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Estado de Minas

Estética como ato político: FIT aposta em grupos regionais e experimentação

A 14ª edição do Festival Internacional de Teatro traz propostas inovadoras como 'Unwanted', visão das mulheres ruandesas vítimas de estupro durante o genocídio da etnia tutsi pela maioria hutu, em 1994


23/09/2018 22:03 - atualizado 24/09/2018 15:22

(foto: Guto Muniz/Divulgação)
(foto: Guto Muniz/Divulgação)

Uma questão pairou sobre toda a edição do FIT-BH 2018: a curadoria pendeu para peças políticas em detrimento da qualidade estética? Esse era o burburinho nas filas tanto para quem é do universo teatral quanto para o público leigo. No penúltimo dia do festival, a performer ruandesa Dorothée Munyaneza subiu ao palco do Teatro do Centro Cultural Minas Tênis Clube para apresentar Unwanted, sob esse estigma e até mesmo descrédito. Mas bastou a ela, ao lado da mesa de sons comandada pelo francês Alain Mahé, dizer a primeira palavra para ganhar o público de cerca de 800 pessoas que a assistia – foi aplaudida de pé por cinco minutos ao final do espetáculo.

Ao longo de 11 dias, esta edição do FIT-BH atraiu público de 25 mil pessoas, de acordo com os organizadores. A edição de 2018 foi realizada com o valor total de cerca de R$ 3,4 milhões. Em 2016, foram R$ 3,6 milhões. Pela primeira vez na história do festival, a curadoria foi escolhida por meio de edital, o que significou que, para além do nome das três, venceu uma forma de compreender e olhar para o teatro contemporâneo.

Em cena apenas com uma pintura que lembra um grafite e acompanhada da cantora punk Holland Andrews, Dorothée performa em diálogo com depoimentos de mulheres vítimas de estupros cometidos durante o genocídio dos tutsis, em Ruanda, em 1994. Os testemunhos colocam o espectador diante de escolhas difíceis: Posso eu amar o filho fruto de um estupro? São depoimentos íntimos e intensos, que exigem deslocamento de quem ouve. Somos retirados do nosso lugar para entrar em contato com o dia a dia de famílias arrasadas pela guerra, na qual a violência sexual contra as mulheres é usada como arma de dominação.

A inteireza do corpo de Dorothée – que dança, performa, sonoriza com a voz, com as mãos e outras partes – ocupa o espaço cênico, recriando uma geografia não física: um mapa de sentimentos e emoções de mulheres devastadas, estupradas por diversos homens, contaminadas com o vírus do HIV, que ainda assim precisam seguir existindo. Com seu corpo negro, Dorothée nos leva para o lugar de dor para que seja elaborada. Vidas dilaceradas de tal forma que o sofrimento só pode ser aplacado pela experiência da música em nossas vidas. A presença de Holland Andrews, seja com cantos líricos, com instrumentos de sopro ou com distorções sonoras, é o que permite por meio da arte transmitir a dimensão de existências tão diferentes das nossas.

A musicalidade constrói lugar de resiliência (e existência), que permite a quem tudo foi retirado pelo horror da guerra viver sensações que apenas a arte pode conduzir. Quando se ouve os cantos africanos recitados como forma de resistir, a questão, geralmente guiada pela racionalidade – se esse canto é político ou estético –, cai por terra e deixa de fazer sentido, pois a potência desse canto traz as duas dimensões, indissociáveis.

Unwanted se constrói como teatro contemporâneo a partir da importância da sonoridade para os povos africanos, mas coloca o canto no movimento de diáspora: é feito por uma ruandense, mas é uma produção francesa. Em diálogo com o campo da performance, com a música eletrônica, com as artes visuais, o espetáculo apresenta paisagem sonora em que a música – sejam os cantos tradicionais ou eletrônica –, a voz e sons criam todos os elementos da cena.

“Dorothée usa a voz para dar forma àquele lugar. Fala de atrocidade e está cantando”, diz a curadora Soraya Martins. Para ela, o espetáculo expressa o conceito corpo-dialeto, que guiou o olhar curatorial. “É o corpo-linguagem. Quando falamos dialeto, as pessoas pensam em uma língua menor, não oficial. Mas nem por isso deixa de comunicar subjetividade e singularidade”, afirma. O espetáculo ainda coloca em cena corpos sociais que  são invisibilizados.

Juntamente a Soraya, formam a curadoria a dramaturga Grace Passô, a crítica de arte Luciana Romagnolli e os curadores assistentes Anderson Feliciano, Daniele Avila Small e Luciana Ramos-Silva. Sabendo que o olhar de Grace comporia a escolha, não se esperava menos em termos de disposição para subverter elementos dramatúrgicos, parte da pesquisa dela. De Soraya, uma das idealizadoras do projeto Segunda Preta, esperava-se diálogo profundo com o que está sendo feito na cidade, principalmente o teatro negro.

Na abertura, a expectativa de boa parte do público, no entanto, frustrou-se com a performance Batucada, de Marcelo Evelin, e Looping: Bahia overdub, com o coletivo formado por Felipe de Assis, Leonardo França e Rita Aquino. “Faltou alguma coisa, esperava mais”, afirma a estudante de teatro Bárbara Costa. Mesma opinião compartilhada pela atriz Ana Pires, de 28 anos. “Em comparação às aberturas de outros anos, foi bem simplória”, avaliou.

Com o tema corpos-dialetos, a curadoria anunciou que colocaria em cena diferentes formas de existir, reivindicação política de grupos de mulheres, negros e LGBTIQs, que mostram que dar visibilidade aos próprios corpos no mundo contemporâneo – com pouca ou baixa tolerância às diferenças – já se trata de ação política. Em Eve, de Jo Clifford, a atriz escocesa trouxe texto autobiográfico sobre a transexualidade e a singularidade de seu corpo na constituição de sua identidade.

As curadoras olharam para o que esses grupos vêm produzindo e era impossível não estar na fronteira entre arte e política. Para Grace, o FIT-BH deixa como legado a visibilidade dado ao teatro negro. “Destacaria o escancaramento de que teatro negro é teatro brasileiro ou simplesmente teatro, a presença de peças de territórios brasileiros menos recorrentes em BH, a diversidade de linguagens, a articulação com radicalidades de elementos da linguagem teatral contemporânea”, afirma.

A proposta de radicalidade em termos de linguagem encontrou ressalvas, mas as curadoras acreditam que foi bem acolhida pela maioria do público. “Sempre haverá uma parcela de pessoas com tendências conservadoras, que recusam aquilo que não conhecem ou que extrapola suas expectativas. Mas isso foi minoria. Presenciei respostas muito intensas de público, positivamente. Vi plateias cheias, empolgadas, compostas de mais grupos sociais do que era habitual ver durante o FIT. Foi bonito”, diz Luciana.

Soraya assume como positivo o lugar político da proposta. “Político sim. Ser político não quer dizer ser menos estético nem menos artístico. Trouxemos produções que conseguem refletir diversas realidades, mas que refletem esteticamente. Os espetáculos fazem cruzamentos de linguagens importantíssimos”, avalia.

Tempo limitou ações

A edição do FIT-BH propôs deslocamento do eixo das produções europeias para a África. Na produção nacional, foram priorizadas produções da região Nordeste em detrimento do Sudeste. A organização informou que, até a última edição, a média histórica da Mostra Nacional era de 66% de espetáculos do Rio de Janeiro e São Paulo. Este ano, esse número se inverteu, com 66% de trabalhos da cena nordestina.

Outra característica desta edição foi a opção para apresentação dos espetáculos em espaços alternativos e também fora do eixo da Região Centro-Sul. “A recepção do público foi intensa. Destaco a passagem dos grupos de teatro da Ocupação Estrela por ocupações da cidade de BH. É o reconhecimento, através da arte, de espaços que não são reconhecidos pelas instâncias de poder do município”, diz Grace.

Se essa edição ganhou ao escolher por edital a curadoria, por outro lado a equipe de curadores teve muito menos tempo para escolher os espetáculos para a programação. Da publicação do grupo escolhido até a data do festival foram cerca de três meses. As curadoras são unânimes em dizer que o curto prazo foi limitador da composição da programação. “Realizamos muitas ações importantes, mas outras tantas foram impossíveis, por causa desse tempo insuficiente. Apesar dos esforços da produção do festival e nossos, o tempo curto inviabiliza muitas ações”, diz Grace.

Elas sugerem que as próximas curadorias tenham mais tempo. “Conseguimos realizar muitas ações importantes, mas outras tantas foram impossíveis em razão do tempo curto. Não tivemos tempo nem orçamento para viagens internacionais e só para poucas nacionais. Alguns espetáculos que gostaríamos de trazer não tinham mais datas disponíveis”, conclui Luciana.

Palavra do público

“Esta edição trouxe trabalhos provocadores, experimentações que causaram estranhamentos. Muitas pessoas perguntaram que teatro é esse. Foram propostas de radicalidade que não estamos muito acostumados a assistir, com radicalidade na linguagem, na investigação. Tudo conectado com discussão política. Proposta que vai reverberar muito na cidade.”

Bremmer Guimarães, ator

“Interesso-me muito por essa curadoria, que tinha como proposta sair do eixo eurocentrado, ao propor questões relacionadas às mulheres, aos negros e LGBTs. Vi muitas críticas de que esta edição estava muito política e ideológica. Como se ser político implicasse em experiência estética menor. São espetáculos potentes, inovadores, fora dos padrões eurocêntricos. Ser político não implica em ter menor qualidade e diminuição da potência poética. Os espetáculos nos atravessam de vários modos.”

Nina Caetano, performer, ativista e professora

“Eles poderiam ter feito divulgação melhor desta edição. A divulgação foi muito ruim. É visível a preocupação de trazer espetáculos de outros lugares, muitos da África. Também vi preocupação em valorizar a produção local. Era muita coisa legal para poucos dias. Também foram apresentadas peças que abordam a questão da mulher, dos negros, dos LGBTs. Não sei se isso foi pensado. Achei bem legal. O FIT-BH de 2016 não teve esse conteúdo.”

Maria Clara Strambri, estudante de teatro



FIT-BH EM NÚMEROS

25 mil   
pessoas atraídas
pelo festival

37   
espaços (teatros, espaços alternativos e rua)

280
artistas envolvidos

100
profissionais da cultura de BH contratados

12
países participantes

30
espetáculos

59
apresentações

49  
ações paralelas (palestras, intercâmbios, residências, sessões de leitura, oficina, mostra de filme etc.)


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