Compaixão: quando o amor incondicional pode mudar as vidas de todos

Como a psicanálise vê e analisa as pessoas que se doam ao outro sem contrapartida? Psicanalista e monja zen budista aponta a compaixão, a empatia e o altruísmo

24/12/2017 14:39

 

Leandro Couri/EM
Maria Bernadette Biaggi, psicanalista e monja zen budista (foto: Leandro Couri/EM)

Compaixão, empatia e altruísmo são estados internos muito estudados, tanto pela psicanálise e outras teorias, quanto pela neurociência que busca as bases neurais e neurobiológicas desses estados. Estudos revelam a arquitetura desses sentimentos na mente humana por meio da ressonância magnética funcional que analisa a atividade em regiões do cérebro ligadas aos valores morais e nas relacionadas à formação de grupo. No vasto corpo teórico da psicanálise, Maria Bernadette Biaggi, psicanalista e monja zen budista, salienta dois grandes psicanalistas, W.R. Bion e D. Winnicott, com dois conceitos que auxiliam a refletir sobre o percurso desse potencial inato para gerar atitude compassiva. “A capacidade de se preocupar, de se importar ou se envolver e se responsabilizar pelas próprias ações é desenvolvida ao longo do processo maturacional humano. Qual o percurso para nos tornarmos prontos para amar.?”

Maria Bernadette Biaggi explica que Winnicott abarca pelo termo “Concern”, de difícil tradução, mas que traz a ideia de como o bebê, por meio do acolhimento nos braços dos cuidadores, na forma como sucede a elaboração imaginativa do seu corpo, evoca sentimentos de segurança, carinho e satisfação. Quando estamos sob a influência desse sistema, surgem sentimentos de benevolência e de compaixão e, consequentemente, o indivíduo estabelece vínculos positivos com seus semelhantes, tornando-se comunitário e solidário.

“O Concern passa por estágios iniciais do bebê com seus cuidadores e é resultante de um cuidado suficientemente bom. Seu desenvolvimento está ligado à saúde psíquica. Assim, certas condições externas são necessárias para o amadurecimento emocional. A provisão ambiental é vital para que o lactante seja capaz de alcançar o estatuto do ‘Eu’ unitário e integrado, condição necessária para a entrada no concernimento e desenvolvimento dos sentimentos da compaixão, atingindo formas mais sofisticadas de relação e imunização das tendências antissociais”, esclarece a psicanalista.

 

Presidente do Istituto Biaggi – Psicoterapia, Psicoanalisi Cultura e Arte Brasil-Italia, Maria Bernadette Biaggi explica que, quando o ambiente falha no atendimento das primeiras necessidades maturacionais do bebê, podem surgir perturbações na capacidade de dar sentido à existência de forma criativa e espontânea, resultando na impotência diante das relações interpessoais e nas doenças relacionais. “O atendimento das necessidades nas fases iniciais assegura uma série de conquistas como o altruísmo. As falhas do ambiente nessas fases levam o bebê à perda da capacidade de existir no mundo e de ser alguém que enxerga alguém. Se ele não for concernido no seio materno não irá desenvolver o sentimento de existir. Cito ainda Winnicott: ‘Quando olho e sou visto, logo existo’. Ele precisa do ambiente facilitador para desenvolver a compaixão.”


COMPAIXÃO Maria Bernadette Biaggi destaca que hoje a neurociência investiga as estruturas cerebrais que sustentam os sentimentos e comportamentos compassivos por meio dos estudos de neuroimagem, que nos informam ao vivo as estruturas ativadas quando o indivíduo experimenta a compaixão. “Os conhecimentos neurobiológicos nos ilustram sobre os sistemas neurais que sustentam os comportamentos de cuidado e as condutas altruístas. A compaixão é acompanhada de forte motivação pró-social para sermos comunitários e solidários e nos abrirmos para a realidade na realização das ações necessárias ao bem-estar. Ela coordena e integra diversos elementos mentais como a motivação, a atenção, a empatia, a simpatia e a ação, tendo a capacidade de organizar a mente e a conduta. Vale salientar que a empatia se refere à experiência que uma pessoa tem das emoções dos outros, mas nem sempre leva a um bom resultado. Já a compaixão e o altruísmo são respostas pluridimensionais e incluem a bondade, a empatia, a generosidade e a aceitação.”

A psicanalista destaca outro belo conceito de W. Bion, chamado “At-one-ment”, ou seja, estar em uníssono, “junto com”, numa admiração silenciosa, mística. “É o equivalente ao estado de empatia, mas com uma maior complexidade. Trata-se de uma forma de abertura intuitiva em direção à comunhão ou fusão com a verdade que deve ser diferenciada da união, que implica apenas em satisfação sensorial do próprio indivíduo, quando realiza ações sociais para alimentar seu próprio ego necessitado de atenção e valor.”

Mas como atingir esse estado de uníssono, segundo Bion, se o indivíduo tem dor de fome? Como ser altruísta? Se temos um potencial inato para a compaixão e fomos sequestrados pelas emoções e traumas, o que podemos fazer para desenvolver o altruísmo? “Precisamos de uma nova provisão ambiental para deixar de lado as organizações defensivas e retornar ao nosso processo de amadurecimento. Ainda em Bion, encontramos a ideia de que as emoções sofrem transformações na situação analítica, aprendendo emocionalmente com as experiências da dor para que ocorra uma mudança de vértice de pensamento e conhecimento. Hoje, temos várias maneiras que podem auxiliar a reconectar a dimensão sensível do corpo nas práticas conhecidas como Embodied emotion and cognition, ou seja, é a cognição incorporada na neurociência que defende a simulação de sentidos, estados corporais e ações contextualizadas. É o experienciar o mundo via corpo e mente. Abrange práticas contemplativas, como a meditação, tai chi chuan, ‘conversas de bar’, podendo todas essas práticas recolocar o corpo em movimento na provisão básica rumo ao amadurecimento.”


PALAVRA DE ESPECIALISTA: Geraldo Caldeira, psicanalista

“De si para o outro”    

“As pessoas se tornam mais propensas a enxergar o outro quando estão bem. Do contrário é mais complicado porque numa fase ruim predomina o mau humor, a depressão, a tristeza e ninguém vai estar a fim de fazer nada de positivo, não há impulso para ajudar. Por outro lado, pode haver também a superação. Pensar em se tornar disponível para o outro mesmo num momento pessoal de turbulência. E só é possível ajudar quem quer ajuda. Às vezes, há quem se recuse, se irrite e, assim, o ato altruísta perde a graça. A ajuda só tem sentido se perceber o bem que você faz ao outro. A pessoa não quer nada em troca, mas perceber esse bem significa que ele atua na alma de quem ajuda como um engrandecimento. Estender a mão para quem precisa de socorro também é uma maneira de manter a saúde, faz bem ao corpo e à mente. Outro aspecto é que aquelas pessoas que, ao contrário de buscar a felicidade conforme a proposta por Aristóteles (o maior bem desejado pelos homens e o fim das ações humanas), ajudam o outro porque se sentem culpadas na vida, com ou sem razão, e querem aliviar a culpa fazendo uma reparação. Às vezes, até inconsciente, uma culpa interna que não se sabe porque, mas no entanto ela está presente. Mas para ajudar o outro basta querer. Sozinho ou em grupo. O ato da doação é tirar de si para o outro, seja dinheiro, presença ou ombro amigo. E sempre vale a pena.”