Carnaval ganha importância não apenas no quesito diversão

O período também é tempo de fazer amigos, trabalhar a tolerância, criticar as mazelas do país e praticar a solidariedade

por Laura Valente 05/02/2018 13:00

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
"Aproveitamos a ocupação da cidade durante os dias de festa para promover ações de sustentabilidade, proteção ao meio ambiente e à natureza e arrecadamos doações. Assim, nos divertimos ao mesmo tempo em que fazemos algo em prol do próximo e do planeta" - Eduardo Cavalcanti, empresário, criou o bloco A Culpa é Dele (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press )

O carnaval que renasceu e só faz crescer em Belo Horizonte tem sido o evento mais esperado do ano para um público cada vez maior, de diferentes perfis, idades e profissões. Isso porque o feriado de Momo funciona como válvula de escape frente a uma rotina muitas vezes estressante e traz em si a magia que permite a cada um se esquecer das amarras, dos julgamentos, dos papéis que assume durante o dia a dia, numa experiência de liberdade e experimentação. “No carnaval ninguém tem profissão, todo mundo vira folião”, diz a dentista Renata Marques Dias. Também é tempo de tolerância, de fazer amigos, da reunião de grupos distintos, de demonstrar a insatisfação por meio de fantasias caricatas e de marchinhas de denúncia e de militância. E até mesmo de praticar a solidariedade, como demonstra o empresário Eduardo Cavalcanti, criador da festa de rua de cunho social A Culpa é Dele, no Bairro Santo Antônio, em que pede aos participantes a doação de produtos diversos para instituições de caridade. “Aproveitamos a ocupação da cidade durante os dias de festa para promover ações de sustentabilidade, proteção ao meio ambiente e à natureza e arrecadamos doações. Assim, nos divertimos ao mesmo tempo em que fazemos algo em prol do próximo e do planeta”, garante.

 

Que magia é essa?
O carnaval tem o importante papel de permitir ao indivíduo experimentar o relaxamento das formalidades e tensões, numa ruptura com a vida cotidiana

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
Meses antes da folia, a professora universitária Graziela Mello Vianna já começa a escolher as fantasias e decide em quais blocos pretende ir (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press )

“Comecei a viver novamente a fantasia do carnaval com o ressurgimento da festa de rua de BH, por volta de 2011, até pela espontaneidade com que foi tomando corpo, o que me encanta mais e mais a cada ano. Esse movimento é muito legal por ter surgido como forma de ocupação do espaço público por pessoas comuns, numa ação política pacífica. Desde então, meses antes da folia já começo a escolher as fantasias, faço um planejamento detalhado sobre em quais blocos quero ir e compro adereços”, conta Graziela Mello Vianna, professora universitária e doutora em comunicação, que faz 43 anos em plena segunda-feira de carnaval.

Para comemorar a data, ela mesmo criou peças a fim de destacar as amigas no Todo Mundo Cabe no Mundo, bloco inclusivo criado pelo designer Marcelo Xavier, que é cadeirante. “Nossa turma vai se identificar como Anjos da Grazi. Criei adereços e até um estandarte para participar dessa iniciativa, que faço questão de prestigiar, pois mostra que o carnaval realmente é um espaço que acolhe todos”, diz. Graziela também pretende pular nos blocos Então, Brilha!, Corte Devassa, Da Esquina e Magnólia, entre outros. “O ano inteiro, tenho mil coisas para resolver. Então, vivo o carnaval como um tempo de descanso, em que me esqueço da vida e só me lembro de trabalho quando alguém fala 'oi fessora!’. Nos blocos, a gente encontra o chefe de departamento, o colega, o aluno, e todo mundo é igual: não há julgamentos. A maioria se diverte e é muito bonito 'seguir a alma encantadora das ruas', como disse o cronista e poeta João do Rio no início do século passado.”

 

RITUAIS

 

Cláudio Paixão, psicólogo e doutor em psicologia social, lembra que a humanidade experimenta rituais semelhantes à folia de Momo há milênios. “Inclusive, existem diversos estudos que abordam o estado de entusiasmo de quem participa desse tipo de evento, palavra do grego in + theos, significando, literalmente, 'em Deus', e que, hoje, diz respeito a grande arrebatamento e alegria. Assim, o carnaval é um ritual que oferece ao participante a oportunidade de sair de si, experimentando uma outra face, comportamentos e sentimentos que a sociedade, geralmente, não permite que vivenciemos no cotidiano, como embriaguez, dança, riso, inversão de características: o tolo é entronizado, o juiz é ridicularizado, o político corrupto é abertamente criticado, como se pudéssemos colocar para fora o que pensamos e ou sentimos sem medo de ser cerceados.”

O especialista cita trechos da música Camisa listrada, de Assis Valente, para ilustrar o que diz: a história de um homem que tirou o anel de doutor para curtir a festa sem “dar o que falar”. Cláudio explica ainda que fazer zombas, performances e soltar os bichos durante o carnaval não só é permitido como indicado, faz bem. “A sociedade precisa de espaços para que as pessoas experimentem momentos em que seja permitido gritar à vontade e permanecer no anonimato, livre de julgamentos. Essas oportunidades são importantíssimas para aliviar a tensão do indivíduo, reciclando tudo aquilo que massacra nossa personalidade no cotidiano, já que, quando brincamos, relaxamos, há um reequilíbrio de forças em nosso interior.”

 

FORÇAS INTERNAS

Paixão explica a tomada de poder durante o ritual. “No cotidiano, cerceamos forças internas importantíssimas em nome de normas e do convívio social, reprimindo desejos, o que gera frustrações. Então, os rituais são momentos em que as libertamos, podemos ser satíricos, irônicos, sexuais. É oportunidade para experimentar outros papéis, fantasias, de o homem se vestir de mulher, em contato com o feminino que lhe é negado desde criança, assim como de a moça liberar a sensualidade reprimida desde cedo, de as pessoas fingirem que estão exterminando mazelas e políticos corruptos com a queima de Judas, por exemplo. No carnaval, as pessoas compensam os 360 dias em que vivem sob contenção, o que é muito saudável e válido desde que haja responsabilidade consigo próprio, cada um aproveitando de acordo com as medidas que julgue válidas.”

 

Beto Novaes/EM/D.A Press
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
PALAVRA DE ESPECIALISTA: CLÁUDIO PAIXÃO, PSICÓLOGO
E a tristeza?

"A melancolia também tem lugar em períodos de festa e rituais como carnaval, Natal e réveillon. A tristeza existe por vários motivos: há pessoas que não encontram seu espaço, ou não têm amigos, ou simplesmente estão passando por um período de introspecção. Mas, ainda assim, o ritual é importante por indicar o fim de um ciclo ou de experiências que nos confrontam com dores, angústias, desejos, o que, automaticamente, leva à reflexão. A forma como cada um vive o carnaval é única, e válida."


O curioso Bloco Fúnebre


Em 2013, o músico Leonardo Luiz Lima Duarte e mais um grupo de amigos resolveram montar o Bloco Fúnebre. “Tivemos a ideia de ironizar o fato de o brasileiro esquecer todos os problemas durante o carnaval. Então, adotamos aparência inspirada na comemoração mexicana do Dia dos Mortos e do bloco Zé Pereira, de Ouro Preto, com o objetivo de enterrar a tristeza e ressuscitar a alegria no cortejo”, aponta. Com direito a um caixão lotado de cerveja e a um boneco de três metros representando a morte, o grupo aposta na ideia de bloco de arrastão - com a bateria aberta a quem quiser participar –, e se concentra na sexta-feira de carnaval (9 de fevereiro), a partir das 20h, na Praça da Bandeira, Bairro Mangabeiras. “O cortejo fúnebre segue até às 3h e termina com o enterro simbólico dos problemas do Brasil. A partir daí, podemos curtir o carnaval em paz”, brinca. No ano passado, o bloco contou com a participação de cerca de 3 mil pessoas.
Bloco Fúnebre/Divulgação
(foto: Bloco Fúnebre/Divulgação )

Um carnaval de muitas identidades
Festa é mecanismo de escape e distração. Pessoas de grupos sociais e faixas etárias diferentes se reúnem em grupos para cair na diversão. Caráter inclusivo é um dos trunfos da folia de rua

Túlio Santos/EM/D.A Press
As amigas Renata Marques Dias (c), Regina Bengtson Saliba (e) e Ana Cecília Linhares (d) bolam fantasias para todos os dias (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)

Natural de BH e criada em Salvador, na Bahia, a dentista Renata Marques Dias, de 46 anos, diz ter uma relação íntima com o carnaval desde que se entende por gente. “Passei muitos anos na praia, curtindo o circuito Barra Ondina, mas desde que os bloquinhos de rua passaram a tomar conta de BH só fico aqui. Combinamos a programação em grupo de amigos e bolamos fantasias para todos os dias. Gostamos especialmente de prestigiar os blocos dos bairros Santa Tereza e Santo Antônio”, revela a moça, que já garantiu os adereços para a temporada 2018.

Durante os quatro dias de folia, conta, a palavra de ordem é diversão. “Esquecemos de problemas, ficamos em ritmo de carnaval, nos jogamos. Fazemos prévia na minha casa ou em outro QG, tomamos cerveja, espumante e o dia inteiro é só alegria, nada de preocupações e nem de longe pensamos em trabalho: o folião é uma pessoa que não tem profissão, não está vinculado a regras, a papéis, o negócio dele é diversão. Não quer nem sequer saber do que vai ser da quarta-feira pra frente.”

Segundo o psiquiatra Paulo Rapsold, diretor da Associação Médica de Minas Gerais, a empolgação de Renata representa uma sensação experienciada por boa parte dos foliões. “Quando chegamos no carnaval, a maioria desvia o foco dos problemas, pois a festa é um mecanismo de escape e distração. A rotina do folião, que pula, dança e segue atrás dos bloquinhos, também libera no organismo substâncias como a endorfina, o que causa sensação de bem-estar.”

Tanto que mal chega a quarta-feira de cinzas, Renata e as amigas começam a pensar no carnaval do próximo ano. “Ao contrário de Salvador, onde usamos abadás e mortalhas, aqui, em BH, montamos a fantasia de acordo com a proposta do bloco, o que é repleto de simbologias. Então, o ritual de pensar a fantasia, os adereços, a maquiagem também faz parte dessa magia do bem. Eu me empolgo mais com o carnaval do que com festas como Natal ou réveillon. É uma pausa para a alegria, um momento marcado para extravasar, desligar o plug do cotidiano, pular no meio da rua, cantar junto, caprichar na produção. A gente incorpora o personagem, o espírito. Não existem julgamentos, mas liberdade para brincar, se jogar.”

FOLIA ENGAJADA

Eduardo Cavalcanti, empresário, de 35, aproveita a popularidade do bloquinho pré-carnaval que criou em 2015, o A Culpa é Dele, para botar a boca no trombone em defesa da sustentabilidade e do meio ambiente e também engajar o folião a participar de uma causa social. “Criei o bloco sem grandes pretensões, com o objetivo de reunir a turma de amigos e familiares para a prévia dos bloquinhos em um local fixo e, assim, proporcionar mais comodidade e conforto aos participantes. Mas logo a festa cresceu, começou a atrair mais gente. Com o sucesso da empreitada, tive a ideia de beneficiar grupos em vulnerabilidade social”, conta.

 

Como? O organizador não cobra ingresso, mas pede a doação de produtos de acordo com o grupo ao qual está associado. Neste ano, escolheu a Amazônia como temática e pediu aos foliões materiais escolares que serão doados para estudantes que participam da organização não governamental (ONG) A Rebeldia, do músico Flávio Renegado. “Participar do carnaval é apoiar uma iniciativa popular de ocupação do espaço público, valorizar aqueles que, lá em 2011, ainda como pequenos blocos, tiveram essa iniciativa e a quem devemos muito. Hoje, a festa de BH representa a democratização da alegria e é muito bom estar em um ambiente em que você pode ser você, curtir o momento, fazer amizades, onde não existe classe, cor, credo, orientação sexual, mas um sentimento de alegria que nos permite extravasar, interagir com o outro a quem você nunca viu na vida e, ainda, promove a aceitação e o respeito. Então, é um movimento que não significa só farra, mas que também leva à reflexão, à tolerância, à revisão e quebra de preconceitos e tabus.”

Neste espírito, ele pretende participar dos blocos É o Amor, Garotas Solteiras, Du seu Pai e Filhas de Gaby, Chama o Síndico, Beiço do Wando, Magnólia, I Wanna Love You e Funk You. Que venha a folia!

Arquivo Pessoal
(foto: Arquivo Pessoal)
Cinco perguntas para... Bruno Brulon Soares, Historiador e antropólogo, doutor em antropologia e professor de museologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)

O que o motivou a pesquisar o tema carnaval?

Durante o programa de pós-graduação em antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), comecei a olhar para o carnaval, algo que faz parte da vida de todos os brasileiros, a partir da perspectiva do ritual e da performance. Passei a observá-lo como um momento ritual em que as pessoas se permitem romper laços sociais muito arraigados em nossas tradições desde a colônia. O estado de carnavalização da vida social - como chamei no artigo citado - se estabelece nos momentos de afrouxamento da ordem social. Um dia de jogo de futebol disputado pela Seleção Brasileira na Copa do Mundo, por exemplo, engendra nacionalmente momentos de carnavalização.

Em que medida o carnaval rompe com o cotidiano?

Como um rito, no sentido antropológico desse termo, o carnaval estabelece uma série de rupturas na ordem que nos guia na vida cotidiana. Os momentos de carnavalização rompem com a ordem temporal e espacial que separam o carnaval da vida cotidiana; extingue-se a ordem sequencial dos eventos que ordenam a vida das pessoas; estabelece-se uma linguagem específica compartilhada pelos participantes do rito; cria-se uma forma de identidade momentânea em que todos se encontram fora dos seus papéis habituais e passam a "brincar" com identidades outras. A fantasia e o riso são elementos que fazem parte dessa ruptura. O riso, em especial, é parte fundamental das relações de descontração e de afrouxamento das normas sociais, funcionando como um catalisador da experiência carnavalesca. Esse estado "jocoso", de brincadeira e fantasia, é útil aos atores envolvidos, de modo a permiti-los experimentar o seu próprio "eu" fora dos regimes que os conduzem e restringem o seu comportamento na vida cotidiana.

E como colabora para a formação de identidades sociais? Pode dar exemplos?

O carnaval, entendido de forma mais ampla, funciona no sentido de evocar um mundo subjacente, reconstruído e imaginado sob a vida cotidiana, que, ao dar espaço para que aflorem identidades diversas, almeja evocar simbolicamente uma identidade social mais ampla. Na verdade, o sentimento momentâneo de compartilhamento (de emoções, sentidos, valores e vontades) que caracteriza as "situações de carnaval" fazem com que pessoas de diferentes estratos sociais, por exemplo, sem ter tido qualquer contato anterior, se sintam como parte de uma mesma identidade coletiva. Desse modo, temporariamente, indivíduo, e sociedade são o mesmo, assim como povo e elite, mas para que se alcance tal estado de indiferenciação é preciso que as pessoas, em sua individualização, também se proponham a abandonar os seus próprios sistemas morais, o que permite que a “brincadeira" do carnaval resulte em ambiguidades diversas. Tudo se passa como se as barreiras sociais rigidamente construídas em um país de hierarquias (sociais, econômicas, políticas e sexuais) fossem abolidas "para o bloco passar”. E, depois que ele passa, o carnaval acaba e as pessoas voltam - renovadas, ou descansadas de si mesmas - para cumprir seus papéis na vida cotidiana.

Sobre a "supressão das barreiras sociais que segregam em termos de grupos, classes, gênero etc.", o senhor acredita que o carnaval tem influência benéfica na construção de uma sociedade mais tolerante e igualitária?

A supressão das barreiras é benéfica na medida em que ela pode permitir evidenciar que tais barreiras, e a segregação entre diferentes, são parte constitutiva de nossa sociedade. Se o carnaval nos permite olhar com crítica para as fissuras que constituem a nossa desigualdade (de classes, grupos sociais, gênero e sexualidade), então ele pode beneficiar uma identidade coletiva menos hierarquizada. Apesar de o carnaval romper com a ordem anunciando que ela será restabelecida em seguida, traz consciência sobre as barreiras e proibições que constituem as normas às quais estamos submetidos, e nos permite pensar sobre elas, questionar se ainda se aplicam... De fato, é possível afirmar que é graças à existência de momentos de carnavalização e de indivíduos liminares que podemos efetivamente gerar mudanças na estrutura. Essa mudança existe, por exemplo, se observamos o papel desempenhado pelas mulheres em nossa sociedade hoje e aquele que podiam desempenhar há um século. As pequenas permissões que caracterizam o carnaval, neste sentido, podem sim levar a rupturas estruturais mais duradouras.

O que o carnaval tem a ver com o "prazer transgressor do autoconhecimento"?

Segundo a antropologia da performance, é preciso a ruptura para se alcançar um estado de liminaridade em que deixamos de ser quem nós somos, mas também não nos tornamos completamente um outro – podemos olhar para nós mesmos como um outro. Tal possibilidade reflexiva, de experimentar e de olhar para si mesmo, é o que permite transgredir com o “eu” cotidiano para pensar o eu em todas as suas possibilidades. É esse exercício reflexivo que nos permite a fantasia do carnaval.