Vida digital: cansados de monitoramento, internautas decidem deixar redes sociais

Bureau de previsão de tendências de Londres aponta que o mundo entra em uma nova era emocional com muitas pessoas indo atrás do contato real e não por meio de telas

por Lilian Monteiro 18/03/2019 09:00
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Pete Linforth/Pixabay

 
Você já se imaginou fora das redes sociais? Sem expor sua vida, seus gostos, ideias, valores, posições políticas, sociais e comportamentais? O World Global Style Network (WGSN), empresa de previsão de tendências de Londres, em seu relatório de macrotendências de 2019, o “The Vision WGSN”, acredita que este ano será marcado por uma nova era emocional. O que isso significa? Para os experts, que identificam os principais movimentos econômicos, artísticos, políticos e socioculturais que vão impactar as maneiras como compramos, comemos e nos comunicamos, as pessoas se mostram cansadas do rastreamento obsessivo de seus dados pessoais e mídias sociais/notícias e o desejo de sumir do mapa definitivamente. Assim, para se ver livres desse monitoramento, muitas optam (ou vão optar, já que cada tendência dura em média cinco anos) pelo chamado “suicídio virtual”, que é o ato de deletar as suas redes sociais.

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Essa ideia, conforme o relatório da WGSN, nunca esteve tão presente no imaginário popular. Ainda que tenha de lidar com o contraditório, ou seja, a vontade de permanecer conectado o tempo inteiro, guiado pelo medo da sensação de estar perdendo alguma coisa. Em tempos de extremismo e incertezas, fica difícil cravar qual é a melhor saída; o que se ganha e o que se perde com essa atitude.

Privacidade é um assunto complexo no mundo digital. Muitos pensam que estão no controle da sua exposição. No entanto, esse domínio é frágil e seus dados, uma vez jogados na rede, podem ser acessados sabe-se lá por quem e usados sabe-se lá de que forma. Não faz muito tempo que o Facebook foi mergulhado em um escândalo envolvendo o uso irregular de dados, o que o obrigou a uma série de mudanças na política de privacidade para dar aos usuários “mais controle” sobre suas informações. Há, ainda, denúncias contra o Google, Facebook, Instagram e WhatsApp, que acusam essas empresas de forçar os usuários a aceitarem publicidade dirigida para poder usar seus serviços (liberando seus dados). Ou seja, as pessoas não têm a oportunidade de escolher livremente.

Assim, a sensação de estar o tempo todo sendo vigiado tem incomodado muitos, que passam a viver ou pensar em viver longe das redes sociais, pelo menos até que haja uma regulamentação ainda mais rigorosa e segura quanto à privacidade e quem tem acesso aos seus dados. Se é que isso será possível algum dia. Para muitos, a noção de que suas informações, coletadas a partir de fotos, comentários e curtidas, são a grande fonte de receita da rede social, que fornece os dados para parceiros e anunciantes, chegou ao limite. Há quem defenda que é preciso aproveitar os benefícios da Era Digital e não ficar parado no tempo, e que escândalos de vazamentos de dados, ainda que assustadores, são menores diante da nova sociedade.

A realidade é que controlar como e por quem você quer ser conhecido é um direito cada vez mais ilusório. Por isso, a atitude capturada pelos especialistas da WGSN faz tanto sentido. Eles dizem que muitas pessoas decidem voltar a viver fazendo contato tête-à-tête. E, à medida que a humanidade começa a perceber a relação primordial entre o equilíbrio físico e mental, o consumidor parte em busca do que realmente o sensibiliza. Outra mudança é que essa tendência faz com que ele procure produtos e serviços cada vez mais relacionados às coisas que o tocam emocional e fisicamente.

MERCADORIAS Maria Clara Jost, pós-doutora em psicologia clínica, docente da pós-graduação lato sensu da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) e psicóloga da Tip-Clínica, contextualiza esse cenário. Para ela, de tempos em tempos a humanidade é assolada por grandes ondas de transformação técnico-científica, que se desdobram em diversas outras mudanças, alterando o modo de organização sociocultural e psicossocial. “Mudam-se, assim, o modo de pensar, de agir e até de sentir das pessoas. Alteram-se os costumes, o modo de vestir e de se comportar, os modos de falar e de se relacionar.

Modificam-se os critérios de valores e os juízos éticos. Questiona-se o passado e duvida-se das certezas da tradição, colocando-se em pauta todos os critérios referentes ao julgamento do certo ou do errado, do bem ou do mal. Isso ocorre desde que ‘o mundo é mundo’, diriam, com conhecimento de causa, os mais sábios.”
Todavia, Maria Clara Jost afirma que o advento da chamada Era Digital ou Quarta Revolução Industrial trouxe em seu bojo transformações que superam todas as outras antecedentes, “tanto no que se refere à sua enorme abrangência quanto à velocidade de circulação da informação, movimento que engendra um grande relativismo dos sistemas de valores e interpretação, segundo também colocam os sociólogos Berger e Luckmann. Como decorrência, forjam-se alterações radicais, que não apenas incidem na organização da vida social, nos hábitos, nos costumes e nos relacionamentos interpessoais, porém, afetam igualmente o modo de autocompreensão dos sujeitos”.

Na visão de Maria Clara Jost, encurtaram-se distâncias, promoveu-se a interação entre as pessoas, transformaram-se vidas. “Temos, finalmente, o mundo em nossas mãos”, dirão alguns maravilhados. “Somos ligados, conectados, cercados de informação por todos os lados”, afirmarão outros orgulhosos. “Podemos encontrar e comprar o que quisermos, em qualquer lugar do mundo”, dirão alguns outros encantados. “Certamente, no mundo digital, que é elemento marcante da famosa pós-modernidade, pode-se colocar à disposição para consumo qualquer produto. Pode-se comercializar qualquer coisa. No entanto, numa sociedade organizada pela via de consumo, disponibiliza-se para consumo não somente coisas, mas também pessoas. Tornamo-nos, ‘livremente’, mercadorias de consumo e escravos dos ditames da Era Digital.”
 
A VIDA SEM CURTIDAS

Geralt/Pixabay
(foto: Geralt/Pixabay)
 

Quando alguém que conhece e participou do processo de criação de uma empresa a contesta, é recomendável, ao menos, prestar atenção. O investidor Roger McNamee, ex-mentor de Mark Zuckerberg no início do Facebook, hoje é um dos maiores críticos. Ele, que esteve na última semana no South by Southwest (SXSW), festival considerado um dos maiores eventos de inovação do mundo, em Austin, Texas (EUA), em entrevista ao jornalista Nicholas Thompson, editor-chefe da Wired, declarou que “eles (Facebook) achavam que podiam pegar essas informações (dados dos usuários e fotos aéreas de suas residências) e que não haveria problema. Mas não pensaram no tipo de desafio que teriam. No Facebook, acham que é aceitável pedir desculpas por algo que já ocorreu (escândalo de vazamento de dados). Mas agora isso não funciona mais. A questão é captar todos os movimentos do usuário e seus dados pessoais, prever comportamentos e depois usar a inteligência artificial para levar as pessoas a determinados resultados. Há um problema endêmico”, destacou McNamme, autor do livro Zucked – Waking up to the Facebook catastrophe” (Acordando para a catástrofe do Facebook).

“Sem foto, por favor, sigo coerente com a minha não exposição.” A declaração é do empresário Carlos Alberto Gouveia, de 59 anos, formado em comunicação social, habilitado em jornalismo, relações-públicas e publicidade, com pós-graduação em marketing. Ele não tem redes sociais e usa o WhatsApp apenas para o negócio, assim como teve de criar uma página no Facebook estritamente profissional. “Não freio o fluxo da vida, a evolução, mas posso escolher. E as redes socais não me fazem falta, e sigo antenado com o que ocorre em meu tempo. Agora, essa exposição para o mundo, vejo como muita vaidade. Acho até ridículo e sinto vergonha por quem se exibe. Mas é uma opção. Ainda que eu não a ache inteligente no mundo maléfico de hoje.”

Para Carlos Alberto, menos é mais: “Faço parte de quem escolhe pela presença e convivência. Nada substitui a fala. Aliás, tenho pavor de falar com máquina! É preciso olhar nos olhos, perceber as flexões e reflexões das pessoas. É o que tem mais sentido”. Ele enfatiza que não é contra quem usa com consciência. “No entanto, a maioria é como uma boiada, e isso é um perigo. Tudo que é postado tem domínio de alguém, que a maioria não tem ideia de quem seja. Acho uma opção delicada. Muitos não têm usado a sensibilidade e a inteligência nessa relação. No fim, cabe o bom senso de cada um.”

Carlos Alberto avisa que precisa de amigos presentes e não de amigos de “curtidas”. Ele conta que tem a felicidade de ter grau de amizades com as mais diferentes idades e pensamentos semelhantes. “Tenho amigos de 45 anos de convivência e estamos juntos até hoje. Não sou uma ilha. Agora, por pureza de vida escolhi dizer não. Escolha é riqueza.” O empresário e comunicador diz que não é radical, mas jamais fará essa troca. “A relação com uma pessoa nunca se repete, ela é única e não abro mão disso. Minha rede social é o boteco. E, como autêntico mineiro, nada melhor do que a prosa. E nem por isso sou atrasado, ultrapassado. Simplesmente, seleciono, procuro saber das notícias relevantes e faço escolhas. A vida é de mão dupla, não única. No entanto, acredito que parte das pessoas foram condicionadas. A sociedade não é malévola, é apenas conduzida.”

IDADE Muitos podem até pensar que a idade determina ser ou não capturado pelas redes sociais. No entanto, o estudante de economia Jaime César, de 23, contradiz essa imagem e, há dois anos, se desconectou totalmente. Ele chegou a ter Facebook por um tempo, mas se excluiu porque percebeu que estava tomando muito do seu tempo. “E o que não tenho sobrando ou não quero desperdiçar é o meu tempo.” Ele também conta que sempre foi mais reservado e, por isso, esse universo não faz sentido para sua vida.

Jaime reconhece que, ao sair do Facebook, foi questionado. A pergunta sempre vinha acompanhada de uma exclamação: “por quê!?”. A resposta estava na ponta da língua: “Porque não gosto”. Depois da sua iniciativa, ele revela que mais dois amigos também deletaram seus perfis. “Hoje em dia, o que me interessa é ter foco. Minha namorada tem redes sociais e não me incomoda. Eu não preciso, não me faz falta, são informações banais e de massa que estão por lá, nada de novidades, acaba que um vai replicando o outro.”

O futuro economista conta que também não é ligado em TV. “Não assisto. Sou da leitura e 100% Netflix. Aliás, 90% do publicado nas redes sociais é dado desnecessário, tudo superficial, e a maioria segue como uma manada. Há discussões sem conhecimento e profundidade que não me agregam nada. E estar longe não significa que sou alienado, pelo contrário. A questão é saber o que se quer. Busco informações de fontes seguras e, muitas vezes, como tenho o hábito de ler em inglês, até tenho acesso em primeiro lugar a determinadas notícias. Mas, no fim, tudo é escolha. E respeito todas.”

TRÊS PERGUNTAS PARA ...

Júlia Ramalho Pinto,  sócia-diretora da Estação do Saber e psicóloga

Jair Amaral/EM/D.A Press
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

  
1 – O que você pensa sobre o chamado “suicídio” virtual? 
Ele se concretiza como tendência por alguns fatores. O primeiro, porque grande parte de usuários que viveram a adolescência nas redes sociais (elas se firmaram por volta de 2010), quando tinham de 13 a 17 anos, hoje já está no mercado de trabalho. Nesse sentido, a adolescência como período de impulsividade e transgressão foi vivida nas redes e levou ao que chamamos de tatuagem digital. As bobagens que vivemos e esquecemos nas redes se tornam imortais e públicas, como brigas, zoações, posicionamentos polêmicos etc. Por isso, para essas pessoas é importante, sim, tentar limpar seu histórico, uma vez que cada vez mais empresas vão recrutar on-line. Ter um perfil preconceituoso, por exemplo, pode sim, fazê-lo perder uma vaga que tem por valor a diversidade. Quanto ao risco de se sair das redes sociais e sentir solidão, precisamos lembrar que o número de pessoas que se sentem sós na nossa Era Digital aumentou. Sherry Turckle, pesquisadora do MIT, fala da ilusão de engendrarmos amizades nas redes sociais. As redes não geram contato no sentido de conexão afetiva. O sentimento de vazio impera. Sair das redes e valorizar um bom encontro cara a cara ou com uma conversa pelo telefone pode gerar mais conexão e apoio emocional. Para isso, não é preciso apagar seu perfil. Basta regular o tempo de uso e expectativas quanto ao uso, uma solução menos radical. Uma experiência que tive no fim do ano passado ao trancar meu perfil no Facebook foi perder as datas dos aniversários de amigos. Essa rede funciona muito bem para nos lembrar das pessoas, mas não para aprofundar relacionamentos. Um outro ponto importante a ser pensado é quanto à informação. Durante muito tempo, as redes foram ótimas fontes de informação. Hoje, isso não é bem assim; as fake news, as mentiras, boatos e rumores tomaram conta do fluxo de informação nas redes sociais. Estamos vendo várias pessoas retornarem o tempo dedicado a ler os veículos de credibilidade como jornais e revistas. Sair das redes não significa ficar de fora das informações, pode significar se informar melhor e dar menos ouvidos aos boatos. E quando dizemos que estamos numa sociedade digital significa que estamos fazendo muitas coisas on-line e virtualmente, não só nas redes sociais jogando conversa fora.

2 – Por que o desejo de sair das redes está tão aflorado agora? Falta de privacidade?
Acho que existem vários motivos. Um é aquele comentado anteriormente quanto aos adolescentes entrando no mercado de trabalho. Outro é a exaustão. As redes sociais tiveram o momento da novidade, aproximadamente de 2009 até 2012. Ali, as comunicações eram espontâneas e havia um senso real de compartilhamento. Depois, as redes foram sendo apropriadas por forças de marketing de conteúdo e político, além de se formar um contingente de profissionais para manipular as informações e criar narrativas. Hoje, sabemos que algoritmos moldam nossa visão de mundo. Então, as pessoas foram perdendo a espontaneidade e a credibilidade nas redes sociais. Mas não acredito que seja o caso de invasão de privacidade. A grande maioria das pessoas não tem a menor ideia do que as empresas de tecnologia podem fazer com nossos dados; não mesmo. Agora, as redes sociais proporcionam uma evasão de privacidade, as pessoas espontaneamente se mostram. É um jogo. E cada vez mais se mostram como querem ser vistas, usam sua máscara social. E o jogo social, na realidade, se torna chato para muita gente, é cansativo. Por isso buscamos nossos momentos de reclusão. Acho que a coisa passa mais por aí: sabemos que tudo está sendo manipulado e estamos cansados de ser objeto de manipulação. Agora que o encantamento de estar on-line está passando, é hora de pensarmos onde queremos estar on-line e por quê.

3 – O que seria essa nova conexão que as pessoas estão buscando?
Acho que podemos pensar como um retorno ao que é importante. E talvez tenha a ver com um movimento maior, com exaustão de um sistema que nos empurra a sempre consumir mais, a ter mais, a fazer mais. Para quê? Veja o movimento das pessoas com o consumo consciente, a moda minimalista para não se perder tempo escolhendo e consumindo roupas, a busca por alimentação saudável e orgânica. As redes ajudaram a ampliar e a acelerar nossas trocas de informação. Mas saber tudo, acompanhar tudo, gera uma ansiedade sem tamanho e uma enorme perda de qualidade de vida. Estar conectado em tudo o tempo todo não tornou a vida das pessoas melhor, gerou uma enorme distração e perda de foco. Numa era em que tudo é fake, feito para “pegar bem”, há uma busca por coisas mais humanas, autênticas e confiáveis. Queremos viver experiências, explorar nossos sentidos e emoções, e isso não ocorre em relações superficiais, moldadas para atender às expectativas dos outros. As pessoas estão procurando conexões que possam ser vulneráveis, que possam confiar uma nas outras, em vez de uma infinidade de conexões de uma vida fake das redes sociais. Diria que quem não tem celular e rede social é um antissocial no sentido do termo “sociedade digital”. Claro que isso é possível, mas é preciso autenticidade para sustentar um lugar assim na sociedade. E, com certeza, devem saber fazer com seu carisma e empatia. Saber estabelecer relações que extrapolam o padrão superficial de contato. Profissionalmente, é possível se há um trabalho estabelecido, um público que já lhe reconhece. Contudo, é preciso estar atento, senão vai perder boas oportunidades profissionais. Insisto em que o importante é sempre pensar o como e por que estar on-line.
 
CONTRASSENSO À LIBERDADE

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
Maria Clara Jost afirma que não se trata de demonizar os avanços da Era Digital, mas de denunciar os excessos que têm causado doenças e sofrimento psíquicos (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)


No mundo atual, estar fora das redes sociais parece um sacrilégio. Para Maria Clara Jost, pós-doutora em psicologia clínica, docente da pós-graduação lato sensu da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) e psicóloga da Tip-Clínica, isso é um grande contrassenso numa sociedade que privilegia tanto a liberdade. De fato, vivemos sob o comando de um novo imperativo: “é preciso se conectar”. E conectar-se em rede, com a finalidade de expor sua vida, seus sucessos, suas viagens, suas festas, seus amores. “Sim, é preciso que o processo de venda de si mesmo siga os mesmos padrões da propaganda feita para o consumo: tudo deve ser artificialmente perfeito e limpo, sem dor e sem conflitos, sem angústia e sem sentido, vazio e asséptico. Também é importante que as “postagens” sejam sempre no plural. Com efeito, nessa nova organização sociocultural, a questão não passa mais por ‘querer ter um milhão de amigos’, porém, ‘ter que ter’ um milhão de amigos, curtidas, comentários e seguidores para ‘aparecer’ – no sentido aqui de ‘parecer ser’ amado, procurado, reconhecido.”

O assustador, como joga luz a psicóloga, é que nesse contexto é preciso que os ‘amigos’ sejam virtuais: conectar-se, mas jamais se contatar, para garantir que não haverá percepção visível de emoção real. “O máximo que se admite são emojis para substituir o sentir legítimo, porque, afinal, ainda somos gente. Na realidade, como reflete o sociólogo Zygmunt Bauman, agora, o assunto em pauta não se refere mais ao estabelecimento de relacionamentos. Outrossim, a demanda é de ‘redes de conexões’ que assegurem a autorização social para que se possa entrar e sair de uma outra vida com o simples apertar de um ‘enter’ e depois de um ‘delete’, sem delongas, sem sofrimento.” Em contrapartida, diz Maria Clara Jost, somos vigiados todo o tempo. “A velha ‘fofoca’ de tempos outrora tomou proporções gigantescas.”

Não obstante, a psicóloga diz que existem justificativas que endossam as delícias e as liberdades “vigiadas” desse “maravilhoso mundo novo”. “Afinal, ninguém obriga você a participar de uma rede social, a ter celular, tablet, notebook ou similares. Porém, não os ter não seria se colocar à margem ou excluído do próprio mundo, quando este é virtualizado? Ser estranho, esquisito, pária da sociedade talvez sejam algumas das qualificações para seres que ousam se comportar assim.” Por outro lado, Maria Clara Jost enfatiza que o ser humano tem buscas e exigências que lhe são basilares. “Necessidades afetivas, como a percepção do afeto, o reconhecimento de si mesmo e de seus valores, a percepção de si como alguém único e como alguém que faz a diferença, que afeta e é afetado. Segundo Luigi Giussani, teólogo e pedagogo, para que a pessoa possa ter uma existência equilibrada e saudável, precisa encontrar respostas a exigências primordiais, como a exigência da verdade, da justiça e da liberdade.”

CANSADAS Para a psicóloga, de fato, na busca de quantidade, profusão de imagens e informações, excesso de exposição e estimulação, em um ritmo frenético de sensações, emoções e adrenalina, as pessoas ficam cansadas, exauridas, esvaziadas de autenticidade, de verdade e de unicidade. “Forjam-se sentimentos de ansiedade, angústia, tristeza e depressão. Por certo, engendrou-se uma nova solidão: vivemos relacionamentos fakes, vivemos sentimentos fakes, artificiais e mecânicos. Como confiar? Como se vincular? Como acreditar? Vivemos o vazio de sentir, em um mundo que enaltece o sentir. Sente-se tudo para não se sentir nada. Grande contradição dos tempos modernos. Suicídio emocional. Suicídio do sentido. Suicídio do sentir.”

Pelo relatório da World Global Style Network (WGSN), empresa de previsão de tendências de Londres, que acena pela possibilidade do suicídio virtual nos próximos cinco anos, Maria Clara Jost acredita que, quem sabe, a sociedade esteja sinalizando uma nova era, “à semelhança, talvez, do ocorrido quando do movimento hippie, na década de 1960, onde alguns, ainda poucos, corajosos estão reclamando o direito de se ‘desconectar’. ‘Paz e amor’, esse era o lema de então. ‘Paz e amor’, talvez seja esse também o mote de agora.” Ela pensa que o desejo nascente ou resgatado de estar junto com o outro ocorra pela necessidade do contato direto, sem intermediários. “Os ‘estranhos seres digitais’ querem o olho no olho, ver e sentir emoções. Querem integrar-se, envolver-se, vincular-se, tocar e ser tocados. Querem lutar pelo direito de existir. Não querem ser meramente dígitos em máquinas cada vez mais inteligentes das redes digitais. Querem, ‘os revolucionários digitais’, fazer contato com o outro e com o mundo, para retomar o contato consigo mesmo.”

No que percebeu dos revolucionários digitais, Maria Clara Jost acredita que eles denunciam que é preciso fazer frente a essa nova forma de dominação que se infiltrou no ambiente humano e destrói o bem que temos de mais precioso: a capacidade de criar um mundo propriamente humano. “Um mundo feito de gente e por gente. Reclamam a autonomia e a liberdade de serem simplesmente o que são. Querem engajamento, continuidade e memória. Não memória em bits, mas aquela memória que se guarda no coração, a que revela a nossa capacidade de construir relações de pessoa para pessoa.” Mas será que essa contracorrente terá força para resistir à pressão dessa onda digital que promete se agigantar? “Provavelmente, terão que conviver com o que está aí, já posto. Suicídio virtual? Talvez seja uma boa contraposição ao suicídio dos afetos e da destruição de si mesmo que uma solidão virtual pode acarretar.”

"JÁ FOMOS CAPTURADOS"

“A saída consciente das redes sociais diminui a interação naqueles ambientes e reduz a exposição dessa ‘vida perfeita midiatizada’, mas não impede a invasão de privacidade e a captura de dados. É uma forma de frear a exposição, mas não necessariamente limita a vigilância, pois, se considerarmos os algoritmos, que monitoram nossos usos de toda a tecnologia, eles têm informações sobre nós que vão muito além do que postamos. Há ainda o fato de que os dispositivos capturam informações sobre nossa localização, nossa voz e imagem sem que estejamos em uso desses recursos, justamente para alimentar os algoritmos”, alerta Pablo Moreno Fernandes Viana, professor de comunicação da PUC-Minas.

Ana Luisa Santos/Divulgação
Pablo Moreno Fernandes Viana, professor de comunicação da PUC-Minas, diz que falar sobre falta de contato emocional é cruel (foto: Ana Luisa Santos/Divulgação)
Para o professor, as redes potencializaram o hedonismo característico da pós-modernidade e a sensação de as pessoas quererem ser especiais e únicas e o desejo de estar sempre informadas. Por outro lado, ele acredita que é possível viver off-line, no que diz respeito no acesso às redes e sem carregar dispositivos conectados à rede. “No entanto, creio que seja impossível viver sem acesso ao e-mail, que se tornou uma ferramenta corporativa e pessoal de troca de correspondência, assim como de outros serviços, que hoje são feitos com mais agilidade no ambiente digital: bancários e públicos, entre outros. O processo de transição de uma vida hiperconectada para uma vida mais off-line exige tempo e processo de desintoxicação. Creio que seja possível, para quem deseja.”

Pablo Viana afirma que a lógica da vigilância é um fenômeno do mundo contemporâneo. “Ainda que isso represente uma violação de privacidade, também produz uma maior ideia de segurança. Então, há esse contraponto quando se pensa em questões como o excesso de vigilância, tão discutido. A onipresença de câmeras de segurança, dispositivos de filmagens e aplicativos de localização representa uma violação em nossa privacidade, mas há de se pensar em como – em alguns casos – essa exposição contribui.” O professor lembra que, no recente caso do estrangulamento de Pedro Gonzaga pelo segurança de uma rede de hipermercados, as imagens das câmeras de segurança contradisseram a versão dada pelo homem que o matou; o mesmo pode se dizer de casos de abusos policiais da polícia do Rio de Janeiro, em que filmagens nos celulares de pessoas mortas contradisseram a versão da PM de que se tratava de bandidos ou de que essas pessoas estavam armadas, sendo provas cabais nos julgamentos. O mesmo se percebe nos recorrentes relatos de violência contra mulheres em aplicativos de mobilidade: o compartilhamento da localização permitiu que se encontrassem essas pessoas, impedindo que o pior ocorresse.

RASTROS Sobre a ideia de ausência de controle da vida, Pablo Viana diz que “me preocupam mais as informações coletadas sem nossa autorização (rastros de navegação, trechos de conversas privadas e registros de câmera) do que os dados e informações que cedemos conscientemente.”

Para Pablo Viana, as pessoas que conseguem viver plenamente nesse contexto foram capazes de racionalizar e internalizar a mudança nos regimes de visibilidade e aceitam que é um fenômeno contemporâneo contra o qual não se pode fazer muita coisa. “Em muitos casos, pensar sobre a invasão de privacidade (autorizada por nosso clique, geralmente sem a leitura das políticas de uso de redes sociais e dispositivos tecnológicos) e sobre essa superexposição da atualidade cria ansiedades. Essa ansiedade que faz com que nos tornemos paranoicos acerca de uma privacidade que, se formos observar bem, não existe em tempos pós-modernos. Não creio que a opção por um binarismo ‘certo e errado’ resolva. A vida tornada pública já é uma realidade, quer as pessoas queiram ou não. Mais do que isso, é válido que cada um racionalize nos limites da publicidade de sua privacidade e faça somente aquilo que ache prudente, respeitando seu espaço e o das pessoas que convivem consigo, naturalmente.”

O professor destaca que o individualismo não é fenômeno novo. Da transição da modernidade para a pós-modernidade, o que se observa é uma tendência de uma vida orientada para o presente, o que demanda uma felicidade instantânea, sem direcionar o pensamento para o futuro. “Nas grandes metrópoles, esse individualismo é uma realidade há muito tempo. Se antes as pessoas ficavam sozinhas em cafés e restaurantes lendo livros ou jornais, hoje estão se comunicado por meio de seus dispositivos móveis. Se antes interagiam ‘olho no olho’ numa mesa de bar, esse espaço hoje é ampliado e compartilhado entre as pessoas que estão naquela mesa e aqueles que acompanham aquele acontecimento por stories ou por fotos. Afirmar que a tecnologia criou novas solidões é radical e injusto, porque elas promoveram novas sociabilidades e encontros de grupos que não tinham facilidade de estabelecer relações afetivas, como de pessoas tímidas, por exemplo. Sendo assim, falar sobre falta de contato emocional é cruel, pois coloca que essas pessoas não vivem uma vida real.”

Na análise do professor, antes, as formas de sociabilidade que forçavam um convívio frente a frente fizeram com que muitas pessoas oprimidas, por exemplo, fossem vítimas de bullying ou excluídas de grupos. “Isso se pode afirmar, por exemplo, de pessoas negras, LGBT e cujos corpos não atendem ao padrão vigente. Os grupos em redes sociais, blogs, páginas de empoderamento nas redes e em outros lugares reúnem essas pessoas num novo espaço de sociabilidade. Muitas dessas pessoas encontraram nas redes pessoas como elas e, a partir daí, criaram grupos de amizade que, ainda que sem esse contato físico, mostraram que há lugar para afeto para esses corpos. A radicalidade na exclusão das redes é uma opção para quem se sente mais confortável assim, mas – sempre é importante reafirmar – cada um é responsável pelas decisões que toma.”