Comer alimentos orgânicos reduz os riscos de câncer? É difícil provar

A hipótese é que os consumidores de produtos orgânicos ingerem menos pesticidas sintéticos em frutas, vegetais e cereais, e por isso reduzem seu risco em relação a alguns pesticidas suspeitos de serem cancerígenos

por AFP 25/10/2018 14:01
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(foto: Fotos Públicas)

Um grande estudo publicado nesta semana que mostrou que os maiores consumidores de alimentos orgânicos na França desenvolveram menos câncer do que aqueles que nunca os comeram ilustra a dificuldade de estabelecer uma relação de causa e efeito entre alimentação e saúde. É impossível provar categoricamente no laboratório que este ou aquele alimento reduz o risco de uma doença tão complexa como o câncer. Os pesquisadores precisam acompanhar um grande número de pessoas durante um tempo e observar quais delas desenvolveram o câncer, com a esperança de documentar a posteriori um comportamento específico das que ficaram doentes.

Milhares de estudos sobre dieta e diversas enfermidades foram feitos durante décadas. Inclusive, os maiores às vezes são questionados, como o famoso trabalho que mostrou em 2013 os efeitos benéficos da dieta mediterrânea contra as doenças cardíacas e que este ano foi retirado de uma prestigiada revista médica por causa de problemas metodológicos. Sobre os alimentos orgânicos, somente um grande estudo havia avaliado previamente seu efeito sobre o câncer, o Million Women Study, com 600 mil mulheres britânicas, em 2014. Este estudo encontrou diferenças entre os consumidores e os não consumidores de orgânico quanto ao risco geral de câncer, mas observou um risco reduzido para um câncer em particular: o linfoma não Hodgkin.

O novo estudo francês, em que participaram, entre outros, a Universidade de Sorbonne, o Instituto Nacional de Pesquisa Agrônoma e o Instituto Nacional da Saúde e a Pesquisa Médica, é mais detalhado, embora tenha menos participantes, cerca de 69 mil, na maioria mulheres. Seus resultados foram publicados na última segunda-feira na revista americana Jama. A hipótese é que os consumidores de produtos orgânicos ingerem menos pesticidas sintéticos em frutas, vegetais e cereais, e por isso reduzem seu risco em relação a alguns pesticidas suspeitos de serem cancerígenos.

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Depois de sua inclusão, os voluntários do estudo NutriNet-Santé completaram um questionário (renda, atividade física, fumante ou não, índice de massa corporal, entre outras informações) e declararam os alimentos orgânicos consumidos nas últimas 24 horas. O estudo dividiu os participantes em quatro grupos de acordo com o tipo de alimentos orgânicos ingeridos. Depois foi contabilizado o número de casos de câncer em cada grupo em quatro anos e meio. Um quarto das pessoas que informaram que comiam uma maioria de alimentos orgânicos, o risco de câncer foi 25% menor do que um quarto que nunca comia esse tipo de alimento. Em termos absolutos, o aumento é de somente 0,6 ponto, ou seja, seis pacientes adicionais para cada 1 mil pessoas.

"Complexo"

O estudo encontrou uma correlação estatisticamente significativa somente para o câncer de mama em mulheres após a menopausa e para o linfoma, incluindo o linfoma não Hodgkin. Os autores se preocuparam em corrigir seus resultados considerando que os consumidores de orgânicos eram, em média, mais ricos, menos obesos e menos fumantes. Entretanto, outros fatores invisíveis, ambientais ou relacionados ao estilo de vida também podem incidir. Esse é o problema típico desses estudos. "As pessoas que comem produtos orgânicos de maneira deliberada, a ponto de declarar isso, provavelmente são diferentes dos demais em muitos outros aspectos", disse à AFP Nigel Brockton, diretor de pesquisa do American Institute for Research Against Cancer (AICR).

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Este especialista recomenda, em vez de um tipo particular de alimento, um conjunto de práticas para reduzir os riscos de câncer: peso normal, atividade física, dieta saudável, sem muitas carnes vermelhas, por exemplo. "O regime alimentar é uma coisa complexa", afirma. "Nunca teríamos uma recomendação baseada somente em estudo, inclusive se for estatisticamente significativo", acrescenta. Outros aspectos do estudo também foram questionados: não foram medidos os rastros de pesticidas nos participantes, o que gerou críticas de especialistas de Harvard no mesmo número de Jama. A coautora Julia Baudry disse à AFP que isso foi feito somente em uma pequena sub-amostra.

O aspecto declarativo do estudo também supõe um problema para John Ioannidis, professor emérito de medicina em Stanford, conhecido por ter afirmado que a maioria dos estudos publicados eram falsos. "A maioria das pesssoas, incluindo eu mesmo, não poderia dizer exatamente a quantidade de alimentos orgânicos que ingere", disse à AFP. "O estudo tem 3% de chance de ter encontrado algo importante e 97% de propagar resultados absurdos e ridículos". Como no caso do consumo de carnes vermelhas e de cigarros, serão necessários muitos estudos mais na mesma direção para concluir sobre o efeito da alimentação orgânica. Enquanto isso, a American Cancer Society continua defendendo uma alimentação rica em frutas e verduras, orgânicas ou não.