MDMA é aplicado na recuperação de pacientes que sofrem com transtorno de estresse pós-traumático

Droga é sintetizada em laboratório e geralmente confundida com o ecstasy

por Joana Gontijo 14/11/2018 19:07
Paulo Santos/Reuters
(foto: Paulo Santos/Reuters)

O MDMA é um composto químico geralmente confundido com o ecstasy. Próximo ao que ocorre com o uso medicinal do princípio ativo da maconha, a substância já é aplicada na recuperação de pacientes que sofrem com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ideal para uso complementar ao acompanhamento terapêutico de pessoas com trauma. O potencial curativo do MDMA é conhecido desde antes de sua proibição, nos anos 1980, desvendado pelo químico norte-americano Alexander Shulgin, que, na década de 1960, testou os efeitos em si mesmo e depois apresentou as descobertas para a comunidade científica.

"MDMA é a sigla de um composto químico, uma molécula, chamada Methylenodioxymethamphetamine. É uma molécula específica e nenhuma outra. Entretanto, a denominação científica se confunde com gírias usadas em cenas de uso de drogas ilícitas, como MD, 'Michael Douglas', ou outros apelidos, como ecstasy, bala ou simplesmente 'e'. Isso é um grande problema, pois as pessoas pensam estar consumindo MDMA, mas muitas vezes não estão", explica o neurocientista Eduardo Schenberg, diretor da ONG Plantando Consciência e pioneiro no país em estudos sobre efeitos de drogas psicoativas como MDMA, ibogaína, LSD e ayahuasca no cérebro.

O MDMA é uma droga sintetizada em laboratório, transformada em cristais incolores e inodoros que, normalmente, são misturados com água e cujo efeito passa por euforia, sensação de bem-estar e alterações sensoriais, com expansão dos sentidos. Consumido no mundo inteiro, o MD ficou popular entre os jovens, principalmente em festas rave. O especialista cita pesquisa da Fapesp, em conjunto com a Polícia Federal, que revelou que menos da metade desses comprimidos ou pós/cristais encontrados no mercado ilícito contêm MDMA - em quase todas as amostras foram encontrados contaminantes, incluindo mais de 200 outras substâncias, como cafeína, cocaína, anfetamina e parametoxianfetamina, uma molécula bem mais tóxica do que o MDMA. "Esse fato faz muita diferença no que tange aos riscos do MDMA puro, fabricado com controle de qualidade, usado nos estudos com dosagem controlada, e o material ilícito de rua. A proibição aumenta os perigos", esclarece Eduardo. "Nosso objetivo é trazer o avanço dessa medicina ao Brasil", continua. No fim das contas, em se tratando de drogas em países onde são criminalizadas, o usuário nunca sabe o que está tomando.

É comum que pessoas que viveram ou presenciaram alguma situação de violência extrema desenvolvam o transtorno de estresse pós-traumático. Pacientes com o mal apresentam menor ativação cerebral nas áreas ligadas à memória e aprendizagem. Por outro lado, sobressaem os campos que ativam o medo, como a amígdala. Quando o MDMA chega ao cérebro, diminui a ação da amígdala, influenciando, assim, para a minimização de sinais, como medo e ansiedade, dando à pessoa uma sensação mais clara de autoconfiança. Estudos sobre o assunto, há pelo menos 10 anos, são empreendidos em vários países, como Estados Unidos, Canadá, Suíça e Israel, com foco, por exemplo, em veteranos de guerra e, agora, o Brasil começa a atuar também nessa frente. “O MDMA não vicia, você não vê gente em clínicas de dependentes com vício em MD. O que pode ocorrer é as pessoas abusarem do ecstasy. O uso de droga no sistema ilegal é mais perigoso do que no sistema controlado”, complementa Eduardo Schenberg.

MAIS CLAREZA

Pedro Céu/Divulgação
"Nosso objetivo é trazer o avanço dessa medicina ao Brasil" - Eduardo Schenberg, neurocientista (foto: Pedro Céu/Divulgação)
O novo método de tratamento contra o TEPT é chamado psicoterapia assistida com MDMA - como o nome indica, é uma abordagem que combina psicoterapia com o uso de um fármaco, e os resultados não se dão por um ou outro fator isoladamente (terapia ou medicação), mas sim pela combinação deles, explica o neurocientista. A terapia inclui 15 sessões com dois terapeutas simultaneamente, um homem e uma mulher, sendo uma sessão por semana, em um total de aproximadamente três meses de tratamento. Apenas três sessões incluem uso do MDMA, sempre sob supervisão constante dos terapeutas e do médico responsável pela administração do medicamento. As sessões com MDMA duram de seis a oito horas – o paciente ouve músicas instrumentais evocativas e pode interagir com os terapeutas sempre que quiser. Após as sessões, a pessoa faz pernoite na clínica e, na manhã seguinte, tem uma consulta sem uso da substância. Todas as demais consultas duram 90 minutos. Como ressalta Eduardo, o MDMA aumenta a função do córtex pré-frontal, parte ligada ao raciocínio, intelecto e pensamento. Facilita, assim, a percepção sobre processos emocionais intensos, enquanto a memória sobre os eventos é preservada.

"Durante os efeitos do MDMA, os pacientes sentem, temporariamente, menos medo e conseguem raciocinar com clareza, criando um momento propício para a psicoterapia sobre traumas muito dolorosos e dos quais os pacientes mais graves, com os quais lidamos, praticamente não conseguem falar sem o auxílio do MDMA. Portanto, a substância não cura o trauma por si só, mas permite uma interação otimizada entre terapeutas e paciente. Nesse ponto, a atuação dos terapeutas é fundamental para garantir segurança e orientar o paciente a revisitar suas memórias de forma segura e terapêutica. Os pacientes se emocionam muito, choram, refletem, confessam sentimentos, expressam raiva, rancor, mágoa", elucida.

No Brasil, as práticas médicas associadas ao MDMA ainda são incipientes – até então, o tratamento foi realizado com três pessoas, todas vítimas de abuso sexual. Segundo Eduardo, os pacientes reagiram bem à terapia, sem nenhum evento adverso grave. No exterior, já foram tratadas centenas de pessoas, em mais de 1 mil sessões com MDMA, registrando apenas um efeito negativo, uma arritmia cardíaca temporária, que não acarretou problemas de saúde ao paciente. "Os resultados são impressionantemente positivos, com cerca de 70% dos pacientes chegando no fim do tratamento curados do transtorno. É importante notar que todos tratados até agora já tinham tentado outros métodos convencionais, sem sucesso, e que os benefícios foram duradouros. Alguns pacientes continuavam livres dos sintomas do transtorno mesmo quatro anos após terminarem o procedimento", diz o médico.

EQUÍVOCOS

Toda droga, substância, remédio ou molécula têm efeitos negativos quando em sobredose. Pesquisas científicas testam esses impactos, considerando várias doses, primeiro em animais de laboratório, depois em pessoas saudáveis e, por último, em pacientes. O MDMA, por sua vez, mostra-se muito seguro quando administrado por profissionais qualificados, fabricado com controle de qualidade e usado com dosagem precisa. "É muito diferente do cenário de uso de drogas ilícitas com contaminantes, doses desconhecidas e pessoas desinformadas. Os pacientes têm algumas opções de dose que podem estabelecer junto com o médico e os terapeutas, sendo a menor opção 75mg e a maior 187,5mg", salienta.

O neurocientista traça um paralelo importante entre o tratamento de doenças psíquicas com o MDMA e o tetraidrocanabinol (composto ativo da maconha). Conforme o especialista, a ciência está mais uma vez demonstrando equívocos na classificação política das drogas, que prega que algumas substâncias só fazem mal e devem ser proibidas, enquanto outras não fazem mal algum e podem ser legalizadas. "Entretanto, álcool e cigarro são legalizados e extremamente nocivos à saúde, especialmente com consumo crônico. Enquanto isso, algumas drogas atualmente proibidas em alguns lugares têm extraordinários potenciais terapêuticos para casos graves, inclusive quando não se conhece outros tratamentos. Deixar esses pacientes sem acesso a tratamento com essas substâncias é revoltante e uma afronta ética e moral. O universo das drogas é recheado de tabus e há mais desinformação que informação, o que empobrece o debate e prejudica toda a sociedade. Estamos travando uma guerra sangrenta e cara, que não resolve nada. Pelo contrário, gera mais transtornos mentais devido ao excesso de repressão, armamento e violência", reitera.

Noel Celis/AFP
(foto: Noel Celis/AFP)

Eduardo faz questão de pontuar que nenhuma droga mata tanto quanto as armas de fogo. Levantamento da Unifesp mostra que mais de 80% da população de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro já passou por situações de violência impactante e cerca de 5% têm o transtorno de estresse pós-traumático, um índice elevado. E a guerra é causa do transtorno que o MDMA pode ajudar a curar. Para Eduardo, a proibição é a opção pelas doenças mentais, sendo a legalização uma ajuda para curá-las. "Psiquiatras precisam urgentemente refletir e entender que, quando apoiam a proibição das drogas, não estão apenas se posicionando contra a dependência química, mas estão apoiando a criação de um problema ainda maior, pois a violência da guerra causa não só traumas, mas depressão, ansiedade e pânico. Não vejo qualquer sustentação ética em médicos apoiarem uma política armamentista, que coloca caveirões nos bairros pobres onde se vê derramamento de sangue diariamente. Isso não é um mundo sem drogas, é um mundo em guerra e sofrimento psíquico intenso", diz.

Os efeitos de cada tipo de droga em cada pessoa dependem, entre outras coisas, do padrão de uso, e é importante entender que uso é diferente de abuso, por sua vez, diferente de dependência química, elucida o profissional – o consumo esporádico de drogas em quantidade moderada raramente leva a problemas, o que revela que a máxima de que "drogas pesadas" viciam numa tragada só é um exagero, um mito.

DROGA DESVENDADA

Nesse contexto, Eduardo e sua equipe lançaram o curso on-line "Que Droga é Essa?", parceria com a escola de atividades criativas Perestroika. Acessível a toda a população, o conteúdo é cuidadosamente preparado, com o intuito de minimizar os riscos e danos das drogas, mas, ao mesmo tempo, estimular a ciência e o uso terapêutico. São 25 aulas, divididas em cinco módulos, disponíveis durante quatro meses a partir da inscrição no site da plataforma (quedrogaeessa.perestroika.com.br). "Precisamos criar um sistema que proteja quem é vulnerável à dependência, que trate com eficiência e segurança os usuários, estimulando a pesquisa científica sobre a aplicação terapêutica de drogas hoje ilícitas, como maconha e o MDMA, por exemplo. Também mostramos claramente como se dá o processo de transição de uso para abuso e, em algumas pessoas, em dependência química, o que varia conforme fatores culturais, sociais, familiares e de saúde geral", conta.

A procura está alta e os interessados podem assistir às aulas na hora em que preferirem, uma vez que todo o conteúdo é gravado. Há um fórum interno para interação entre os profissionais e os alunos, com indicação de material de apoio e respostas para possíveis questionamentos. O curso aborda toda a temática das drogas, sem preconceitos ou ideologias políticas, com base científica, em linguagem simples e acessível.

A psicofarmacologia é o estudo acadêmico e científico das drogas que têm efeitos no cérebro e na mente. Já a medicina psicodélica é uma inovação recente, que indica a utilização de alguns psicofármacos, conhecidos por vários nomes, entre eles psicodélicos, com finalidades terapêuticas. Os principais psicodélicos considerados em estudos controlados são o LSD, o MDMA, a psilocibina, dos cogumelos mágicos, a ayahuasca (bebida indígena feita com duas plantas amazônicas) e a ibogaína (substância presente na raiz de um arbusto africano, que apresenta resultados extremamente promissores para combater a dependência de crack).