Eles são superpais

À frente da criação dos filhos, total ou parcialmente, homens esbanjam jogo de cintura e suavidade na hora de cuidar. Derrubando o mito de que a tarefa caberia às mães, estão mudando uma tradição

por Carolina Cotta 21/04/2013 06:15

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Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
O fotógrafo Daniel Bianchini criou uma relação de amizade e cumplicidade com a filha Helena, de 13 anos (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)


Eles fazem rabo de cavalo. Conhecem muito de cólica menstrual. Sabem, inclusive, que para tal vestido só serve aquele sapato. Conhecem o universo feminino como poucos e aprenderam tudo com elas: suas filhas. Pais 24 horas por dia, todas as semanas do mês, nos 12 meses do ano, Aggeo, Manoel, Francisco e Daniel criam suas meninas com dedicação e amor, sem mães por perto, embora alguns ainda possam ligar e pedir socorro. Solteiros, divorciados e viúvos, situações diferentes os colocaram frente a frente com a paternidade ampliada. Convocados a ser pai e mãe ao mesmo tempo, eles se superaram.

Se não sabiam cozinhar, aprenderam. Assim como lavar a roupa, acompanhar as tarefas de casa, negociar os namoricos. Conversar sobre futebol com os garotos talvez fosse mais fácil. Os pais que cuidam de meninos sabem bem isso. Os interesses são mais parecidos. Mas em tempos de famílias monoparentais – formada por um dos pais e seus descendentes – famílias homoafetivas e lares em que os homens assumem maiores cuidados com a criança, o pai à frente da educação ainda é minoria. Mas estão ficando mais comuns. Tal configuração com o homem à frente da casa e da criança é ainda complexa e seu reconhecimento como entidade familiar pela Constituição foi um grande passo.

Mas mesmo o exemplo desses superpais, que não só dão conta do recado como suavizam para os filhos as questões de gênero tão marcantes no passado, esbarram em alguns preconceitos. A estruturação destoante do ideal social de família – aquela formada por pai, mãe e prole; com casamento civil legalizado; pai sustentando e mãe cuidando de tudo e todos – ainda atrai a atenção. É visão que soa como afronta às mulheres que não só conquistaram um destacado espaço no mercado de trabalho, como também esperam dos maridos apoio nas tarefas domésticas, inclusive na educação dos filhos.

A esperança de que essas configurações sejam mais aceitas e mais comuns é a mentalidade das novas gerações. Solteiro, o fotógrafo Daniel Bianchini, de 35 anos, vive pela primeira vez na vida a experiência de morar com a filha Helena, de 13. Além do amor, se impressiona com a cumplicidade que construiu com a adolescente. Os dois adoram assistir filmes e ouvir rock juntos. “No começo era um pai estranho, porque ela nunca tinha convivido tanto tempo comigo. Mas estamos construindo algo a cada dia, a cada passo. Estou educando, cuidando de um ser humano que amo. É muito gratificante.”

Fotógrafo, 35 anos e até então um solteiro dono do próprio nariz. De repente, a filha que vinha nos feriados e férias depende dele para as questões mais cotidianas. Cama, comida, roupa lavada e dever de casa agora estão por sua conta. Há dois anos, a vida de Daniel Bianchini foi transformada com a chegada da filha Helena, hoje com 13. Depois de viver em Brasília desde que nasceu, a adolescente veio morar com o pai até que a mãe finalize um curso. Ele não gosta nem de pensar no final dessa temporada. É como se Helena tivesse passado todos os seus anos de vida ao seu lado.

A mãe de Helena é uma ex-namorada de Daniel. Anos atrás, ao se mudar para a capital federal depois de passar em um concurso, o relacionamento acabou. Helena estava a caminho e cresceu com a mãe, sempre em contato com o pai, que a visitava e a recebia em BH. Até que a mãe ficou apertada com a faculdade e o pai, voltando de uma temporada fora do Brasil, começou a trabalhar meio horário. “Helena veio para ficar um ano, mas deu tão certo que estendemos até o fim de 2014.”

No início foi um caos. “Era um cara sozinho, solteiro. Nunca tinha tido essa experiência de acompanhar a rotina escolar, cuidar das questões de saúde. Imagine a convivência de uma pré-adolescente cheia de dúvidas com um pai amador. Foi difícil lidar com essa fase de hormônios, menstruação longe da mãe. Eu não sabia lidar com isso. Pedi muita ajuda à minha irmã. As conversas com a mãe dela foram essenciais”, conta o fotógrafo.

 Euler Junior/EM/D.A Press
Rafaela, de 11 anos, considera um privilégio acordar na casa da mãe e dormir na casa do pai, o professor Manoel de Almeida Neto (foto: Euler Junior/EM/D.A Press)


DUAS CASAS A rotina do professor Manoel de Almeida Neto, de 46 anos, é um pouco diferente, já que  divide com a mãe a criação da filha. Rafaela, de 11.  A garota alterna um dia na casa do pai e um dia na casa da mãe desde os 4 anos. “Simplesmente, não concebia ficar sem vê-la”, diz o pai, que acredita que o formato da guarda compartilhada minimizou os impactos da separação. A mudança em sua vida só não foi mais profunda porque Neto também é filho de pais separados, já tinha morado sozinho e cresceu em uma casa cheia de mulheres.

“Sabia cozinhar, cuidar da casa. Isso facilitou.” A experiência tem revelado os benefícios de compartilhar a convivência. “Para uma guarda compartilhada os pais precisam assumir uma série de tarefas tradicionalmente das mães. Acho importante essa mudança no papel dos gêneros. Mas é algo lento. Sinto que os próprios juízes são conservadores em não entregar a guarda aos homens. Vejo muitos pais reclamando que queriam essa oportunidade, assim como vejo aqueles que se separam e deixam os filhos sobrando.”

Rafaela, que com esse formato tem a oportunidade de conviver com a filha da namorada do pai, da mesma idade, adora poder estar ao lado dos dois. “Para mim, o fato de não ter que gostar mais de um que do outro é o melhor. Aprendo com um e com o outro.” Ela vê como privilégio acordar na casa de um e dormir na casa do outro. “Estudo em um colégio tradicional e a maioria dos meus colegas, filhos de pais separados, acham que como eles, eu deveria morar só com minha mãe. Acho esse povo muito careta”, diz a menina.

Euler Junior/EM/D.A Press
Aggeo Simões acompanha a filha Ava de segunda a sexta-feira nas atividades escolares e culturais (foto: Euler Junior/EM/D.A Press)


Experiência compartilhada
Mais um blog vira livro. No segundo semestre, o locutor, cantor e cartunista Aggeo Simões, de 45 anos, coloca nas prateleiras o melhor de sua experiência cuidando da filha Ava, às vésperas de completar 9 anos. O Manual do pai solteiro (manualdopaisolteiro.blogspot.com) nasceu de uma demanda dos amigos recém-separados que, como ele, assumiram, mesmo que de forma compartilhada, os cuidados com os filhos. “Eles vinham me perguntar como eu fazia em determinadas situações, perguntavam se isso ou aquilo era normal, pediam dicas em relação à alimentação. Resolvi compartilhar”, diz.

Dicas práticas, tirinhas das situações mais engraçadas (abaixo) , contos e mesmo histórias marcantes que viveu estão no endereço on-line e farão parte da publicação. Como o caso da fixação de Ava pela cor rosa. “Muita gente adora esse post em que conto o dia em que ela me deu um cachecol da sua cor preferida, e saímos juntos. Ser pai de uma menininha é assim.” Aggeo se separou da mãe de Ava quando ela tinha apenas 1 ano e meio. Desde o início, os dois combinaram dividir o tempo com a menina, mas isso só começou a funcionar melhor depois que ela entrou para a escola e teve a rotina sistematizada.

Ava fica com o pai de segunda a tarde à sexta-feira pela manhã. É com ele, portanto, que passa a maior parte da semana. Ele acompanha as tarefas da escola e cuida para que ela se alimente bem. No dia em que tem algum compromisso, apela a outra figura masculina. Se Ava não está com o pai está com o avô. Aggeo pode ainda contar com o apoio da mãe de Ava. “Os pais, mesmo separados, precisam se relacionar de uma maneira legal para que a criança se estabeleça da melhor maneira possível. Cada um tem sua história de vida, sua rotina. Cada um faz o que dá conta”, defende.

Hoje ele está bem mais acostumado ao universo feminino. Talvez até entenda melhor as mulheres depois de ouvir as demandas da pequena Ava. “Às vezes, aqui tem vestido de mais e legging de menos. Ou mesmo o sapato certo ficou na casa da mãe e preciso buscar. Aprendi muito, principalmente que elas preferem ficar bonitas a confortáveis. Sempre achei estranha essa preocupação das mulheres, mas quando vejo isso na minha filha, tão novinha, já sei que é algo característico”, brinca. Também não falta o apoio da namorada, Soraya Malheiros. Mãe de dois filhos mais velhos, ela está pronta para ajudar.

Arquivo Pessoal
Chico, entre os filhos Rafael, Ana Luiza e Luiz Augusto, precisou ser pai e mãe ao mesmo tempo (foto: Arquivo Pessoal)


PAPÉIS DEFINIDOS
Desde que supra o papel da mãe, não há problema algum em um pai criar o filho. Os impactos das famílias monoparentais no desenvolvimento da criança podem ser contornados. Segundo o mestre em psicologia social e professor na Universidade Fumec Wilson Soares Leite, o tema ainda é algo novo em termos de pesquisa na psicologia. Homens à frente da criação é uma realidade muito recente, ao contrário das famílias monoparentais baseadas na mulher, bem comum no Brasil, principalmente nas classes menos favorecidas.

Para o especialista, a questão extrapola o gênero e se concentra nas funções e papéis desempenhados por pais e mães. Essas funções são fundamentais na formação da personalidade e da estrutura psíquica da criança. As funções paternas – da lei, das responsabilidades, e maternas – da proteção, do afeto – são as principais, mas a função desempenhada pelos irmãos, pelos pares, que se colocam de maneira horizontal, também fazem diferença. “Esses papéis são básicos na formação do sujeito nesse primeiro momento, mas podem ser desempenhados por uma pessoa só”, explica.

O analista de suporte aposentado Francisco Pires, de 58 anos, precisou suprir nos filhos o lado afetivo, sensível, carinhoso e de acolhimento que perderam junto com a mãe. Luiz Augusto, hoje com 34, tinha 14; Rafael Luiz, de 30, tinha 9, e Ana Luíza, hoje com 28, era uma menininha de 7 anos quando a mãe foi vítima de um câncer. “Foi muito difícil. Eu morava em Betim e toda a minha família em São João del-Rei. Muitos familiares chegaram a se oferecer para criar meus filhos. Mas não iria separá-los. Lembro-me de dizer que se não conseguisse eu pediria ajuda. Estão criados, são meus amigos, enfrentaram tudo comigo.”

Mas Chico, como é chamado, se emociona ao lembrar dos filhos chorando na madrugada, com saudades da mãe. O pai, que trabalhava todo o dia fora, precisou se voltar para os filhos. Era preciso sustentar, educar, mas também enchê-los de carinho. “Conseguimos enfrentar essa perda. Meus filhos são gratos a mim. Somos muito ligados. Fiquei maluco com algumas coisas e as madrinhas ajudaram muito. Como quando minha filha ficou menstruada. Não sabia lidar com a questão das cólicas. Mas tudo foi superado e estamos bem, felizes, unidos”, relembra.

ENTREVISTA: Capacidade para o cuidado
Em sua trajetória acadêmica e no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e no Centro do Interesse Feminista e de Gênero da Universidade Federal de Minas Gerais, a professora do Departamento de Ciências Políticas Marlise Matos empreende um reflexão sobre as disparidades históricas entre o masculino e o feminino. Estudiosa das questões de gênero, não acredita que temos uma transformação totalmente significativa, em que os homens brasileiros, todos eles, estariam vivendo, sem conflito e por vontade própria, uma experiência de se voltar para o cuidado dos filhos.

Em que contexto a criação dos filhos foi “reservada” às mães?
Na obra O contrato sexual, Carole Pateman denuncia assimetrias profundas na organização da vida social e política por meio da construção de papéis, estereótipos negativos em relação ao que se pressupunha ser “a experiência das mulheres”. No interior da dicotomia público/doméstico permanece uma ambiguidade, com sérias consequências para as mulheres. Os homens são vistos, sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e reprodução.

Novas configurações revelam mais famílias monoparentais baseadas na figura paterna. Mesmo naquelas compostas por pai e mãe já se vê, mesmo que timidamente, maior participação masculina na criação. Por que eles estão se voltando mais para esses cuidados?

A família ainda continua a ser ordenada pelo padrão de referência masculino. As lutas feministas, a partir dos anos 1960 e 1970, empreenderam uma gigantesca revolução. Modificaram os padrões e os arranjos familiares, com reinvenções dos vínculos amorosos com as parcerias gays, lésbicas e heterossexuais alternativas – moradias em separado, famílias monoparentais, famílias recompostas. Nesse contexto de mudanças, também os homens são chamados a alterar padrões arraigados de comportamentos. Com as crescentes taxas de divórcio e de separação, eles também vão, bem aos poucos, percebendo a importância da convivência e da manutenção das relações de intimidade e de amizade com seus filhos. Não acredito, contudo, que essa seja uma mudança ampla e generalizada na sociedade brasileira. Ela ainda ocorre em situações bem específicas, de casais separados/divorciados, de situações de viuvez, de casais em contextos fortemente urbanizados, em casais mais escolarizados.

Gênero é definidor ou o filho criado pelo pai tem o mesmo desenvolvimento daquele criado pela mãe?
A disposição para o cuidado não é uma característica “essencial” das mulheres. Elas fazem isso, hoje, talvez melhor do que os homens, simplesmente porque passaram a vida inteira, ao longo de séculos, fazendo isso. A capacidade e a habilidade para o cuidado independem do sexo de uma pessoa. Assim, nossa sociedade será infinitamente melhor se, além das mulheres, os homens forem capazes de construir e de manter operantes, ativas, nas suas identidades masculinas, essa capacidade humana fundamental para o cuidado.

O que diz a lei

A Lei 11.698/08 alterou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil de 2002 para instituir a guarda compartilhada. Nela é preservada a possibilidade de ambos os genitores participarem da vida de seu filho, o qual, em contrapartida, acaba tendo a possibilidade de ter uma convivência mais estreita com seus pais, garantindo assim, dentro do que é considerado o melhor para os interesses da criança e adolescente, tudo o que necessitam para uma formação saudável. A legislação estabelece que ambos os genitores são igualmente responsáveis pelo sustento do filho menor, compartilhando as responsabilidades e despesas de sua criação e educação. Isso prevalece independentemente da modalidade da guarda adotada.