Embate entre realidade e ficção marca a série 'O mecanismo'

Dirigida por José Padilha e inspirada na Lava-Jato, cineastas e historiadora questionam a linha adotada na série

por Cecília Emiliana 30/03/2018 08:25

Pedro Saad/ Karima Shehata/ Netflix
Selton Mello faz o papel do agente Marco Ruffo, encarregado de investigar a corrupção de políticos (foto: Pedro Saad/ Karima Shehata/ Netflix)

Sabe um cancro? Se a gente não matar isso agora, pela raiz, essa porra vai espalhar”, adverte Marco Ruffo, agente da “Polícia Federativa” vivido por Selton Mello na série O mecanismo, dirigida por José Padilha e inspirada na Operação Lava-Jato. Produção original da Netflix, a atração estreou na sexta-feira passada em meio a um “tiroteio” de polêmicas. As “balas” vêm de quase todos os lados: de artistas a políticos, passando por militantes de esquerda, que acusam o cineasta de “crimes” variados, como abuso de licença poética e “assassinato de reputação”.


Grande parte da celeuma se deve à cena em que a frase “estancar a sangria” sai da boca de João Higino, personagem inspirado no ex-presidente Lula. Na vida real, a afirmação foi feita pelo senador Romero Jucá (MDB-RR). Um dos principais articuladores do impeachment, o parlamentar se referia à necessidade de pôr freio às ações da Lava-Jato.
Lançada neste ano eleitoral, em meio à intensa polarização política e guerra nas redes sociais, a produção despertou a ira da ex-presidente Dilma Rousseff. Por meio de nota oficial, ela acusou: “A série O mecanismo é mentirosa e dissimulada. O diretor inventa fatos. Não reproduz ‘fake news’. Ele próprio tornou-se um criador de notícias falsas”.


Sobrou para a Netflix, alvo de uma campanha de boicote a seus serviços. “A alternativa ao boicote seria o silêncio e essa não é uma opção pra mim”, diz o crítico de cinema Pablo Villaça, um dos líderes do embate com a empresa de streaming. “O problema, do meu ponto de vista, não é que um cineasta seja de direita nem as crenças políticas do Padilha. Ele tem todo o direito de se posicionar como quiser, é muito legítimo. Mas a estratégia narrativa desta série chega a ser mau caráter. Os fatos históricos ali foram muito deturpados. Colocar a frase do Jucá na boca do Lula é de uma má fé incrível”, afirma o mineiro, com 230 mil seguidores no Twitter.


Villaça diz que o lançamento de O mecanismo não foi o único motivo que o levou a interromper sua assinatura da Netflix. Explicou que se trata de um processo de desgaste que inclui fatores éticos, políticos e artísticos. “A empresa é muito eficaz em suas propagandas e em se pintar como uma corporação cool, que ama o audiovisual e a ética. Infelizmente, assim como ocorreu com o Facebook – que seguia o mesmo caminho, ao afirmar querer apenas aproximar as pessoas e se revelou uma plataforma de intolerância que passava os dados confidenciais de seus usuários para outras empresas –, o serviço de streaming, aos poucos, foi permitindo que víssemos outras facetas que tornavam difícil comprar o seu discurso”, argumenta. A Netflix não se pronunciou sobre cancelamentos e possíveis prejuízos causados pelo boicote.

DISTANCIAMENTO O cineasta mineiro Helvécio Ratton acha que a campanha, na verdade, ajuda a promover O mecanismo. Ele dirigiu um filme que também aborda fatos históricos: Batismo de sangue (2006), sobre a atuação de frades dominicanos durante a ditadura militar e a morte do guerrilheiro Carlos Marighella. Para o diretor, o colega abusou da licença poética. “O momento histórico do qual José Padilha trata é muito recente. Haveria distanciamento suficiente para contar essa história?”, pondera.


Diretor de Joaquim (2017), longa sobre a trajetória de Tiradentes antes de se tornar o herói da Inconfidência Mineira, o pernambucano Marcelo Gomes concorda. “Olha, respeito o Padilha, embora não acompanhe muito o cinema dele. Por uma questão de gosto mesmo, sou ligado em outras coisas. No meu filme, contei uma história que ocorreu há 250 anos e tive dificuldades. Fico imaginando se é possível contar direito algo que ainda está em curso. Na atual conjuntura política, em que estamos tão divididos, acho natural que a obra tenha acirrado os ânimos e provocado essa reação nas pessoas”, diz Gomes.


Narrativas sobre fatos recentes não só são possíveis, como bem-vindas, acredita Heloísa Starling, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ela, um filme é um instrumento de reflexão em qualquer tempo. “Apenas lamento que José Padilha, autor, inclusive, de outras obras muito interessantes, não tenha sido fiel aos fatos. Do meu ponto de vista, isso, especificamente, é um desserviço, pois confunde as pessoas. E turva ainda mais o momento político que vivemos, já tão complicado. No mais, ninguém é isento, nem quando tenta ser neutro. Ele tem direito a tomar o partido, a posição que quiser. Mas poderia ter feito isso sem passar por cima da história”, afirma a autora do livro Brasil: Uma biografia, em parceria com Lilia Moritz Schwarcz.

“BOBOCA” A assessoria do cineasta José Padilha não respondeu aos contatos da reportagem. Em entrevistas concedidas esta semana, o diretor afirmou que “para quem sabe ler, é possível separar a série da realidade”. Para ele, é “boboca” a polêmica em torno da frase de Jucá. Por fim, ironizou o boicote à Netflix. “Que pena, vão perder a quarta e próxima temporada de Narcos!”, brincou, referindo-se à produção, assinada por ele sobre a trajetória de Pablo Escobar.

 

 

Quem é
quem
JOÃO HIGINO
Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

PAULO RIGO
Juiz Sérgio Moro

JANETE RUSCOV
Ex-presidente Dilma Rousseff

SAMUEL THAMES
Presidente Michel Temer

LUCIO LEMOS
Senador Aécio Neves

MARCO RUFFO
Gerson Machado, agente da Polícia Federal

RICARDO BRECHT
Empreiteiro Marcelo Odebrecht

MARIO GARCEZ BRITO
Ex-ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos

TOM CARVALHO
Empreiteiro Leo Pinheiro

PENHA
Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados

PETROBRASIL
Petrobras

POLÍCIA FEDERATIVA
Polícia Federal

MFP
Ministério Público Federal (MPF)

PROCURADORIA-GERAL REPUBLICANA
Procuradoria-Geral da República (PGR)

 

Pontos polêmicos

 

CASO BANESTADO
A série sugere que o escândalo do Banestado, esquema de remessa ilegal de recursos para o exterior, deu-se durante o governo Lula, a partir de 2003. Na verdade, ele ocorreu durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso e foi investigado em 2003.

IMPEACHMENT
Em vários momentos de O mecanismo, o senador Lúcio Lemos
(Aécio Neves) conspira com o vice-presidente Samuel Thames (referência a Michel Temer) para derrubar a presidente
Janete Ruscov (Dilma Rousseff).

SANGRIA
Frase dita pelo peemedebista Romero Jucá, um dos articuladores do impeachment de Dilma Rousseff, “estancar a sangria” (referência a investigações e prisões da Lava-Jato) é atribuída ao personagem João Higino, que remete ao ex-presidente Lula.

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