Entrevista/Leandro Karnal: ele é daqueles mestres que nos instigam a questionar

"Gosto de pensar o passado como experiência, o presente como ação e o futuro como estratégia. Não controlo tudo, mas posso aumentar enormemente a chance com ações estratégicas"

por Lilian Monteiro 23/09/2018 17:30
Tulio Santos/EM/D.A Press
"As adversidades sempre existiram, sim, mas como cada um de nós interage com elas e recria seu significado é algo que também diz respeito ao seu universo interior" (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press)

Professor doutor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1996, Leandro Karnal é das personalidades pensantes mais admiráveis neste país. Com bagagem de conhecimento invejável, é daqueles mestres que nos instigam a questionar, elaborar, raciocinar, criar, ter ideias e refletir. Nesta entrevista ao Bem Viver, ele fala um pouco de tudo e destaca a palestra que dará em Belo Horizonte, amanhã, com o tema “Onde quero estar quando o futuro chegar?”, pergunta central de todo pensamento estratégico. Na sua explanação, ele tratará da noção de tempo entre nós, especialmente da aceleração com o mundo líquido contemporâneo. O encontro também discutirá metas, equilíbrio, vida pessoal e trabalho, resiliência, planejamento e protagonismo. A realização de tudo o que desejamos é fruto do mero acaso ou pode ser intensificada pela vontade e ação? Afinal, de qual lugar você quer contemplar o futuro quando ele se tornar o seu presente? Leia os trechos mais importantes da fala deste intelectual e formador de opinião dos mais importantes do Brasil, com mais de um 1,4 milhão de seguidores no Facebook.

Como define o futuro? Temos de pensar nele o tempo todo para ir construindo-o ou viver o presente é mais objetivo?

O futuro nunca chega e estou ao lado do pensamento agostiniano de um presente contínuo. O futuro não veio/virá, precisa ser desenhado e sairá de um jeito não controlado por nós. Quanto mais eu investir na estratégia, mais o tal do futuro ficará próximo do meu desejo. Gosto de pensar o passado como experiência, o presente como ação e o futuro como estratégia. Não controlo tudo, mas posso aumentar enormemente a chance com ações estratégicas.

Onde você quer estar quando o futuro chegar?

Queria estar melhor do que hoje, pois considero crescer uma obrigação. Melhor implica todos os campos humanos: corporal, afetivo, conhecimento, familiar e material etc. Quero sempre sentir que há desafios pela frente e que não parei ou não fiquei repetindo o que deu certo antes. Gosto de me desafiar.

Onde imagina que o Brasil estará no futuro? A fatídica frase “Brasil, o país do futuro” é mais uma desilusão entre tantas relacionadas a este país?

A frase nasceu de fontes como Stephan Zweig, que veio para o Brasil, chamou-o de “país do futuro” e se matou, ironicamente. Somos, de fato, uma sociedade que se imagina jovem e voltada ao futuro e não temos um apogeu anterior, como Portugal e Argentina. Nunca fomos melancólicos, algo típico de quem teve glória no passado.

Em ano de eleições, como enxerga o Brasil dividido desde 2013? Que lições podemos tirar? O que há de bom e ruim neste cabo de força em que a sociedade brasileira se transformou? Aprendemos algo?

Sempre fomos divididos e, muitas vezes, polarizados de forma mais grave do que hoje. Para dar exemplos, havia mais ódio e até mais violência em 1935, 1961-1964 ou 1968. Estamos tendo a oportunidade de ver mais gente pelas redes e somos apresentados à maior variedade de posições que já existiu. O ódio sempre existiu, apenas agora ele tem chance de contato. As redes colocaram todos frente a frente e ainda protegidos pelo anonimato.

O inferno somos nós. Como podemos compreender essa afirmação?

Uma inversão da ideia de Sartre de que o inferno são os outros. Uma reflexão cruzada com o budismo, que enfatiza a nossa capacidade de criar muito a partir da nossa percepção. As adversidades sempre existiram, sim, mas como cada um de nós interage com elas e recria seu significado é algo que também diz respeito ao seu universo interior. Não me refiro aos problemas objetivos da vida, como a fome ou a violência urbana, mas da maneira como reagimos ao trágico da existência. A ação necessita sentir o problema e agir contra ele, mas o reforço do problema em si, sem ação, torna a vida complicada. Por isso o item budista: a dor é inevitável, o sofrimento é opcional.

Revolução 4.0, Era Digital, individualismo, fake news, o mundo feliz das redes sociais. Inteligência artificial, robôs substituindo os homens em determinadas funções, o mundo do trabalho em transformação, profissões deixando de existir. Estamos no olho do furacão da transição e nascimento de um novo mundo. Como lidar com tudo isso sem enlouquecer? Somos obrigados a ser digitais para não ficar fora da roda?

Se quisermos estar no mundo como ele se apresenta, sim. Sempre houve o grupo que chamarei de Walden, a referência ao lago/bosque no qual o norte-americano Henry Thoreau se refugiou para evitar o excesso de consumo, de sofisticação urbana e até de contato social. Umberto Eco classificou de apocalípticos vs integrados os dois modelos de interação com a tecnologia. Para viver no mundo, preciso dominar sua linguagem. Porém, isso não significa se dobrar à tecnologia, mas usá-la. Quanto mais eu a dominar menos serei dominado por ela. É o contrário do que possa parecer, pois seria como investir muito em saúde para não pensar nela. "A chave parece ser a percepção de que posso ser triste ou alegre e que continuo sendo eu e que alguns momentos menos brilhantes ajudam a estimular a alegria depois”

Diante do cenário descrito na resposta anterior, vivemos no mundo líquido, como disse Zygmunt Bauman (modernidade líquida)?

A metáfora de Bauman refere-se à dissolução de metanarrativas, de explicações amplas e gerais, de fronteiras claras, de autoridade centralizada e de vida privada resguardada. O mundo líquido dissolveu tudo rapidamente, com a adesão entusiasmada das pessoas. Ninguém mais precisa nos espionar, já fornecemos todas as informações antes.

Você é um otimista diante deste mundo globalizado e recomendaria que todos nós fôssemos? Síria, refugiados, terrorismo, Venezuela, corrupção brasileira, 13 milhões de desempregados no nosso país (na realidade, é muito mais), dinheiro sendo tirado da educação pelo governo, Donald Trump, aquecimento global, liberação de agrotóxicos... Dá para seguir sem o copo transbordar?

Durante a Segunda Guerra houve muito mais mortes do que hoje. Durante a epidemia de gripe espanhola houve mais mortes do que hoje. Nas Cruzadas havia mais violência do que hoje. Temos problemas enormes, alguns bem menores do que no passado e outros maiores. Temos uma economia em crise, mas inflação sob controle. Você tem todos os motivos para se suicidar ao fim desta entrevista ou para começar o melhor período da sua vida. Os problemas não são uma representação, eles existem. A interação com a realidade problemática é que demanda algumas coisas objetivas. "Gosto de pensar o passado como experiência, o presente como ação e o futuro como estratégia. Não controlo tudo, mas posso aumentar enormemente a chance com ações estratégicas”

E o mundo que vive em busca da felicidade plena o tempo inteiro? Ou que se sente obrigado a falar que está sempre feliz? Por onde anda a sanidade? Como aceitar que tristeza faz parte, assim como cair e levantar? E que nem sempre tristeza é depressão? E, por isso, não é possível viver engolindo pílulas por aí?

A sanidade não é a dor ou a tristeza, como parece indicar a pergunta. A sanidade é a consciência e a capacidade de estabelecer perspectiva. Depressão é doença e só pode ser superada com ajuda médica. Tristeza é fase passageira e pode ser superada pelo tempo ou pela ação individual. Tristeza tem causa: luto, perda financeira etc. Passa com o tempo. Depressão nem sempre tem causa tão clara ou gatilho evidente. Querer parecer sempre bem é de uma melancolia enorme. A chave parece ser a percepção de que posso ser triste ou alegre e que continuo sendo eu e que alguns momentos menos brilhantes ajudam a estimular a alegria depois.

SERVIÇO
Palestra: Onde quero estar quando o futuro chegar?
Palestrante: Leandro Karnal
Local: KM de Vantagens Hall BH
Avenida Senhora do Carmo, 230, São Pedro - BH
Dia: 24 de setembro
Horário: às 20h
Capacidade: 3.616 pessoas
Ingressos: de R$ 50 a R$ 200
Venda: www.ticketsforfun.com.br
Venda a grupos: grupos@t4f.com.br
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