Sob os domos ortodoxos e os minaretes azuis, dois continentes se entreolham, se estranham e se fundem no extenso mar doce europeu do Volga e num de seus braços orientais, o Rio Kasanka, que rasga as bordas da Ásia. Observadoras do encontro das águas entre a criadora “Mãe Volga” e a sua criatura, 13 torres defensivas se alongam por quase dois quilômetros de muralhas em pedra branca. Magnífico. Esse é o Kremlin de Kazan – entre Moscou e os Montes Urais –, atualmente capital da República do Tartaristão, um conjunto arquitetônico que embala a beleza do sincretismo cultural de um caldeirão de religiões e povos.
Por volta dos século 7, ao Norte do Cáucaso, uma confederação de tribos turcas seminômades se organizou sob o Estado chamado Grande Bulgária. Uma de suas ramificações, a Grande Bulgária do Volga, instalou-se às margens desse rio, aderindo em 922 ao islã. O embrião da cidade de Kazan se inicia por volta do ano 1005: uma pequena vila se formara – nas proximidades do encontro do Volga com o Kasanka – e servia de entreposto comercial da Grande Bulgária do Volga, na importante rota entre o Norte da Europa, a Escandinávia, o Império Bizantino, Bagdá e a Ásia Central. Para lá migrou parte da população quando, no século 13, Batu Khan, neto de Gengis Khan, invadiu, destruiu as cidades comerciais e incorporou o território ao domínio das Hordas de Ouro.
A alma russa da Ásia Central germinada da convergência de culturas e povos explode na cosmopolita Kazan moderna, de maioria muçulmana. Grandes eventos históricos estão marcados na cidadela, que, diferentemente dos Kremlins da Rússia Ocidental, exibe não apenas cúpulas ortodoxas. Aquela que reina absoluta nesta fortaleza é a mesquita Kul Sharif, homenagem ao ímã que morreu defendendo Kazan contra o ataque de Ivan, o Terrível. Convive em harmonia com os domos orientais azuis da Catedral da Anunciação e de seu monastério.
Entre parques, praças, museus, prédios governamentais que integram esse espetacular conjunto, considerado patrimônio mundial pela Unesco, as atenções convergem para a inclinada torre, – situada fora dos muros do Kremlin, mas visível de todos os cantos da fortaleza. Como a de Pisa, verga ao peso da história. Assim como a mesquita, também se refere a Ivan. Do alto de seus 58 metros, o icônico monumento, chamado Torre Syuyumbike, guarda, entre os seus mistérios, a lenda da bela sobrinha do cã, por quem Ivan, em cerco sobre a cidade, havia se apaixonado. Desesperada por ter de se unir ao czar que subjugara Kazan, disse que só se casaria após a construção da mais alta torre jamais vista. Quando concluída a obra, Syuyumbike teria se lançado. Escavações recentes no entorno da torre encontraram uma tumba medieval, atribuída ao poeta Muhammedyar.
A cosmopolita Kazan exala arte, canto e a literatura seja pela alegre Rua Bauman, exclusiva para pedestres, seja na vila tártara com a sua colorida mesquita Soltanov, de 1867. O vigor intelectual é alimentado pela Kazan State University – fundada em 1804 –, por onde passaram o matemático Lobachevsky, o escritor Leon Tolstoy, o compositor Balakirev, além de Vladimir Ilyich Ulyanov, que entrou para a história sob o pseudônoimo de Lênin.
É dedicado ao poeta tártaro Musa Dzhalil (1906-1944), guilhotinado por nazistas na prisão Moabil, em Berlim, em 1944, o monumento à entrada do Kremlin. Em seus caderno de notas dedicados ao amigo belga, o seu testemunho de uma história dramática, que gira no passar dos séculos: “Para todo o sempre, jamais irei esquecer; presenciei como os rios choravam como crianças; e como a mãe-terra se dilacerou em fúria; com os meus olhos vi o triste sol desmanchar-se em lágrimas, quando nuvens carregadas se lançaram aos campos; ali beijaram a criança pela última vez.”