Entidade oferece apoio para quem viveu o drama do suicídio

Projeto de extensão da Faculdade de Medicina da UFMG, Grupo de Apoio a Enlutados por Suicídio (Gaes) recebe e auxilia, gratuitamente, pessoas em sofrimento pela perda de entes queridos

por Laura Valente 18/02/2018 10:01
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Assunto delicado, doloroso e ainda tratado como tabu na sociedade brasileira, o suicídio traz como uma das consequências o sofrimento intenso de quem conviveu com a vítima, cuja perda provoca um luto diferente dos demais, por envolver sentimentos como culpa, abandono e vergonha, entre outros. Prestar apoio especializado a essas pessoas é o objetivo do Grupo de Apoio a Enlutados por Suicídio (Gaes), projeto de extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Criado durante o 19º Congresso Mineiro de Psiquiatria, em junho do ano passado, o GAES, coordenado pelo psiquiatra Humberto Corrêa e moderado pela psicóloga Vivian Zicker, funciona em encontros semanais, às segundas-feiras, como espaço de acolhimento e psicoeducação à comunidade de enlutados. A inscrição é gratuita e deve ser realizada pelo e-mail gaesufmg@gmail.com. 

Atuante em psicologia clínica há mais de 30 anos e membro da Associação de Suicidologia da América Latina e Caribe (Asulac), Vivian Zicker reforça a importância de o enlutado ter um espaço para que possa não só falar sobre a tragédia como entender um pouco mais o que se passou com a vítima. “O luto por suicídio é diferente de outros, pois o ato de tirar a própria vida não é socialmente aceitável. Assim, o suicida e a família são muito julgados. Geralmente, o enlutado vive uma experiência traumática no pós-morte, em que pessoas de sua convivência não querem falar a respeito ou falam demais sobre a perda, muitas vezes, em abordagem de curiosidade excessiva, buscando detalhes mórbidos, o que aumenta o sofrimento. Assim, os enlutados não encontram espaço de acolhimento e ficam perdidos em sentimentos controversos”, informa.

 

PERGUNTAS COMUNS No grupo, aberto apenas a pessoas enlutadas por suicídio (até para que se garanta um espaço de privacidade e sigilo), a psicóloga trabalha com base no acolhimento e na psicoeducação. “Diferentemente de perder uma pessoa por acidente ou causas naturais, o enlutado por suicídio apresenta série de características que o difere dos demais, pois experimenta sentimentos que antecedem a dor em si, principalmente de culpa, de raiva, de vergonha, de sensação de abandono, além de se fazer muitas perguntas não respondidas. Muitas vezes, vive a negação, criando uma série de fantasias a respeito daquela morte. E isso, independentemente do grau de parentesco com a vítima”, frisa.

Jair Amaral/EM/D.A Press
Para a psicóloga Vivian Zicker, mediadora do Gaes, é importante para o enlutado ter um espaço para falar sobre sua dor (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Zicker explica, ainda, que, já a partir da inscrição, o participante é acolhido no espaço, quando é convidado a compartilhar sentimentos. “Apesar de histórias diferentes, graus de parentesco distintos, o sentimento é o mesmo.” Aos que integram o grupo, a psicóloga procura abordar os fatos que levam alguém a tirar a própria vida. “As pessoas chegam com hipóteses e muitas perguntas: 'Como não percebi?'. 'Deveria ter feito alguma coisa'. 'E se tivesse agido de tal maneira no lugar de outra?'. 'Será que não pensou no trauma que provocaria?'”. Ela afirma ainda que os enlutados costumam sofrer com flashbacks (pois muitas vezes as pessoas se matam em casa e algum familiar as encontra) e imaginar os momentos finais da vítima, questionando se houve dor, sofrimento ou arrependimento. “A verdade é que o suicídio evoca perguntas que nunca serão respondidas, mas outras são, sim, passíveis de resposta. Já conseguimos constatar que a maior parte dos casos de suicídio está ligada a algum transtorno mental, seja depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar de personalidade ou algum sofrimento intenso que a pessoa não consegue administrar. Acometido por doença, quem se mata sofre de falta de condições de ponderar de forma realista a respeito da vida ou das ligações afetivas. Então, aqui no Gaes, procuramos esclarecer que não existem culpados”, ressalta. 

 

PSICOEDUCAÇÃO Como? Por meio da psicoeducação, num trabalho que objetiva explicar o comportamento da vítima para que os enlutados entendam o que aconteceu. “A educação a respeito do comportamento do suicida é um passo importantíssimo para que a família saiba do transtorno mental e se culpe menos. Quando vão entendendo que não foram culpados, que o suicida é uma pessoa que adoeceu a ponto de tirar a própria vida, experimentam um conforto”, revela. 

A psicóloga lembra, ainda, que a suicidologia estuda o fenômeno tanto na prevenção quanto na posvenção, amparada por uma grande ferramenta de ajuda conhecida como “autópsia psicológica”, ou seja, profissionais fazem um trabalho de reconstrução da biografia da vítima do suicídio, entrevistando familiares, amigos, colegas de trabalho, médicos, psiquiatras, psicólogos, visando coletar dados que possam esclarecer possíveis dúvidas em relação a morte por suicídio e, também, realizar julgamentos clínicos que substituirão o diálogo com a pessoa falecida. “Reconstroem-se os últimos meses para avaliar se o padrão de comportamento pode ajudar na prevenção de outros casos e na recuperação dos que ficaram, pois cuidar desses enlutados, de um familiar ou pessoa próxima, também é uma forma de prevenção.”

Nesses primeiros meses, segundo a psicóloga, o Gaes tem sido bem-sucedido e já conta com pessoas que conseguiram retomar a vida depois da tragédia, voltaram a estudar, a trabalhar. “Com os encontros, os participantes se mostram mais fortalecidos. A recuperação se dá caso a caso, mas a assistência terapêutica adequada possibilita que o enlutado siga em frente de forma saudável e construtiva”, descreve. 

E isso porque, aos poucos, reforça a psicóloga, as informações que o grupo oferece respondem por melhora em sentimentos como culpa ou raiva e fazem com que o enlutado consiga chegar à dor da perda em si. “A partir desse momento, o luto começa a ser um pouco menos doloroso, a ser assimilado como saudade e os outros sentimentos contraditórios vão sendo vencidos”, reforça. E avisa: “Muitos, inclusive, começam a se engajar, oferecem auxílio aos que chegam, participam de ações do Setembro Amarelo, criam grupos de apoio, o que é também essencial para vencermos a batalha, já que uma sociedade em que o suicídio é discutido abertamente terá mecanismos de prevenção potencializados”. 

 

FIQUE POR DENTRO

» Informações, pesquisas e dicas de leitura sobre suicídio podem ser encontradas em sites especializados. Para quem busca saber mais, a psicóloga indica o endereço eletrônico da Associação Brasileira de Prevenção e Estudos do Suicídio (Abeps): www.abeps.org.br/.

» Para profissionais da saúde, o Gaes promoverá curso de posvenção e manejo do grupo de enlutados em 15 e 16 de junho. Informações pelo e-mail: gaesufmg@gmail.com.