Estrelado pelo xamã Regis Myrupu, 'A febre' chega ao streaming

Ator indígena diz que a cultura de seu povo tem muito a oferecer ao cinema nacional. Premiado internacionalmente, longa está no Net Now, Oi Play e Vivo Play

Pedro Galvão 06/12/2020 04:00
FESTIVAL DE LOCARNO/DIVULGAÇÃO
Regis Myrupu comemora o prêmio de Melhor ator do Festival de Locarno, em 2019, na Suíça (foto: FESTIVAL DE LOCARNO/DIVULGAÇÃO)

Depois de ganhar o prêmio de melhor atuação masculina no festival suíço de Locarno, em agosto de 2019, logo em sua estreia no cinema, a vida de Regis Myrupu, protagonista do filme A febre, poderia ter mudado. Ele garante que não. Porém, a projeção conquistada em outros festivais internacionais, como o francês Biarritz, foi reforçada recentemente. No último dia 12, o longa estreou nas salas de algumas cidades brasileiras, além de entrar para o catálogo dos serviços de streaming Net Now, Oi Play e Vivo Play.
 
Com isso, mais gente pode conhecer a história do personagem Justino, até agora restrita a eventos voltados para cinéfilos. Descendente da etnia desana, ele trabalha no porto de Manaus e tenta conciliar a vida na metrópole com as tradições culturais de sua família indígena. Uma febre misteriosa o leva de volta à aldeia de onde saiu há vários anos.

“Não vejo grande mudança na minha vida depois do filme. Continuo fazendo o que fazia antes: um pouco na floresta aí no Brasil, um pouco aqui na Itália. Continuo trabalhando com a minha cultura, então não vejo uma mudança extraordinária”, diz Myrupu, em entrevista por telefone. No momento, ele está na Úmbria com a companheira italiana Romina, que conheceu no Brasil em 2013, e a filha Yusiò Celeste, de 1 ano e cinco meses.

Myrupu não participou de outro filme, embora tenha recebido convites e feito testes de elenco. A importância da sua representatividade, tanto no longa dirigido por Maya Da-Rin quanto na vida real, fortalece-se nestes tempos complicados.

FLORESTA 

Filho, neto e herdeiro do conhecimento espiritual de gerações de xamãs, Regis Myrupu se tornou um dos raríssimos indígenas protagonistas do cinema brasileiro. Enquanto A febre roda o mundo conquistando plateias e críticos, a Floresta Amazônica, onde ele nasceu, arde em incêndios, registrando o maior patamar de desmatamento em uma década, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

“Esse lado é muito triste e aqui fora dá vergonha. Todos perguntam sobre as queimadas, se é verdadeiro ou mentira. As pessoas aqui sabem que é verdade. Não é uma coisa acidental, não é algo que se faz por necessidade de plantio, é apenas ambição e ganância”, afirma.

Myrupu questiona o desempenho das autoridades brasileiras. “Infelizmente, não temos um representante no Brasil. É o que falo para eles aqui: estamos à deriva”, adverte, relatando a decepção dos estrangeiros com quem conversa sobre a situação ambiental do país.

“Somos vistos como burros, incapazes. Temos de pegar um espelho e ver. Fazer uma reflexão, nós mesmos, para termos a capacidade de escolher um representante de verdade, uma pessoa que tenha cabeça bem instruída, inteligente, com aquela segurança e capacidade, que se preocupe com todos os lados, no sentido da população e da natureza”, defende.

Assim como o Justino de A febre, Regis Myrupu traz a sabedoria sobre a natureza herdada dos ancestrais. “Sou indígena e nasci na linha de conhecedores xamãs. Meu pai foi pajé, meu avô, meu bisavô e o trisavô também. Esse conhecimento foi passado sempre de forma oral, sem precisar de papel ou caneta. Então, isso (a destruição da floresta) é muito triste para uma pessoa que vive com a natureza de forma muito intensa”, comenta.

“Esses seres de que a cultura não indígena fala, de natureza morta, de fenômenos da natureza, tudo o que vocês falam, árvore, peixe, tudo, são seres vivos.  Nesse espaço, tudo se move”, ensina Regis. Para ele, o mundo se divide em tribos diferentes. “Seres das árvores, ou seja, tribos das árvores, tribos das pedras, tribos dos peixes. Eles têm duas formas de aparência: uma de pessoa, uma de animal. A espiritualidade é muito forte. Então, quando através da nossa ambição a gente destrói e queima uma floresta, a gente não está matando só a árvore, mas uma comunidade de seres, que choram como nós.”

O xamã adverte: “Nós acreditamos só naquilo que vemos e tocamos. O mundo não é feito só daquilo que a gente toca. É feito de coisa visível, invisível, tem um lado espiritual, físico, psíquico, emocional. O mundo é feito dessa forma. Nós precisamos ter essa consciência.”
Barbara Alvarez/Tamanduá Vermelho
Indígenas interpretando indígenas: Regis Myrupu e Rosa Peixoto vivem pai e filha em A febre (foto: Barbara Alvarez/Tamanduá Vermelho)


TARZAN 

Nascido em uma tribo desana de Pari Cachoeira, no Alto Rio Negro, no Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, Regis acumula vivências que vão muito além da floresta. Ainda jovem, deixou a aldeia, onde se lembra de ter assistido pela primeira vez a um filme: Tarzan, projetado em um lençol por missionários.

Pela tradição desana, depois de deixar a aldeia, ninguém pode voltar para morar ali novamente, apenas para visitar. Com o pai, Regis conheceu vários locais e viveu em Barcelos, município próximo da divisa com Roraima. Lá, ele e a família se divertiam com telenovelas. Era até possível ver filmes na TV, embora fosse complicado chegar ao fim, pois a energia elétrica era ligada às 18h e cortada às 22h.

A admiração de Myrupu pelo audiovisual se transformou em pertencimento na comunidade Praia do Tupé, a 25 quilômetros de Manaus, onde ele foi morar em 2002. O primeiro contato com a câmera veio por meio do turismo, quando eram filmadas danças da tradição indígena para exibição aosvisitantes. 

Anos mais tarde, seu caminho se cruzaria com o da cineasta carioca Maya Da-Rin. Depois de filmar documentários na Amazônia, ela planejava rodar seu primeiro longa de ficção, cujo papel principal acabou com Regis.

“Passei um ano fazendo pesquisa de elenco com os colaboradores, que me ajudaram muito. Conversei com 500 pessoas de diferentes comunidades até encontrar o Regis Myrupu. No momento em que conversamos, percebi que ele trazia muito do que eu pensava para Justino. O Regis tem presença muito forte, com olhar muito forte, um olhar corporal muito preciso nos gestos e movimentos. Isso vem da trajetória pessoal de vida dele”, conta a diretora de A febre.

Aquele ator se encaixava perfeitamente na proposta da cineasta. Maya pretendia contar uma história sobre o movimento de quem migra para viver na metrópole, “mostrando como as relações familiares, pessoais e com o espaço da cidade afetam a vida das pessoas”.

CONTRASTES 

A cineasta queria, sobretudo, fazer um filme sobre como uma família indígena vive em Manaus, “cidade muito específica pelos contrastes da presença industrial e da floresta”. Sua proposta era oferecer um olhar especial: “O ponto de vista dos personagens, dos protagonistas, do mundo interior deles, do que os move nesse deslocamento da terra de origem para viver em um outro lugar, com formas de organização distintas.”.

Além de Regis Myrupu, o elenco conta com a indígena Rosa Peixoto, no papel de Vanessa. Filha de Justino, ela trabalha em uma unidade de atendimento de saúde e acaba de ser aprovada para estudar medicina em Brasília.

Vanessa enfrenta dilemas que envolvem a mudança para a capital federal, onde viverá longe da família, mas sem deixar de preservar as tradições indígenas. Uma delas é a língua, pois boa parte do filme é falado em tukano. Essa opção de Maya deixou os atores novatos ainda mais à vontade nas cenas, além de trazer importante perspectiva para A febre.

“Isso é muito saudável para a arte. Pensar que temos 200 línguas no território brasileiro e dificilmente escutamos uma que não seja português. Temos forte tradição de artistas indígenas trazendo essa possibilidade, que nos dá acesso a entendimentos diferentes e a outras percepções políticas e culturais”, observa a diretora. De acordo com ela, A febre é fruto da produção cultural índígena pulsante, que nem sempre tem a visibilidade merecida.

“Na realidade indígena, as questões não se reduzem a um tema. Isso acaba recorrente em produções não indígenas sobre universos indígenas, que quase sempre tematizam, colocando as produções em um certo nicho. Isso acaba limitando muito o acesso a elas”, diz a cineasta.

Maya define seu longa não como filme etnológico, mas “ficção sobre uma família desana que lida com uma série de questões e cruzamentos que são parte de todas as culturas”. A diretora carioca espera ver mais produções com personagens indígenas interpretados por artistas indígenas.

Nesse sentido, Regis Myrupu é uma grande inspiração. Depois do filme, ele foi procurado por muitas pessoas de origem indígena que revelaram o interesse em atuar e participar de filmes como A febre.
 
“Se roteiristas e produtores do audiovisual dessem mais importância à cultura indígena, explorariam muitos conteúdos bons, que fariam a sociedade nos ver de outras perspectivas”, afirma Myrupu. A febre ganhou o prêmio de Melhor filme em festivais na China, Argentina, Portugal, Estados Unidos, Uruguai, Chile, Peru, Alemanha e Espanha.

Orgulhoso do filme, ele comenta que esse sucesso se deve a não apenas ter indígenas nos papéis principais, mas ao fato de mostrar a diversidade. “São indígenas protagonizando e falando a própria história, sobre o que está acontecendo. O indígena pode ingressar em qualquer tipo de trabalho, participar de filme, estudar medicina ou trabalhar em um escritório”, conclui o premiado ator.

A FEBRE
Direção de Maya Da-Rin. Com Regis Myrupu, Rosa Peixoto, Suzy Lopes, Johnatan Sodré e Kaiaro Jussara Brito. Disponível nas plataformas de streaming Net Now, Oi Play e Vivo Play.

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