Testes genéticos detectam predisposição hereditária ao câncer de intestino

Casos de câncer colorretal, de estômago, pâncreas, bexiga, ovário e endométrio em pessoas jovens do mesmo grupo familiar podem indicar risco familiar

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(foto: mcmurryjulie/Pixabay)

Quem está atento às redes sociais, deve ter visto algumas ações a respeito do Março Azul Marinho, campanha que se soma aos esforços realizados nacionalmente no Setembro Verde para a conscientização sobre a prevenção do câncer intestinal – colorretal ou cólon e reto, como também é chamado.

Como as campanhas normalmente enfatizam a prevenção primária com a adoção de hábitos saudáveis e o rastreamento com colonoscopia a cada três anos, a partir dos 50 anos, para a população em geral, aproveitarei a oportunidade para alertar sobre os casos resultantes das chamadas síndromes hereditárias, que nem sempre recebem a devida atenção quanto a necessidade de prevenção mais precoce em relação ao restante da população.

Para tal, dividirei o tema em duas colunas: o uso dos testes genéticos para a prevenção, hoje, e para a definição de tratamentos oncológicos de precisão, na próxima segunda-feira.

Para começar, é importante saber que cerca de 15% dos casos de câncer são causados por mutações herdadas geneticamente. Suspeitamos dessa situação quando há casos de câncer na família, especialmente, o de intestino, mas também de útero, ovário, endométrio e do aparelho digestivo, em pessoas mais jovens, em geral com idade abaixo dos 55 anos, ou até mais jovens como adolescentes e adultos jovens, no caso da Polipose Adenomatosa Familiar

Existem vários tipos de síndromes hereditárias que podem causar câncer de intestino, sendo duas as principais. A primeira é a Polipose Adenomatosa Familiar, causada por mutações nos genes APC e o MUTYH. Indivíduos com essa síndrome já na mais tenra idade, ou até na infância e adolescência, começam a desenvolver pólipos intestinais, inicialmente benignos.

Com o passar dos anos, os pólipos vão se multiplicando, chegando a centenas e até milhares. Alguns deles acabam se malignizando, de forma que a chance dessas pessoas terem um câncer de intestino chega a quase 100% já aos 25, 30 anos.

O diagnóstico da Polipose Adenomatosa Familiar ocorre em geral na adolescência e na puberdade, feito pelo próprio pediatra, ou no mais tardar na faixa dos 20 a 25 anos. É comum ocorrem sintomas como diarreia e sangramento.

A outra síndrome hereditária mais comum é a chamada síndrome de Lynch, em que normalmente o câncer acontece mais tarde, a partir dos 30 a 40 anos, um pouco antes, um pouco depois. Geralmente o câncer nasce na área mais à direita do intestino, no ceco e cólon ascendente. Pode ou não nascer de um pólipo. Eventualmente, não.

Essa síndrome predispõe ao câncer de intestino, abaixo dos 55 anos, mas também a outros tipos de câncer. Por isso, deve-se observar com atenção quando, na mesma família há grande incidência de tumores como ovário, endométrio e outros tipos de tumores do aparelho digestivo como pâncreas, estômago etc.

Os tumores na Síndrome de Lynch aparecem devido às mutações presentes no grupo de genes responsáveis pelo reparo das incompatibilidades ou desalinhamentos entre as fitas do DNA. Esse sistema de reparo atua no reconhecimento e reparação de alterações das bases do nucleotídeos (conjunto formado por três moléculas que compõem as fitas de DNA – lembre-se das aulas de biologia), quando há defeitos na fita de DNA.

Os principais genes com essa função são o MLH, MSH2, MSH6 e o PMS2. Quando há mutação em um desses genes – na síndrome de Lynch a pessoa já nasce com uma dessas alterações – ocorre a perda dessa capacidade de reparação resultando no desenvolvimento dos tumores.

Os diagnósticos dessas duas síndromes ocorrem por meio de testes genéticos em que fazemos o sequenciamento germinativo desses genes. Ou seja, o sequenciamento das mutações herdadas. Como são muitos genes, utiliza-se um painel que contemple todos eles de uma vez.  Caso seja confirmado o diagnóstico, poderão ser feitas a prevenção e o rastreamento conforme esses fatores de risco.

No caso das pessoas que não têm síndromes hereditárias, o rastreamento com a colonoscopia será a partir dos 50 anos. Já no caso da Síndrome de Lynch, o rastreamento começa antes, por volta dos 25 anos, dependendo do histórico familiar.

Por segurança, pegamos como base a pessoa que teve câncer mais jovem, e reduzimos o início do rastreamento em 5 anos. A mãe de um paciente meu teve câncer de intestino aos 30 anos, e eu indiquei a colonoscopia anual a ele desde os 25 anos.

Além do câncer de intestino, portadores dessa síndrome podem ter câncer no estômago ou na parte final do esôfago e, por isso, devem ser submetidos anualmente à endoscopia digestiva alta. As mulheres podem ter câncer de endométrio, então, devem ser rastreadas com ultrassonografia. Quando elas já tiveram todos filhos que desejavam, recomendamos a remoção dos ovários e útero.

Mas, até que isso aconteça, indicamos a ultrassonografia transvaginal anual e, eventualmente, fazemos uma ressonância abdominal anual para rastrear pâncreas, bexiga etc. Muitas vezes, discutimos com os pacientes portadores de Síndrome de Lynch o uso preventivo da aspirina, pois existem vários estudos mostrando que aspirina previne câncer no caso dessa síndrome.

Além disso, já tive vários casos de pacientes com Polipose Adenomatosa Familiar em que indiquei preventivamente a remoção do intestino com a colectomia total. Obviamente, é uma decisão que deve ser muito bem pensada, uma vez que essa ação preventiva repercutirá em efeitos colaterais e desconfortos digestivos, como a diarreia com frequência. 

No caso das pessoas que precisam tirar todo o reto, é necessário o uso de uma bolsa de colostomia. Isso é raro, devido a existência de uma cirurgia para reconstruir o esfíncter anal e manter a evacuação normal. Mas, em alguns casos, a pessoa tem que utilizar a bolsa durante toda a vida. Então, é algo que precisa ser amplamente discutido com o paciente e com a família. A boa notícia é que essas intervenções conseguem evitar que a pessoa tenha câncer.

No caso da síndrome de Lynch, em que normalmente não indicamos a remoção do intestino, a não ser em situações especiais, o rastreamento precoce pode detectar a doença numa fase pré-maligna ou numa fase maligna bem inicial em que a cirurgia pode resolver.

Destacados todos esses pontos, enfatizo que vale a pena fazer o diagnóstico das síndromes genéticas: ou vamos evitar o câncer ou detectá-lo em fase bem precoce. Convido, então, o leitor a acompanhar minha coluna na próxima semana, quando vou discutir a importância do estudo molecular dos tumores para a definição de tratamentos mais eficazes e assertivos com a chamada Oncologia de Precisão ou Personalizada.

Nestes casos, não importa se a mutação foi herdada do grupo familiar ou adquirida devido a hábitos de vida ou questões ambientais. O estudo genético do tumor trará benefícios de toda forma. Aguardo você. Até lá!
 
Se você tem dúvidas e sugestões de temas, mande para andremurad@personaloncologia.com.br

 *André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.