Caminho da simplicidade

"Tião e Martinha não têm internet nem celular, mas são exemplos do bem, tão em falta no mundo virtual e nas mídias convencionais"

por Déa Januzzi 15/10/2018 16:11
Ilustração/Lelis
(foto: Ilustração/Lelis)

Ela está inquieta, acordou cedo com a cantoria das cigarras, a 120 decibéis, que anunciam o verão. Correu para o computador, consultou as redes sociais, e ficou mais angustiada ainda. Desde domingo, ela está sem lugar, dá voltas em torno de si mesma, não consegue mais pensar no amanhã, mas se lembra de uma frase do escritor José Saramago – “De repente, o futuro ficou curto”. Ela sabe que o tempo digital dá voltas insanas, esbarra em discursos de ódio, em opiniões vãs, gira em torno de likes e comentários que a levam para um lugar estranho – e decide desligar tudo.

Ela precisa sair para o mundo real e resolve caminhar quando um raio de sol ilumina o seu rosto, abre as janelas do coração e limpa todo o mofo interno. Ela presta atenção no céu da Serra do Cipó. Ao caminhar, encontra dois cães de rua que não saem da sua porta. Ela não sabe por que, mas eles insistem em manter guarda do lado de fora da sua casa. Ela pressente que eles são os pais da ninhada de nove filhotes da Mel, a cadela abandonada que adotou e que agora está coberta de afeto, comida e água pura.

Ela não sabe o nome dos dois cães, mas desconfia que se parecem muito com os filhotes da Mel que já estão bem acolhidos, com donos que lhes proporcionam uma vida segura e confortável. Um deles é preto, late sem parar e, ao primeiro ranger do portão, se coloca de prontidão para segui-la, sem que ela saiba por quê. Ele late muito, alto e bom som, como se abrisse caminho para a sua passagem.

O outro é preto e branco, baixinho, mas com patas fortes. Quase não late, mas a segue para onde for. Alguns filhotes da Mel também se parecem com ele. Até no choro escandaloso quando é impedido de vigiar os passos daquela que vai andando à frente. Não tem jeito de espantá-los. Eles a acompanham religiosamente. Como uma procissão.

Ela passa pela casa da artista plástica Wania Lage - lembra-se que foi Waninha quem insistiu para que ela adotasse a Mel e que a ajudou quando a cachorra ficou prenha e no momento em que pariu, numa noite de lua vermelha. A próxima parada é na casa da Ana, que oferece rosas do canteiro dela, que de tão perfeitas parecem de mentira. Ela colhe as rosas e pensa que vão adornar a casa e perfumar a sua vida. É tudo o que ela precisa neste momento. Os dois cães continuam a segui-la.

Do outro lado da rua está Martinha. As duas se abraçam. Aos 60 anos, Martinha é um exemplo de superação, apesar de seguir carregando a cruz do passado. Nem caixão a mãe de Martinha teve na hora da morte. O corpo da mãe foi encontrado no meio da rua atravessado por dois paus, como se fosse uma cruz. De baixo para cima e de lado, crucificado. Coberto com um pano sujo e velho, foi jogado dentro de uma carroça e depois em cova rasa. Martinha estava com dois meses de vida e foi adotada pelos padrinhos.

Casada há 40 anos, Martinha tem 5 filhos e 6 netos, além dos que ajuda informalmente. É uma formiguinha a limpar o meio ambiente onde vive: “Para mim, isto aqui é um pedacinho do céu”, lugar que escolheu para morar há 20 anos. Martinha nasceu, cresceu e se casou na cidade de Morro do Pilar, até que se mudou para a Serra do Cipó, onde fazia longas caminhadas sem encontrar lixo algum. “Era tudo limpo.”

Não demorou muito, o lixo se acumulou aos olhos de Martinha, que resolveu recolher e juntar latinhas. Andando e catando, ela chega a juntar nove sacos de lixo de cada vez. Ela deu a volta por cima na vida - e continua andando mais de 10 quilômetros por dia como catadora de latinhas. Ela limpa a Serra do Cipó, depois de cada festa pública na praça principal, além de ajudar os organizadores de cada evento a lavar os banheiros e juntar o lixo deixado de qualquer jeito por quem ainda não aprendeu a levar embora a própria sujeira.

Ah, ela passa também pela casa que Tião acabou de construir. Troca acenos. Ele é outro guardião do lixo da Serra do Cipó. Deve ter mais de 70 anos, mas trabalha dia e noite com ferro-velho. São cadeiras, móveis, utensílios, quinquilharias que ele vai juntando. Com esse ofício, comprou lote na Serra do Cipó e construiu casa. É outro personagem que merecia estar nas redes sociais, na televisão, nos jornais, pois esses veículos estão intoxicados de notícias ruins. Tião e Martinha não têm internet nem celular, mas são exemplos do bem, tão em falta no mundo virtual e nas mídias convencionais.

Seguida pelos dois cães, ela pensa no sociólogo espanhol Daniel Prieto Sancho, que esteve recentemente no país, para participar de um fórum sobre envelhecimento - e deixou escapar. “É fundamental que a sociedade como um todo se mobilize, pois resiliência e cuidado estão intimamente relacionados. O bem-estar dos indivíduos é consequência do bem-estar da comunidade, ou seja, a resiliência é uma questão social, é um processo coletivo.” Ah, será que as pessoas se esqueceram dessas coisas tão simples? Que ninguém olha mais nos olhos do outro? Não conversa, só destila veneno virtual? Que cada um é dono da verdade, que não sabe mais história do Brasil, que perdeu a memória, sofreu lavagem cerebral?

O próximo encontro é com Piedade, que está de chapéu, unhas pintadas e desenhadas, um vício de que ela não abre mão. Suas unhas têm que estar perfeitas. Piedade já foi notícia em programas de tevê nacionais. Com pose de rainha, ela conhece ervas e flores da Serra do Cipó. Convida para um café passado na hora com folhas de canela. A casa de Piedade parece um ninho. Tem fogão a lenha sempre aceso, onde estão penduradas linguiças para defumar. Se você quiser tem licor de pequi, geleia de jabuticaba, tempero, pode pedir. Tem bênçãos para quem precisa. Para ela, não tem tempo ruim. Se você perguntar se está tudo bem ela responderá com sorriso largo: “Tudo ótimo”. Dá até inveja dessa alegria de Piedade que agradece por estar viva a cada manhã. Mas ela merece outra crônica, vocês não acham? Ela é superpop na horta. Tem internet? Não. Tem mandioca para fazer bolinho recheado de alegria, humor, confiança e autoestima. Vocês aceitam?

O sol agora está pelando, mas os dois cães a seguem sem reclamar. Ela anda devagar para apreciar as flores que caíram do pequizeiro. Nunca viu flores tão lindas que se transformarão no exótico fruto do cerrado. Ela precisa descansar. Busca pouso, sombra. Os dois cães também fogem do sol ao lado dela, que não entende por que eles fazem isso. Eles montam guarda.

Será que eles descobriram que ela está envelhecendo e que não tem mais tanto tempo, que o futuro ficou curto? Que não há caminho de volta? Ela se levanta e os dois cães também. Pensa no sinal de alerta do sociólogo Daniel Sancho: “O envelhecimento é uma luta para manter o senso de identidade por meio de constantes adaptações. Não há lugar de retorno na vida, e sim uma construção permanente para um novo lugar”.

*Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente