Câncer de tireoide e obesidade: duas epidemias que podem ter algo em comum

Quase 54 mil novos casos de câncer de tireoide foram diagnosticados em 2018, correspondendo a 3,1% de todos os novos casos de câncer confirmados durante esse ano

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(foto: Reprodução da internet)

A prática diária da medicina e em particular na endocrinologia vem mudando rapidamente ao longo dos últimos anos. Uma máxima em medicina é de que a avaliação clínica com anamnese e exame físico é soberana antes de qualquer avaliação laboratorial ou de imagem. Na endocrinologia, dependemos muito de exames laboratoriais para documentar o excesso ou falta de hormônios encontrados em várias doenças específicas. 

No nosso processo de aprendizagem e formação na especialidade, a vida inteira ouvimos e aprendemos com os grandes mestres que a investigação hormonal e documentação das doenças endócrinas após uma boa história clínica deveria ser documentada laboratorialmente. Assim, após a confirmação laboratorial que, em muitos casos, envolve vários passos de investigação, com testes de supressão ou estímulo das glândulas endócrinas, sempre deveria ser feita primeiro. Somente após essa avaliação inicial é que estaríamos autorizados então a solicitar métodos de imagem como ultrassonografia, tomografias ou ressonâncias para encontrar o motivo dos distúrbios hormonais.

Atualmente, o cenário mudou bastante pois os pacientes já chegam no primeiro atendimento trazendo pastas recheadas de exames incluindo os exames de imagem. Dessa forma, várias novas situações passaram a fazer parte do cotidiano dos médicos e uma nova categoria de problemas decorrentes da tecnologia vem se tornando bastante frequente.

Entre essas novas condições temos hoje o que se convencionou chamar de “incidentalomas”. São achados de significado incerto e muitas vezes silenciosos que foram detectados por acaso em exames de imagem feitos por um outro motivo. Assim pacientes ao fazer um exame de imagem por algum outra queixa ou condição médica acaba visualizando alguma lesão em outro órgão que não vinha trazendo quadro clínico para o paciente. Isso acaba demandando mais consultas e exames a serem solicitados para esclarecer esses achados incidentais.

Nas consultas, é cada vez mais comum os pacientes já chegarem trazendo ultrassom de tireoide com vários achados incidentais de nódulos tireoidianos milimétricos. Esses nódulos são detectados em exames realizados sem um motivo específico, já que existe uma cultura atual, equivocada, de fazer ultrassom como se fosse necessário fazer de rotina esse tipo de exame.

Outro cenário é o que ocorre em pacientes que tiveram que fazer exames na região cervical para investigar outras doenças, como exame vascular das artérias carótidas. Um efeito colateral dessa prática tem sido mais demandas de exames, consultas de acompanhamento e procedimentos cirúrgicos.

A incidência de câncer de tireoide tem aumentado nas últimas décadas. Quase 54 mil novos casos de câncer de tireoide foram diagnosticados em 2018, correspondendo a 3,1% de todos os novos casos de câncer confirmados durante esse ano e figurando como o 12º tipo nos Estados Unidos.

Ainda usando os dados norte americanos, os diagnósticos desse câncer aumentaram em média 3,1% ao ano nos últimos anos, consistente com uma tendência semelhante em todo o mundo nas últimas décadas. É o câncer que mais cresce, de modo que, se as tendências atuais continuarem, o câncer de tireoide deverá ser o quarto câncer mais comum até 2030.

Muitos pesquisadores atribuem esse padrão ao sobrediagnóstico da doença, isto é, a detecção de câncer de tireoide resultante principalmente de achados incidentais de nódulos tireoidianos na era atual de aumento de realização da imagem ultrassonográfica. A maioria dos dados atribui o crescente número de diagnósticos de câncer de tireoide à detecção de microcarcinomas, que geralmente não contribuem para o aumento da mortalidade.

Apesar do tratamento de escolha ainda ser a cirurgia, hoje em dia tem sido proposto tratamentos cada vez mais conservadores. Vem crescendo a opção em alguns casos muito bem selecionados e após uma decisão compartilhada entre médico e paciente, a possibilidade de se abster de realizar a cirurgia e o paciente ser apenas submetido à vigilância ativa.

Na Coréia do Sul, após alguns anos utilizando campanha de rastreamento sistemático com ultrassom de tireoide incentivado por uma politica de saúde houve um significativo aumento de casos não complicados de câncer de tireoide.

Recentemente, após uma reavaliação do impacto dessa estratégia ela foi abandonada. Em contrapartida alguns pesquisadores alegam que mesmo havendo sobrediagnostico, houve também um aumento real do tipo de câncer de tireoide menos comum mas que se apresenta em estágio mais avançado e que apresenta taxas de mortalidade mais altas representando um verdadeiro aumento na incidência de câncer de tireoide e não apenas aumento de detecção por excesso de exames de ultrassom.

Esses dados apresentam a necessidade de examinar essa questão de outras maneiras, tentando compreender melhor que fatores possam estar levando a aumento deste tipo de tumor. Embora seja reconfortante saber que a maioria dos nódulos tireoidianos seja benigna e que apenas uma minoria dos nódulos são malignos.

Os fatores de risco atualmente conhecidos para o câncer de tireoide incluem a exposição à radiação ionizante na cabeça e pescoço ou após exposição à radiação nos locais onde ocorreram acidente nuclear. Uma base genética é responsável por apenas 5% a 10% dos casos câncer diferenciado de tireoide (CDT). Portanto, outros fatores têm sido pesquisados para tentar explicar esse aumento da prevalência do CDT e algumas evidências relacionam com a obesidade e e poderia ser um dos fatores de risco.

Estudos epidemiológicos e metanálises anteriores demonstraram que a obesidade estaria associado de forma independente a um aumento da incidência de câncer de tireoide. Tem sido relatado que a prevalência de obesidade coincide com o aumento da incidência de câncer de tireoide nos Estados Unidos. Em 2016 a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer relatou um aumento do risco de câncer de tireoide com cada aumento de 5 kg/m2 no IMC. Mas a relação entre obesidade e CDT ainda é controversa.

Alguns estudos mostraram uma associação positiva, enquanto outros não mostraram conexão significativa. Além disso, estudos recentes foram feitos principalmente em populações ocidentais e poucos estudos realizados em populações asiáticas.

A China vem se transformando no país com o maior número de indivíduos obesos em todo o mundo e tem uma taxa crescente de CDT que aumentou 5 vezes entre 2003 a 2012. Estudo realizado no Departamento de Cirurgia da Tireoide, do Hospital União China-Japão da Universidade de Jilin, que é um dos centros mais reconhecidos para diagnóstico e tratamento de doenças da tireoide na China foi publicado em 2019.

Um total de 10.668 participantes (2254 homens e 8414 mulheres) com CDT confirmados por biópsia após a tireoidectomia entre 2015 a 2018 foram comparados com 11858 controles (2494 homens e 9354 mulheres). Todas as medidas antropométricas feitas no grupo CDT foram significativamente maiores do que aquelas no grupo controle. As porcentagens de sobrepeso (32,9%) e obesidade (6,3%) no grupo CDT foram mais altas do que as do grupo controle (28,2% e 4,4%, respectivamente).

Esses dados adicionam às evidências existentes sugerindo que a obesidade poderia ser um fator de risco potencial independente para CDT. Vai ser imperativo fornecer mais evidências para esclarecer a relação clínica entre obesidade e câncer de tireoide e seus mecanismos biológicos. Uma vez estabelecido mais claramente essa correlação, a intervenção na obesidade pode vir a beneficiar a prevenção e o tratamento do CDT.