”. A especialista lembra ainda que as crianças têm sexualidade. “A sexualidade não é genitalidade, é o prazer do corpo. A fase oral é quando a sexualidade está concentrada no prazer da boca”, explica.

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"Pais precisam proteger a criança com informação, devem explicar e repetir sempre que o beijinho na boca é só entre eles" - Cristina Silveira, psicanalista e psicopedagoga (foto: SXC.hu)
Cristina Silveira diz que a primeira experimentação humana afetiva é pela boca, mas que a fase oral da criança não tem relação com o prazer da sexualidade. “A criança descobre o mundo através de fases (oral, anal e fálica). Na fase oral, é quando ela começa a perceber o sentido concreto do que a rodeia”, esclarece.

Vírus e bactérias
Membro do Comitê de Cuidados Primários da Sociedade Mineira de Pediatria, Ligia Kleim pondera o limite do médico em entrar nessa questão do selinho. Para ela, a abordagem é mais psicológica. “É opção de cada um, o que é mais importante dizer é que existe, sim, o risco de se transmitir vírus e bactérias”, avalia.

A pediatra ressalta que a boca é local de vários germes. “No beijo na boca, esses germes podem se tornar patológicos dependendo do estado imunológico das pessoas que trocam o carinho”, salienta. A pediatra diz ainda que as crianças estão mais sujeitas a terem doenças e cita algumas que podem ser transmitidas pelo beijo: coqueluche, meningite, mononucleose e as de transmissão respiratória. “Mesmo que o adulto não esteja doente, ele pode trazer esses vírus na boca. Em uma criança maior ou em adolescentes os riscos seriam menores. Quanto menor a criança, menos imunidade ela tem e maiores são as chances de que elas desenvolvam alguma doença”, observa.
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"As crianças não nascem com os microrganismos que provocam a cárie" - Elisa Rietjens, dentista especializada em odontologia de bebês (foto: SXC.hu)

Cárie pode ser transmitida pelo beijo?
A cárie dental é uma das patologias bucais mais comuns da boca. Segundo a dentista especializada em odontologia de bebês, Elisa Rietjens, a maior parte dos processos patológicos da cavidade oral apresenta algum agente infeccioso. “As crianças não nascem com os microrganismos que provocam a cárie. Na verdade, eles são transmitidos pela saliva através do beijo na boca, quando o adulto assopra o alimento do bebê ou em casos em que o cuidador divide o mesmo talher com os pequenos”, explica a especialista.

A odontopediatra reforça que a contaminação precoce da criança acontece através das pessoas que estão intimamente em contato com ela. “Quanto mais cedo ocorrerem os contatos salivares e maiores forem a frequência e o número de grupos bacterianos presentes na fonte transmissora, maior é o risco de contaminação e desenvolvimento de lesões cariosas”, afirma.

A especialista brinca que não é esperado que os pais usem máscaras durante o contato com seus filhos. “O afeto e carinho são fundamentais para o desenvolvimento saudável do bebê. Ressalto a importância de pais e cuidadores estarem em dia com a saúde oral e com a higiene bucal diária para controlar a contaminação”, diz.

Segundo Elisa Rietjens, evidências científicas mostram que a criança está mais propícia a adquirir microrganismos por meio de contato entre 19 e 31 meses, com média de 26 meses de vida. “Esse período é chamado de janela de infectividade”, explica. No Brasil, entretanto, ela explica que essa janela é mais precoce e a cárie atinge um número mais elevado de crianças em decorrência de hábitos inadequados de dieta (alto consumo de açúcar) e higiene bucal deficiente.

A especialista diz ainda que, em função das profundas modificações na dieta, em que se observa a redução significativa de alimentos fibrosos - capazes de colaborar com a autolimpeza e que têm baixo teor de açúcar - e um aumento significativo na ingestão de carboidratos fermentáveis, a população de microrganismos aumenta e, consequentemente, o número e virulência (potencial agressivo contra o esmalte dental). “Tudo isso favorece o início do processo carioso”, conclui.

Você beija a boca de seus filhos? Alguma vez se arrependeu? Concorda com a opinião dos especialistas ou pensa que é uma maneira saudável de demonstrar seu amor? Deixe seu comentário.