Você já deve ter assistido ou pelo menos ouvido falar de O Gambito da Rainha. A série que fez todo mundo querer aprender xadrez virou um fenômeno mundial em 2020. Mas a história por trás dessa produção é ainda mais interessante que a própria trama.
A saga de Beth Harmon não nasceu na Netflix. Na verdade, ela saiu da cabeça de um escritor americano chamado Walter Tevis lá em 1983. O cara tinha uma vida cheia de altos e baixos, e muito do que ele viveu acabou parecendo na história da protagonista. É uma daquelas histórias onde a vida real se mistura com a ficção de um jeito impressionante.
Quem foi Walter Tevis e por que criou essa história?
Walter Stone Tevis foi um cara que sabia o que era sofrer na pele. Nascido em 1928, ele passou a infância lidando com uma doença cardíaca que o deixava sempre sedado. O escritor americano passou parte de sua infância em uma casa para doentes, sob o constante efeito de sedativos.
Abandonado pelos pais, ele também lutou contra o alcoolismo durante boa parte da vida. Tevis aprendeu a jogar xadrez aos sete anos, mas ao contrário da Beth, nunca virou um prodígio no tabuleiro. Era só um jogador mediano, classe C.
A genialidade dele estava na escrita, não no xadrez. Tevis criou histórias que viraram filmes icônicos como “Desafio à Corrupção”, “A Cor do Dinheiro” e “O Homem que Caiu na Terra”. Seus livros foram traduzidos para mais de 18 idiomas antes de ele morrer em 1984, aos 56 anos.
Como nasceu a personagem Beth Harmon?
Beth foi criada como uma homenagem às mulheres inteligentes. Tevis disse que se inspirou na filha e na tia, que foi quem deu a ele seu primeiro jogo de xadrez. “Eu gosto de Beth por sua bravura e inteligência. No passado, muitas mulheres tinham que esconder seus cérebros, mas não hoje”, declarou o autor.
A história começa quando Elizabeth Harmon perde a mãe aos 8 anos e vai parar num orfanato. Calada e retraída, ela lida com a triste realidade tomando os tranquilizantes que a instituição fornece às crianças para mantê-las dóceis.
É o zelador carrancudo do orfanato que muda tudo. Ele começa a dar aulas de xadrez para Beth, oferecendo a chance que ela precisava para sair da letargia. Pensando e imaginando as jogadas, Beth sente que finalmente está no controle da própria vida.
Por que O Gambito da Rainha demorou tanto para virar série?
O livro foi publicado em 1983, mas só virou série em 2020. Foram 37 anos de espera! A resposta está nas mãos certas na hora certa.
Scott Frank, diretor e roteirista conhecido por “Godless”, foi quem adaptou o livro. Mas ele não fez isso sozinho. Contou com a ajuda de dois gênios do xadrez: Garry Kasparov, considerado o maior jogador de todos os tempos, e Bruce Pandolfini, um dos instrutores mais renomados da história.
Kasparov disse que muitas das jogadas descritas pelo autor eram “meio amadoras”. Ele fez questão de representá-las fielmente na telinha, escolhendo jogos-chave e fazendo com que ficassem o mais autêntico possível.
Qual é a diferença entre o livro e a série?
A série foi surpreendentemente fiel ao livro original. Anya Taylor-Joy, que interpreta Beth, devorou o livro em pouco mais de uma hora antes mesmo de ser escalada. Ela correu atrás do Scott Frank porque se identificou completamente com a história.
O contexto histórico também foi respeitado. A série se passa nos anos 60, durante a Guerra Fria, quando as tensões entre Estados Unidos e União Soviética se estendiam até o xadrez. É um retrato certeiro de como o jogo era usado como ferramenta política.
Na vida real, mulheres não podiam participar do Campeonato Mundial de Xadrez naquela época. O direito só foi conquistado na década de 80, quando a palavra “homem” saiu do nome oficial do evento. A mudança veio graças aos esforços de Susan Polgár, uma jovem húngara que defendeu a equidade de gênero.
Por que a série fez tanto sucesso?
Um mês depois da estreia, O Gambito da Rainha se consagrou como a minissérie mais vista da Netflix, alcançando 62 milhões de assinantes mundo afora. O feito mais extraordinário foi popularizar o xadrez entre pessoas de diferentes idades, gêneros e nacionalidades.
A nova onda de interesse pelo jogo se deve aos acertos da trama: visual sofisticado, elenco competente e roteiro bem-construído. A série conseguiu mostrar que uma história sobre xadrez podia ser emocionante, viciante e universal.
Beth Harmon nunca existiu de verdade, mas sua história tocou milhões de pessoas ao redor do mundo. Talvez porque todos nós, de alguma forma, já nos sentimos perdidos e precisamos encontrar nossa própria paixão para dar sentido à vida. No caso dela, foi o xadrez. No seu caso, pode ser qualquer coisa.
A obra de Walter Tevis provou que grandes histórias atravessam gerações. Mesmo décadas depois, O Gambito da Rainha continua relevante e poderoso. É literatura que vira entretenimento, entretenimento que vira cultura, e cultura que muda vidas.