Empoderamento feminino implode papéis de vilã e mocinha na televisão

'Bibi tem uma ética muito flexível', diz Juliana Paes

por Ana Clara Brant 17/09/2017 07:00
Sérgio Zalis/divulgação
Sérgio Zalis/divulgação (foto: Sérgio Zalis/divulgação)

Mocinha: heroína de histórias e filmes de aventura.

Vilã: mulher que usa métodos perversos, desumanos ou antiéticos para atingir seus objetivos.

Não há novela de TV sem essas duas figuras femininas, mas não é de hoje que o papel delas vem se modificando. Mocinhas se tornam vilãs, vilãs se tornam mocinhas e há até aquelas que encarnam as duas ao mesmo tempo. Um dos trunfos de A força do querer, atual sucesso da TV Globo, é Bibi (Juliana Paes). Nos primeiros capítulos, a estudante batalhadora e honesta está noiva de Caio (Rodrigo Lombardi), advogado, empresário e herdeiro da tradicional família Garcia. Movida pela paixão, ela embarca numa aventura com Rubinho (Emílio Dantas), com quem se casa. Acaba se envolvendo no mundo cheio de perigos do marido, traficante de drogas. Surge a Bibi Perigosa.

“Acredito que Bibi vai longe demais em ultrapassar limites. Talvez venha daí a ideia dessa imagem de ‘força da natureza’”, comenta Glória Perez, autora da novela. A personagem de Juliana Paes comprova que as clássicas mocinhas – bobas, ingênuas e boazinhas demais – estão ficando ultrapassadas. “O brasileiro se cansou, faz tempo, daquele padrão. Esse tipo de personagem irrita, despertando logo a justa antipatia do público. Hoje em dia, todos querem mocinhas ativas, que não dão a outra face e enfrentam os vilões. Tanto que os autores têm procurado evitar clichês”, acredita Sérgio Santos, blogueiro apaixonado por TV.

Bibi, aliás, tem provocado todo tipo de reação nas redes sociais. A internet bombou quando foi ao ar a surra que a moça leva da mãe, Aurora. A maior parte dos comentários apoiou a atitude da personagem de Elisângela. “O perfil da Bibi é bem delineado pela autora, desperta simpatia em uns momentos e ódio em outros, além de estar no horário nobre. Um papel tão bom quanto esse foi a Carol Castilho, em Totalmente demais, também interpretada por Juliana Paes. Parecia uma vilã arrogante e rica, mas era complexa e muito humana. A atriz deu um show. Se não existisse a Bibi, seria o melhor papel dela”, acrescenta Sérgio Santos.

A força do querer traz outras duas “mocinhas” nada convencionais: Jeiza (Paolla Oliveira) e Ritinha (Ísis Valverde), que fogem ao estereótipo tradicional. Doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de A Hollywood brasileira – Panorama da telenovela no Brasil, Mauro Alencar explica que os personagens sempre acompanham a evolução da sociedade. São criados a partir de um estrato social, fruto de determinado tempo e espaço. Isso vale para teatro, literatura e TV.

MÃE SOLTEIRA Alencar cita o exemplo de Selva de pedra (1972): mulher independente, a artista plástica Simone (Regina Duarte) fumava. Em Pai herói (1979), recorda, a mocinha Carina (Elizabeth Savalla) se casa e, na noite de núpcias, revela ao marido que é mãe solteira.

“Desde que o Brasil entrou na era moderna e industrial de nossa telenovela, no início da década de 1970, as mocinhas têm sido apresentadas em grande sintonia com a realidade. Porém, sem abandonar exemplos românticos, claro. Sem isso perde-se o encanto da vida”, diz Alencar.

Para ele, Bibi, Jeiza e Ritinha estão perfeitamente alinhadas com a realidade do país. “As três são a representação máxima do empoderamento feminino, tão em voga. No futuro, qualquer cientista social que queira saber como estava o Brasil em 2017 deve passar, obrigatoriamente, por A força do querer – um documento artístico contemporâneo – e suas protagonistas”, ressalta.

ATITUDE Glória Perez diz que mocinhas boazinhas e ingênuas nunca fizeram parte de suas novelas, cujas protagonistas sempre foram mulheres de atitude, transgressoras. Seja a Clara de Barriga de aluguel (1990), a Dara de Explode coração (1995), a Jade de O clone (2001), a Sol de América (2005), a Maya de Caminho das Índias (2009) ou a Morena de Salve Jorge (2012).

“Elas enfrentavam todos os desafios para buscar o que queriam para si. Jeiza, Bibi e Ritinha são como foram todas as minhas protagonistas. Impetuosas, fortes, transgressoras. Nada politicamente corretas”, defende a novelista.

Das três, só Jeiza tem o perfil padrão de mocinha, acredita o blogueiro Sérgio Santos. “Heroína clássica, ela é quase a Mulher-Maravilha: 100% honesta, marrenta, corajosa, policial e lutadora de MMA. Já Ritinha é uma sonsa carismática, algo bem típico das sereias manipuladoras das lendas, enquanto Bibi é a figura dúbia que jogou os princípios no lixo pela paixão obsessiva. No começo, houve simpatia pelo amor do passado que a humaniza, além do filho e da mãe. Porém, muitos torcem para Bibi se ferrar – e com razão. Pelo menos antes do final feliz, regenerada. Além disso, a bandida sensual sempre encanta. Mas a Bibi não tem nada de mocinha”, analisa. Alguns sites já especulam que Perigosa terá um desfecho feliz ao lado de Caio e do filho.

GLAMOUR Há quem acredite que a grande evidência dada a Bibi glamouriza o mundo do crime ao retratar a vida de luxo dos bandidos e, sobretudo, festas regadas a funk e muita ostentação. Mauro Alencar discorda. Na verdade, A força do querer serve de alerta à sociedade, acredita. Ele considera falta de conhecimento social, estético e artístico considerar que a trama glamouriza o crime.

“Como bem lembrava o poeta Ferreira Gullar, a arte tem a capacidade de transformar a dor em prazer estético. Caso contrário, estaríamos diante de um documentário ou matéria jornalística. Certamente, Picasso não glamourizou os bombardeios a Guernica durante a Segunda Guerra Mundial em sua magistral criação artística”, afirma o especialista.

“Do mesmo modo, basta lermos em sua origem as fábulas de Esopo e os contos de Hans Christian Andersen ou dos irmãos Grimm para atestarmos o quanto essas belíssimas histórias foram reelaboradas com todo o aparato artístico, ao longo dos tempos, a fim de encantar as plateias do mundo todo. Muitas vezes cruéis na essência, ao se transformar em produto de consumo artístico, elas conseguiam transmitir o principal objetivo do autor que as recontava: alertar a massa de leitores sobre as mazelas humanas. Afinal, como bem nos lembrava Vinicius de Moraes, são demais os perigos desta vida.”

Três perguntas para...
JULIANA PAES
ATRIZ

Bibi é a mocinha que virou bandida? Como você a classificaria?
Bibi é muito passional. Não é mulher de má índole, mas tem uma ética muito flexível.

Por que Bibi ganhou tanta repercussão?

A personalidade dela é muito ambígua, por isso acredito que a repercussão nas ruas é grande e muito variada. Se estou junto às classes mais abastadas, escuto: “Que absurdo! Vontade de dar uns tabefes nessa Bibi! Larga logo esse homem!”. Mas se estou numa comunidade, e já gravei em algumas, o feedback é totalmente diferente. Dizem: “Entendo a Bibi, já tive uma tia, uma prima ou uma mãe que passou por isso”; “Já passei por isso, fiz loucuras por amor e me arrependi”; ou “Já deixei de fazer muita coisa na minha vida por causa de homem.”

Sua personagem glamouriza o mundo do crime?
De forma alguma, pois Bibi está sofrendo muito por conta das escolhas erradas que fez. Torço para que ela aprenda com os próprios erros. Essa é uma boa mensagem a passar.

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