Museu da Pessoa eterniza histórias de vida

Fundado há 28 anos, museu nasceu com a missão de permitir que cada indivíduo tenha o direito e a oportunidade de ver sua história eternizada e reconhecida como fonte de conhecimento

por Lilian Monteiro 18/02/2019 10:42
Arte/EM
(foto: Arte/EM)
“As memórias de mim mesmo me ajudaram a entender as tramas das quais fiz parte.” A declaração de Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997), educador, pedagogo e filósofo nascido no Recife, faz parte do Museu da Pessoa, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) sem fins lucrativos, criada em 1991 pela historiadora Karen Worcman. Já imaginou fazer parte de um museu? Isso mesmo. Ser parte do acervo e “objeto” de estudo e admiração? Se, antes, o concebíamos como espaço para exibir coleções de interesse artístico, cultural, científico e histórico, agora, em sua concepção virtual, Karen nos apresenta um acervo de histórias de vida, com depoimentos reais de qualquer pessoa que queria compartilhar suas vivências. Registradas, ao serem lidas e ouvidas, deixam marcas, transmitem conhecimento e perpetuam um legado de narrativas que podem causar identificação, reconhecimento, aprendizado e emoção.

O Museu da Pessoa contabiliza acervo de 20,9 mil histórias de vida e 62 mil fotos e documentos e já tem frutos em Portugal, EUA e Canadá. Mas, por que criar um museu de pessoas? “Por que tantos museus e nenhum da pessoa? O Museu da Pessoa nasceu exatamente dessa percepção de que havia museus sobre tudo e nenhum que valorizasse o que de mais valioso temos: nossa própria história. Um museu aberto à participação de toda pessoa, que tem como premissa a ideia de que cada história importa e é uma fonte de aprendizado sobre o outro e sobre nós próprios. Se museus são o espaço em que nos dedicamos a refletir sobre o que valorizamos e sobre o que importa, a história das pessoas deveria ser naturalmente vista como peça valiosíssima de museus”, explica Karen Worcman.

A ideia de Karen é estimulante, nos faz querer ouvir e até pensar na nossa própria história. E o que instiga é que ela não imaginou o museu coletando só histórias especiais e de intelectuais. Democrático, nele todos têm espaço. “O que sempre busquei foi a multiplicidade potencial de perspectivas sobre a experiência humana, sobre o Brasil e sobre a sociedade. A diversidade era muito mais importante do que o recorte que poderia dar às histórias.” Singular em meio a um mundo de “celebridades”, o museu cativa porque não contempla só personalidades. Ainda que por lá tenha depoimentos do medalhista olímpico da natação Gustavo Borges, do dono da Livraria Cultura, Pedro Herz, dos cantores Lô Borges, Beto Guedes e Toninho Horta, assim como seu Germano Araújo, nascido em 1875, entrevistado em 1996, no alto de seus 121 anos e com 68 filhos, e o cantador repentista Sebastião Marinho. “O museu propõe exatamente o oposto. Aprender a ouvir é despir-se do espetáculo. É valorizar o simples. O Facebook e a sociedade do espetáculo nos levam à celebridade, ao instantâneo, à pura imagem. Sobretudo, o simples ensina. Nele reside a sabedoria de ouvir e olhar o mundo. É isso que precisamos aprender agora.”

Nos mais de 20 mil registros, certamente, há aqueles que mais marcaram Karen. “Existem histórias, ou melhor, jeitos que as pessoas vivenciaram suas próprias histórias que me tocaram particularmente. Acho que isso ocorre com todo mundo. Algumas trajetórias ou olhares nos “dizem” algo que estamos prontos para ouvir e aprender. Destaco algumas: Krystyna Drozdowicz, uma sobrevivente da Segunda Guerra e guerrilheira; Idaliana, que criou o mocambo Pauxi, no interior da Amazônia. Professora de adulto, quase freira, vivia numa cabana em um quilombo quando a entrevistei. Maria de Lourdes, uma empreendedora e comerciante do interior da Amazônia, Ailton Krenak, uma liderança indígena; Joselita Cardoso, catadora de papel; Pedro Cezar, cineasta; e jovens vítimas de exploração sexual, com nomes fictícios de Dalva e Carina.”

Karen Worcman conta que o Museu da Pessoa tem um analytics que indica as histórias mais visitadas. As mais buscadas são as de superação, “aquelas que atendem a uma necessidade de inspiração por parte de quem busca. Creio que existem pessoas com muita curiosidade sobre a vida e sobre como cada um vive a sua. Em geral, essas pessoas têm uma tendência natural em querer ouvir o outro.”

ESCUTA

Em um mundo de tecnologia, inteligência artificial, robôs, redes sociais, enfim, em que a boa e velha conversa tem ficado de lado (ainda que transfigurada para a linguagem frenética via teclas!), é emocionante e reconfortante saber que há pessoas que buscam, querem e precisam ouvir as outras, mesmo aquelas que não conhecem. “Talvez, ouvir com atenção seja ainda umas das poucas atividades que nos levam de volta para dentro de nós mesmos. Ainda que seja uma escuta, é uma escuta silenciosa, nos faz parar e ter que nos conectar com outro ser humano. Acho que isso será cada vez mais necessário para que continuemos a ser “pessoas”. A possibilidade de se separar de si próprio é enorme e as tecnologias atuais são grandes impulsionadoras desse nosso medo de vazio e consequente preenchimento do tempo e do vazio com os ruídos. Isso os afasta de nossa própria humanidade. Creio que a educação deverá privilegiar cada vez mais o silêncio, a reflexão. E menos o treino e a informação e mais a capacidade de escuta. Algo que as comunidades tradicionais cultivavam sabiamente”, acredita Karen Worcman.

Com tantas histórias, será possível dizer o que o ser humano tem de mais espetacular para deixar registrado? Para Karen, é a experiência sentida, vivida, pensada e narrada. “Isso é belo e profundamente humano, não necessariamente espetacular. É simples. E por isso mesmo é o que conecta. Uma capacidade que, a princípio, todos têm. E nisso nos igualamos na pura beleza de ser pessoas.” Ela concorda que a Era Digital já dá mostras de adoecimento, com tanto isolamento e individualismo. “Quando o museu começou, acreditava que dar a possibilidade de toda e qualquer pessoa ter sua voz como parte da narrativa social seria suficiente. As tecnologias mostraram que não basta falar. É fundamental aprender a ouvir. Isso é cada vez mais importante para que cada pessoa possa garantir sua capacidade de escolha, criatividade e escuta.” Para a fundadora, o Museu da Pessoa deixa como legado “uma história com muitas vozes, versões e perspectivas. Uma história mais democrática e que mostra as riquezas das culturas brasileiras. Espero, sinceramente, que esse legado contribua para que o Brasil se torne um país mais justo e que fortaleça o que tem de melhor: as pessoas.”

Qual a sua história?
Vivência pode mudar seu jeito de ver o mundo. Com mais de 20 mil depoimentos, iniciativa leva a todos a oportunidade de compreender melhor a sociedade e o modo como vive

Não há como mensurar a riqueza de quem se propõe a transformar histórias de vida de toda e qualquer pessoa em fonte de conhecimento, compreensão e conexão entre pessoas e povos. É nisso que o Museu da Pessoa acredita. E como deixa bem claro: “Ouvir o outro muda o seu jeito de ver o mundo”. E ele se torna ainda melhor ao oferecer um programa educativo que ajuda pessoas, comunidades e organizações a serem produtores, guardiões e disseminadores de narrativas de vida. O programa oferece roteiros e métodos para professores usarem histórias de vida em sala de aula, montar suas próprias coleções de histórias ou lançar mão do acervo virtual do museu para produzir materiais pedagógicos. Abaixo, destacamos alguns trechos de depoimentos que vão fazer com que se queira mergulhar em mais histórias. E, quem sabe, contar a sua...

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Museu da Pessoa/Divulgação
(foto: Museu da Pessoa/Divulgação)

"Trazia a imagem da São Paulo toda iluminada, banhada a ouro, aquela maravilha. Tudo limpo. Tudo encantador. O chão, para mim, devia ser um tapete. Saltei, era abril de 1976, na estação Júlio Prestes e vi tudo ao contrário: o que mais tinha era cachorro vira-lata e mendigo, aqueles prédios sujos, a fuligem louca. Mas bebi da água e continuo aqui, são mais de 30 anos" - Sebastião Marinho, cantador repentista profissional desde 1968
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Fundação Darcy Ribeiro/Reprodução
(foto: Fundação Darcy Ribeiro/Reprodução)

"Eu tinha, na verdade, um enorme gosto pelo estudo. Mas chegou, pra vocês terem uma ideia, eu entrei, fiz um exame chamado de admissão, e entrei no primeiro ano com 16 anos de idade. Quer dizer, exatamente quando colegas meus, de geração, estavam entrando na universidade. Ou na faculdade, naquela época. Quer dizer, fui um estudante que começou atrasado. Minha escolaridade foi uma escolaridade tardia. E você poderia então perguntar: “E você perdeu, então, muito tempo?”. Não, não perdi. Acho que você não vive perdendo tempo à toa. Não estava me escolarizando na escola, estava educando-me no mundo”
- Paulo Freire, educador
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Beto Novaes/EM/D.A Press
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

"Comecei no tênis muito cedo, o meu pai era fanático pelo esporte, por tudo em geral. O principal esporte dele era o basquete, mas ele se apaixonou pelo tênis já com uma certa idade, em torno dos 40 anos. Ele é o grande motivo de ter me tornado um jogador. Não existiria uma outra forma porque, no início da minha carreira, 82, 83, para dizer, não carreira, mas na minha história de fase bebê dentro da quadra de tênis, com cinco, seis anos. O meu pai ficou um apaixonado pelo tênis, nos incentivou a jogar o tempo inteiro e não tinha muito nexo essa situação. O meu primeiro jogo, obviamente, perdi, tinha seis anos. Joguei com um menino que tinha sete, oito anos. O pai vibrando ali, o outro pai do menino do outro lado” - Gustavo Kuerten, ex-tenista e tricampeão do Grand Slan de Roland Garros, em Paris, França
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Saberes Plurais/UFMG/Divulgação
(foto: Saberes Plurais/UFMG/Divulgação)

"Tinha muita vontade de brincar com boneca. Pegava sabugo de milho, enrolava um pedacinho, retalhinho de pano na cintura, e falava que era boneca: boneca deve ser assim. Depois via minha mãe mexendo, fazendo o barro, puxando o barro para fazer aquelas vasilhas. Aí eu falava assim: vou fazer uma bonequinha de barro para brincar. E com minha imaginação, fui fazendo experiência” - Izabel Mendes da Cunha, artesã mineira internacionalmente reconhecida como a famosa bonequeira do Vale do Jequitinhonha
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“Na Copa de 1950, quando o São Paulo tinha sede no Canindé, a Seleção do Uruguai ficou concentrada lá. E eles foram campeões. Depois de uns dias, mandaram um álbum e passagem para eu e meu marido irmos para o Uruguai, porque eles comeram na minha casa” - Catharina Pugliese Serroni, cozinheira do São Paulo Futebol Clube por 43 anos. As refeições dos jogadores eram feitas na casa dos Serroni, na Rua Juruá, no Canindé

"Fazia reunião com 200 homens e não via as mulheres, me incomodava de ficar sozinha no meio de tantos homens, e me perguntava: “Por que só eu? Onde estão as mulheres rurais?” - Vanete Almeida, criadora da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe
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Flavio Charchar/Divulgação
(foto: Flavio Charchar/Divulgação)

"O Milton já tinha desenvolvido a carreira dele, tinha ganho o Festival Internacional da Canção, com Travessia. Mas sempre que ele vinha a Belo Horizonte, perguntava: ‘Cadê o Lô?’. E a minha família falava: está lá na esquina tocando violão. Um belo dia ele apareceu lá e resolvi mostrar a música que estava fazendo. E ele acabou fazendo a música comigo, o Clube da Esquina nº 1” - Lô Borges, cantor e compositor
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Museu da Pessoa/Divulgação
(foto: Museu da Pessoa/Divulgação)

"Os seres humanos, independente da sua tribo, da sua cultura, compartilham uma memória, um grande rio onde águas de vários lugares, a água da chuva, a água dos igarapés, a água das nascentes, a água dele mesmo, dos lagos vai se integrando, vai rolando, vai fazendo fluxo. Esse grande rio é a experiência que a humanidade viveu até hoje. Esse rio de memória é tão poderoso que é o que permite que a gente se entenda nesse instante” - Ailton Alves Lacerda Krenak, ambientalista e importante liderança indígena no país, nasceu em 1953 e cresceu às margens do Rio Doce .
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Como criar uma narrativa


» Uma boa história é bem diferente de um bom relatório. História bem contada tem clima, tensão, ritmo, revelações. Tente não contar o fato de um jeito linear, previsível e sem emoção.

» Antes de contar a história, confirme se ela tem começo, meio e fim. Geralmente, o começo introduz o assunto; o meio desenvolve a história; e o final apresenta alguma conclusão.

» Perguntas descritivas e de movimento ajudam a contar uma história, por exemplo: Como era tal lugar? O que você fez depois que saiu de casa?

» Não esqueça de incluir tags (palavras-chave) relacionadas ao relato. (Ex: cartas, infância, namoro a distância, telegramas etc.).

» Você poderá adicionar fotos relacionadas à sua história e/ou vídeo. Fotos deverão ter no máximo 1MB e sua publicação é de responsabilidade do autor. Já o vídeo deverá ser inserido por meio de link do YouTube. Para isso, é necessário que seja feito um upload do vídeo no site www.youtube.com.

» Para enviar histórias você precisa estar cadastrado e logado no portal. Link: https://www.museudapessoa.net/pt/intro-conte-sua-historia

As regras


Toda pessoa pode gravar sua história. Qualquer um pode enviar a sua história ou a de quem quiser registrar e colocá-la no portal do Museu da Pessoa. É gratuito e a pessoa se torna um colaborador:

» Precisa ser uma história, não um comentário, uma notícia

» Não pode prejudicar outros e nem ter cunhos racistas, homofóbicos e preconceituosos (mas a pessoa pode ser racista, homofóbica e contar sua história também)

» Tem que estar disposto a ceder a história para torná-la acessível ao público pelo museu (cessão de direitos autorais)

» A curadoria é feita por nós: verificamos se é, de fato, uma história da pessoa ou de algum personagem; olhamos se há uma qualidade mínima no relato, conectamos as histórias e criamos coleções temáticas

Contar sobre sua vida é se colocar no mundo
Todos têm um passado que compõe a sua história. Narrar fatos, evocar lembranças e compartilhar memórias é uma maneira de resgatar a si próprio e registrar sua vivência para todas as gerações

Saber ouvir é se sentir acalentado pela comunhão com o outro. Quando nos deparamos com o propósito do Museu da Pessoa, que é permitir que cada pessoa tenha o direito e a oportunidade de ter sua história de vida eternizada e reconhecida como fonte de conhecimento e compreensão pela sociedade, é como se nos perdêssemos no meio do melhor abraço. Para Renata Feldman, psicóloga e psicoterapeuta humanista com foco nas relações afetivas, “saber ouvir é acessar o outro por inteiro - não só o que ele fala, mas como fala - seus gestos, seu olhar, sua emoção e comunicação não verbal, tudo isso diz algo e merece ser ouvido, ‘lido’, ‘capturado’ e percebido com atenção. Saber ouvir é ir além do fisiológico, do sensorial, do auditivo, é alcançar uma experiência de profunda receptividade, entendimento e compreensão do que está sendo dito. O bom ouvinte tem uma disponibilidade interna e um interesse genuíno em escutar o outro”.

Cris Albuquerque/Divulgação
Para a psicóloga e psicoterapeuta humanista Renata Feldman, escutar é uma habilidade que repercute positivamente na interação com o outro e fortalece as relações (foto: Cris Albuquerque/Divulgação)
Renata Feldman explica que a importância de saber ouvir reside em produzir boa qualidade na comunicação e, por conseguinte, nas relações interpessoais e afetivas. “Escutar é uma habilidade que repercute positivamente na interação com o outro, validando e fortalecendo as relações. Quando não há uma escuta genuína, é comum que ocorram falhas de comunicação, interpretações equivocadas e distanciamentos. A pessoa se sente, muitas vezes, incompreendida, e o que é pior, sem importância para o seu interlocutor.”

A psicóloga ensina que, ao falar, o sujeito também se escuta, organiza os pensamentos, conecta-se com as suas emoções, exercita sua expressão e posicionamento diante do mundo. “Ao ouvir, ele realiza um exercício de empatia, de interação plena e genuína que ocorre quando duas pessoas ou mais se encontram. Falar cura, e essa cura é confirmada diariamente pelos profissionais de ajuda, que, necessariamente, têm como ferramenta de trabalho a sua escuta. Saber ouvir é construir pontes em vez de abismos. Aproximação, cumplicidade e o fortalecimento de vínculos são alguns dos bons efeitos gerados por essa habilidade.”

A identidade das pessoas está ligada à conservação da história e da memória. Daí a importância de o ser humano não deixar de contar suas histórias, seja homem comum seja intelectual. “Independentemente do repertório ou nível sócio intelectual, todo mundo tem uma vida para viver e um passado já vivido que compõe a sua história. Narrar fatos, evocar lembranças e compartilhar memórias é uma maneira saudável de ser e se colocar no mundo. Ao falar, o sujeito se reconhece, se encontra, se identifica ao fazer um resgate de si e da sua própria história.”

NARCISISMO E ILHA

Em um mundo individualista, de só belas histórias postadas nas redes sociais, é difícil chamar a atenção e jogar holofote sobre a importância de conhecer a verdadeira história do outro. Renata Feldman lembra bem que vivemos em uma era narcisista, individualista e hedonista. “Todos esses ‘istas’ contextualizam, nessa nossa sociedade pós-moderna, uma ânsia pela fala e uma escassez de escuta. Dispor de tempo e atenção para ouvir o outro, de forma inteira e acolhedora, acaba sendo uma preciosidade nos dias de hoje. Há um movimento de egotismo de se colocar no mundo e ser o centro das atenções, o que acaba por intensificar a necessidade de falar, em detrimento do ouvir. Em tempos de redes sociais, cada um tem seu ‘megafone particular’. Páginas, endereços, espaços próprios e delimitados para se expor por meio de ideias, pensamentos, desabafos e críticas. O Facebook parece ter se tornado um grande divã - basta entrar que ele pergunta ao usuário ‘o que ele está pensando ou sentindo’. E o que se percebe é que há realmente uma necessidade de falar, se expressar, se conectar com o mundo. Mesmo que virtualmente.”

No entanto, completa a psicoterapeuta, muitas vezes, o virtual é insuficiente e pode gerar uma sensação de vazio ao fim do dia. “Ainda prevalece a busca pelo contato real, marcado pelo olho no olho e o alento em se fazer compreendido. Quando isso não ocorre nas relações familiares e/ou sociais, o caminho é buscar uma terapia. O que percebo na clínica é um misto de ansiedade e alívio. Ansiedade em falar, alívio em encontrar um espaço de escuta e compreensão, sem cortes ou julgamentos.”

Renata Feldman destaca que ninguém é uma ilha. “Somos feitos de conexões, nos constituímos a partir do outro, há uma alteridade que nos permeia. E há uma singularidade também. É do ser humano pensar sua subjetividade, sua existência, refletir sobre a vida e criar uma identidade que lhe pertença. Se ‘a vida é curta’, como nos lembra o clichê, que seja também registrada, lembrada, passada pra frente. O passado nos ensina, nos conduz e se transforma em memória, pondo sentido e criando raízes.”

Para o Museu da Pessoa, uma história pode mudar o jeito de cada um ver o mundo. Renata Feldman concorda. “Cada história tem sua riqueza, sua capacidade de tocar e modificar as pessoas. As narrativas podem causar identificação, reconhecimento, emoção. Ao serem lidas e ouvidas, deixam marcas, transmitem conhecimento e deixam um legado. Todas as partes envolvidas em uma história - protagonista, contador e ouvinte - têm um papel muito importante nesse processo.”

Ouvir é civilizador

Narrativas de vida registram a identidade das pessoas. Era Digital, inteligência artificial, robôs, redes sociais, individualismo e solidão estão cada vez maiores e presentes no dia a dia do homem. Nesse cenário, pensar em um museu on-line, em que qualquer pessoa pode registrar sua história, é uma forma de resgatar a escuta ao outro. “A civilização evolui e se fundamenta nas práticas que foram determinantes na melhora das condições de vida dos indivíduos em seus grupos e respectivas gerações. Portanto, saber e conhecer o que se passou com as gerações antecedentes são imprescindíveis para as gerações vindouras. O problema é como se faz essa transmissão de conhecimentos e em quais valores estão fundamentados. Ressalto a importância da ideologia no processo transmissor desses valores, o que pode dificultar a compreensão das realidades e comprometer gerações futuras, quando transmitidos sem o devido esclarecimento, necessário aos processos do conhecimento”, destaca Juracy Amaral, doutor em sociologia e professor da PUC-Minas.

Arquivo Pessoal
"A reunião entre familiares e pessoas de grupamentos de convívio faz produzir discursos e narrativas que emolduram comportamentos futuros" - Juracy Amaral, doutor em sociologia e professor da PUC-Minas (foto: Arquivo Pessoal )
A verdade é que histórias, ainda que comuns, prosaicas até, são importantes, se pensarmos na memória social. “As conversas cotidianas têm papel importante nesse processo de evolução. São nelas que se situam os detalhes formadores da consciência coletiva, que determinam valores estéticos, éticos e morais, fundamentais para a vida social. A reunião entre familiares e pessoas de grupamentos de convívio faz produzir discursos e narrativas que emolduram comportamentos futuros”, enfatiza o sociólogo.

Por outro lado, Juracy Amaral afirma que a evolução é um processo contínuo e reflete em tudo, seja referente aos aspetos biológicos seja aos aspectos comportamentais em geral. As tecnologias, consequências dessa evolução, alteram as formas de interação humana entre os próprios humanos e em relação à natureza, que exigem adaptações e, portanto, outras práticas sociais e comportamentais. “Nesse sentido, o emprego de tecnologias nos processos comunicacionais alterou as formas e o sentimento até então existentes nas relações e podem ter contribuído para aproximar pessoas separadas por longas distâncias e espaços de tempo. Porém, refletem indivíduos autocentrados, propícios ao egoísmo e, sobretudo, capazes de se incomodar com o sofrimento dos que se encontram distantes, mas ignorar o sofrimento dos que lhes são próximos.”

Juracy Amaral não acredita que a tecnologia seja a causa do isolamento, mas concorda que ela abre espaço para manifestações de isolamento, devido aos inúmeros problemas relacionados às ameaças do bem-estar individual, como segurança, conflitos e conforto. “As tecnologias da informação possibilitaram manifestações de indivíduos que não seriam capazes de se expressar numa relação interpessoal explícita, face a face, sem intermédio das redes comunicacionais. Covardes se encorajam e fazem ameaças que jamais seriam capazes de fazer na presença dos que sofrem ameaças. É importante ressaltar que as tecnologias são facilitadoras de inúmeros comportamentos, seja para o bem ou para o mal, e que a condição de cada indivíduo, associada aos recursos tecnológicos, produz realidades comportamentais. O saber ouvir é resultado do processo civilizador, que não é necessariamente consequência da tecnologia, mas da evolução do saber pensar e se adaptar para permanecer existindo.”

DOM DO DIÁLOGO

O escritor moçambicano Mia Couto já declarou que o hábito de escutar histórias ao longo da vida teve papel central no desenvolvimento da sua escrita. Ele diz que “essa África onde vivo é uma sociedade que escuta. As pessoas escutam os outros e, na conversa, há uma distribuição de tempos: o tempo da fala e o tempo da escuta, como se, por turnos, as pessoas soubessem o que têm de fazer”. Conversar, trocar ideias, ouvir, escutar. Talvez seja o que o mundo moderno esteja perdendo. Daí a justificativa para tantos ruídos e estranhamentos. “Pelo exemplo do autor moçambicano, é possível deduzir inúmeras questões. Mas penso que, recentemente, essas questões estão sendo discutidas e colocadas como importantes para o bem viver. Apesar da aparência de falta de diálogo, esse monólogo de cada um consigo mesmo, quando possível, pode ser uma pista para o encontro do outro e repensar os valores e ações que permeiam esse provável mal-estar e manifestar nossa peculiaridade de sermos gregários e possuidores do dom, essa capacidade de doar, imprescindível à vida em sociedade.”