Coração de mãe: Perigo Louro

"Motivos para comemorar e relembrar em 2019: 100 anos de nascimento, 40 de morte, 56 de Troféu Guará, 80 da cabeçada fatal que tirou o ídolo dos gramados"

por Déa Januzzi 04/02/2019 13:01
Ilustração/EM/Son Salvador
(foto: Ilustração/EM/Son Salvador)

Um homem de hábitos simples, com a mania de fechar portas e janelas duas, três vezes. De conferir chaves e trancas.

Um homem que só andava a pé ou de ônibus. Nunca teve carro. Nunca aceitou carona. Nem dos genros. Preferia caminhar, como se quisesse conferir a sua popularidade. Apertava a mão de um, acenava para um conhecido, abraçava um amigo. Conversava com todos, sem discriminação ou preconceito.

Um homem singular, que ouvia os jogos do Clube Atlético Mineiro no mais profundo silêncio. Não se manifestava, mesmo se o time de sua devoção estivesse ganhando ou perdendo. Não gritava gol. Nem xingava. Mas o rádio em cima da geladeira denunciava uma paixão antiga pelo Atlético. Não perdia uma partida. Identificava-se com alguns jogadores em especial. Mas era comedido nas palavras e nos elogios.

Preferia a voz dos locutores de rádio, o meio de comunicação de massa que o consagrou. Na televisão, só a imagem do jogo, do gramado, das redes tremendo na hora do gol. O rádio era a testemunha de seus dias de glória.

Nunca acumulou fortuna. Recusou até um terreno no Bairro de Lourdes, que o Atlético pagara de luvas. Filho do italiano Miguel Januzzi e da espanhola Rosa Otero Januzzi, que andava sempre de coque e de xale, Guaracy Januzzi veio de Ubá, na Zona da Mata, ainda menino, para jogar no Clube Atlético Mineiro. Seu apelido em família era Guara, sem acento, mas assim que chegou a Belo Horizonte, a imprensa mineira, ainda vítima de muitos erros gráficos, acentuou sem querer o nome daquele que seria um dos quatro maiores artilheiros do Atlético de todos os tempos: Guará.

Nasci muitos anos depois daquele trágico 4 de junho de 1939, quando Atlético e Palestra Itália - hoje Cruzeiro - se enfrentavam pela segunda rodada do campeonato da cidade. Um dia que marcaria o fim de uma carreira brilhante, o dia em que a estrela do centroavante Guará se apagou - e ele teve que se afastar, definitivamente, dos campos de futebol.

Mas, antes de contar sobre a cabeçada fatal, preciso urgentemente dizer que convivi com o homem Guaracy Januzzi, meu pai, que tinha a aura dos ídolos imortais, mas que lutou muito para criar os cinco filhos - Vera, Luiz Carlos, Rosina, Déa e Kátia. Tentou de tudo depois daquele trágico acidente. Vendeu tabletes de doce de leite Virgínia, bilhetes de loteria, fez Livro de Ouro, escreveu cartas a Pelé, lançou Vida de glórias e sacrifícios, em parceria com o jornalista Antônio Tibúrcio Henriques. Relançou o mesmo livro, na década de 1960, com o nome Cabeçada fatal. Jogou na Loteria Esportiva, mas quando fazia os 13 pontos distribuía o dinheiro antes de chegar em casa. Dava um fogão de presente para um vizinho, uma dentadura para um fã, comprava brinquedos e doces para a escadinha de meninos que morava no barracão vizinho à nossa casa, no Bairro Sagrada Família.

Convivi durante 26 anos com um homem especial. Fui conhecendo o ídolo aos poucos, quando ele me levava junto nas solenidades do Troféu Guará, promovido pela Rádio Itatiaia, para premiar os melhores do futebol mineiro. Eu ouvia, orgulhosa, o discurso de Januário Carneiro, presidente da emissora (já falecido) - atualmente comandada por seu irmão, Emanuel Carneiro - falar de um menino louro que chegou ao Atlético para construir sonhos. Para dar gols e alegria aos atleticanos. Goleador, ele foi responsável pelo grito da torcida “Guará Guará Guaraaaaaaaaaaá”, hoje substituído por Galooooooooô!

Do signo de Capricórnio, o menino louro, de olhos verdes, era “os próprios gols do Atlético”. O apelido Perigo Louro surgiu daquele jovem franzino, cujos passes e dribles mágicos iam invariavelmente parar nas redes. Ele fez 168 gols pelo Clube Atlético Mineiro, marca até hoje só superada por Reinaldo, Dario e Mário de Castro.

Mas a “fama teve inveja de Guará”, escreve Ary Barroso, conterrâneo do ídolo, no prefácio do livro Cabeçada fatal. Aos 10 minutos de partida, naquele 4 de junho de 1939, o centroavante Guará e o zagueiro Caieira, do Palestra Itália, correram em direção à bola. Os dois saltaram juntos, mas não acertaram a bola. Chocaram cabeça com cabeça. O jogo parou para atendimento médico aos dois jogadores, que caíram atordoados no gramado. Caieira, mesmo tonto pelo choque, conseguiu se levantar, mas Guará foi retirado do campo inconsciente. Aos 24 anos, Guará era o jogador mais bem pago do futebol mineiro: 18 contos de luvas e 800 mil réis por mês. Havia chegado a Belo Horizonte em 23 de setembro de 1933, do Aimorés, de Ubá, com o seu irmão Jésus e o meia Nicola.

Todos pensavam que Guará tinha sofrido uma ligeira contusão sem maiores consequências. Mas não. Ele permaneceu 1h10min desmaiado no ambulatório do antigo Estádio Antônio Carlos e foi levado para o Pronto Socorro às seis da tarde. Seu pai, Miguel, chorava, mas Guará continuava desmaiado. A conselho médico, foi transferido, no dia seguinte, para o Hospital São José, onde os fãs faziam fila, rezavam. Centenas de pessoas faziam plantão na porta do hospital, à espera de um milagre. Queriam o ídolo de volta.

Vítima de traumatismo craniano, Guará nunca mais conseguiu jogar, apesar das muitas tentativas. Ele não era mais o mesmo. Tinha medo de pisar no gramado.

Mas o homem que cantava tangos de Carlos Gardel ao telefone para a sua amada, de nome Amélia, sobreviveu aos caprichos da fama. Conviveu com os percalços da vida, soube driblar as dificuldades e amarguras. Tocou a bola pra frente. O ídolo virou pai, avô, cidadão do bem, que ensinou aos filhos e netos conceitos de generosidade, solidariedade e respeito.

Dividia os seus dias como marido de Amélia, sua companheira por 46 anos, com os cinco filhos, os seis netos e o trabalho na Câmara Municipal de BH.

Conversei muito com o meu pai, cujo nome conseguia abrir portas e corações apaixonados. Eu sabia que era “filha de Guará”, um ídolo do Atlético que permanece no inconsciente da torcida até os dias de hoje, apesar de não existir televisão naquele tempo.

Guará, meu pai, partiu muito tempo depois, em 18 de novembro de 1978, deixando para os filhos, netos e a torcida atleticana uma história digna dos contos de fada. Uma herança de respeito pelos adversários, da magia do futebol-arte, de profissionalismo. Essa é a história de um “astro que parou de brilhar no velho engaste azul do firmamento, mas onde vive e viverá a saudade”, como sentenciou Ary Barroso.

PS: Pai, você vai gostar de saber que tem agora oito netos e sete bisnetos.

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente