Série 'Quarto 2806: A acusação' joga novas luzes sobre o Caso DSK

Produção exibida na Netflix questiona a inocência do poderoso Dominique Strauss-Kahn, envolvido em escândalo sexual em 2011

Mariana Peixoto 11/12/2020 04:00
Netflix/Divulgação
Cena de Quarto 2806: A acusação mostra Dominique Strauss-Kahn (C), que comandou o FMI, deixando a delegacia em Nova York (foto: Netflix/Divulgação)
Três anos depois, o mundo é outro após o #MeToo? Certamente, e as mudanças foram além de Holly-wood, que desencadeou o movimento contra o assédio e a agressão sexual depois da série de denúncias contra o produtor de cinema Harvey Weinstein – hoje encarcerado, cumprindo sentença de 23 anos. O caso recente envolvendo o humorista Marcius Melhem e sua colega na Globo, Dani Calabresa, voltou, com a força de um furacão, a colocar o assédio na ordem do dia.

Duas entrevistadas da minissérie documental Quarto 2806: A acusação, lançada esta semana pela Netflix, apontam o escândalo DSK como a gênese do #MeToo. Sob o viés temporal, já que se passaram nove anos desde o ocorrido, dá para afirmar: se tivesse sido hoje, as consequências para o acusado, o economista, advogado e político francês Dominique Strauss-Kahn, seriam maiores.
Emmanuel Dunand/AFP - 10/12/2012
Nafissatou Diallo acusou DSK de tentar estuprá-la na suíte presidencial do Hotel Sofitel (foto: Emmanuel Dunand/AFP - 10/12/2012)

ESQUERDA

Em 14 de maio de 2011, o então diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), apontado como a esperança da esquerda (era a estrela do Partido Socialista) para derrotar Nicolas Sarkozy nas eleições presidenciais francesas de 2012, foi preso no aeroporto JFK, em Nova York. Retirado do voo que o levaria à França, DSK, como é conhecido em seu país, foi reconhecido pela vítima na delegacia.

Horas antes, na suíte presidencial do Hotel Sofitel, no coração de Manhattan, DSK, então com 62 anos, havia aparecido nu para a camareira Nafissatou Diallo, 30 anos mais nova. Imigrante africana da Guiné, negra, mãe solteira, morando no Bronx e falando um parco inglês, ela sofreu abuso e tentativa de estupro pelo chefão do FMI. DSK, segundo o relato da vítima, chegou a jogá-la no chão e ejacular em sua boca. Exames periciais encontraram sêmen na boca da vítima e no carpete do quarto.

Dirigido por Jalil Lespert (da cinebiografia Yves Saint Laurent, 2014), Quarto 2806 reconstitui essa história em formato documental e clima de thriller. A produção francesa ouviu todos os envolvidos – à exceção do próprio DSK, que se recusou a falar para o documentário – e mostra, quase uma década mais tarde, que a questão implicou muito mais do que o abuso sofrido pela camareira.

A série aborda temas urgentes como a desigualdade social, as diferenças culturais e a própria moral em si, pois DSK foi defendido por alguns de seus pares na França. Também do Partido Socialista, e primeira mulher a chefiar um ministério no país (da Justiça, na gestão de Jacques Chirac), Élisabeth Guigou afirma que era sabido que DSK “prestava atenção às mulheres, mas não era o único”.

“Este homem, que foi chefe de uma organização internacional, é humano. Foi apresentado como uma espécie de demônio, nomeado e envergonhado de acordo com a velha tradição americana. Isso é algo que me irrita profundamente”, declarou o socialista Jack Lang para o documentário. Atual presidente do Instituto do Mundo Árabe, em Paris, ele foi por duas ocasiões ministro da Cultura e por outras duas ministro da Educação da França.

DSK, naquele fatídico maio de 2011, era estrela não só na França. Havia se tornado o número 1 do FMI em novembro de 2007, sua atuação na crise mundial de 2008 era celebrada. Apontado como um dos 10 homens mais poderosos no mundo, apoiadores já haviam criado o slogan Yes, we Kahn (versão afrancesada do Yes, we can da campanha de Barack Obama), de olho na eleição presidencial.

Com carreira acadêmica antes de abraçar a política nos anos 1980, DSK foi deputado por diferentes mandatos, ministro por duas ocasiões, inclusive da Economia (no governo Chirac). Naquele momento, estava no terceiro casamento, com a jornalista Anne Sinclair, muito prestigiada na França como entrevistadora de TV, herdeira milionária que havia deixado os holofotes para acompanhar (e, dizem, também bancar) a carreira política do marido.

Diante desse cenário, a primeira coisa que vem à cabeça ao imaginar o que Nafissatou Diallo passou durante nove minutos no quarto de hotel é: por que isso aconteceu?. A série não entrega o jogo de cara, ainda que boa parte do que é apresentado tenha sido noticiado exaustivamente pela imprensa mundial.

Nos dias posteriores ao escândalo, DSK foi levado para Rikers Island, prisão de segurança máxima em Nova York. Sua saída da delegacia, algemado, foi registrada milhares de vezes. Um policial explica para a câmera que é praxe em Nova York anunciar para os repórteres quando um figurão deixa a cadeia. DSK estava acompanhado de seu advogado, Benjamin Branfman, estrela jurídica que também defendeu Michael Jackson e Weinstein. Quando o francês deixou a prisão de tornozeleira eletrônica, foi acolhido por Anne Sinclair, que alugou um apartamento de luxo para acompanhá-lo no processo.

São várias vozes – de policiais, funcionários do hotel, políticos – e imagens, inclusive do circuito fechado do hotel, que reconstituem a narrativa. Nafissatou Diallo, ora indignada, ora chorando, apresenta com riqueza de detalhes seu martírio. No início, só tinha medo de perder o emprego. Dois seguranças do Sofitel a estimularam a fazer a denúncia (a voz da gravação do 911 que relatou o caso é do chefe da segurança).

O momento inicial do caso DSK se deu até julho de 2011, quando, em uma reviravolta, o processo foi arquivado (a pedido da Promotoria, alegando falta de credibilidade da própria vítima) e o réu deixou a Suprema Corte de Nova York livre das acusações. Com o caso público, as manifestações públicas a favor de Nafissatou Diallo já haviam se desdobrado nos EUA.

A França, em parte, recebeu DSK de portas abertas (com grande parte de apoiadores dele na porta de seu apartamento, na Place des Vosges, em Paris). Não foram poucos os defensores da teoria da conspiração que apontava o escândalo como armado pelo governo Sarkozy para enfraquecer a candidatura dele. Com a saída de cena do agora ex-chefão do FMI, o socialista François Hollande, pregando a normalidade que DSK não oferecia, acabou se elegendo presidente em 2012.

Mas eis que entrou em ação a jornalista francesa Tristane Banon, afirmando que, em 2003, quando tinha 23 anos, sofreu tentativa de estupro por parte dele. Tal história tem vários pontos absurdos – como a mãe de Tristane, também política, apoiando DSK e contando sobre o affair que teve com ele.

O caso do hotel foi apenas a ponta do iceberg, a história mostrou. DSK esteve envolvido em 2012 em novo escândalo sexual, acusado de ligação com uma rede de prostituição em Lille, Norte da França. Os detalhes tomam conta da parte final da série.

ACORDO

Nos EUA, o caso do Sofitel só foi encerrado em dezembro de 2012, quando a ação civil movida por Nafissatou Diallo contra DSK chegou a um acordo – o valor da transação financeira é confidencial. A ex-camareira hoje administra um restaurante de cozinha africana no Bronx.

Em 2013, DSK se divorciou de Anne Sinclair, casando-se, em 2017, com a empresária franco-marroquina Myriam L’Aouffir. Deixou a política  e assumiu cargos em instituições financeiras da Rússia e da Ucrânia.

Em seu perfil no Twitter, ele se apresenta como consultor de estratégia global. Foi ali que DSK se pronunciou, indiretamente, sobre Quarto 2806. Quatro dias antes de a minissérie chegar à Netflix, tuitou: “Pela primeira vez concordei em fazer um documentário no qual relembro toda a minha história pessoal e profissional, da política francesa às esferas internacionais. Nunca dei a versão dos eventos que marcaram minha saída da vida política; outros fizeram isso por mim, falando de comunicados à imprensa, entrevistas e fatos reais ou supostos. Chegou a hora de eu falar”. E promete esse projeto para 2021.

Dez anos mais tarde, com o mundo certamente outro, resta saber se DSK permanece o mesmo.


QUARTO 2806: A ACUSAÇÃO
l Minissérie em quatro episódios
lDisponível na Netflix

Imovision/divulgação
(foto: Imovision/divulgação)

FICÇÃO EM NY

Antes do viés documental, o caso DSK foi relido pela ficção. Lançado em 2014 e dirigido pelo americano Abel Ferrara, Bem-vindo a Nova York (foto) retrata o escândalo com Gérard Depardieu e Jacqueline Bisset interpretando Devereaux e Simone (no caso, DSK e Anne Sinclair). Sem jamais expor o nome do executivo, o diretor, com muitas liberdades, apresenta um homem repugnante e viciado em sexo que dá início ao seu ocaso, público e privado, depois de tentar estuprar a camareira de um hotel nova-iorquino. Lançado no Festival de Cannes, o longa suscitou indignação dos envolvidos. DSK entrou com ação judicial contra Ferrara por calúnia e difamação. Anne Sinclair se disse “enojada” e acusou o filme de antissemita. O longaestá disponível na Globoplay.

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