Habilitação auditiva ajuda pessoas com surdez a se conectarem com o mundo por meio dos sons

Pacientes com implante coclear, conhecido como ouvido biônico, precisam de acompanhamento fonoaudiológico para aprender a codificar os sons e, assim, serem capazes de ouvir e desenvolver a fala

por Clarisse Souza 28/11/2017 17:30
Leandro Couri/EM/D.A Press
Diagnosticada há quase nove anos com surdez profunda, Emanuelly Veloso, hoje com 10, está perto de receber alta depois de um longo tratamento (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Aos 10 anos, Emanuelly Veloso Pereira da Silva é uma menina de sorriso tímido e olhos atentos. Ao lado de quem não conhece, parece desconfiada, mas basta se aproximar dos coleguinhas da mesma idade para se mostrar desenvolta e falante. Para garantir plena comunicação com os amigos durante as brincadeiras, Manu, como é chamada por todos, conta com a ajuda de um pequeno aparelho que, preso ao lado direito da cabeça, a faz se conectar ao resto do mundo por meio do som. Diagnosticada há quase nove anos com surdez profunda, a garota tem um implante coclear (popularmente conhecido como ouvido biônico) e está cada vez mais perto de receber alta depois de um longo e cuidadoso processo de habilitação auditiva.

A história de Emanuelly foi contada nas páginas do jornal Estado de Minas há oito anos. Na época, os pais viviam momentos de incerteza. Depois do ‘luto’ ao receber a notícia de que a filha não podia escutar, descobriram a existência de uma tecnologia semi-implantável capaz de transformar sons em sinais elétricos e transmiti-los ao nervo auditivo, dando a sensação de audição a quem tem surdez severa e profunda.

Começava ali uma caminhada que teve início com a cirurgia realizada em Bauru, no interior de São Paulo - já que até o fim de 2009 Minas Gerais ainda não realizava o procedimento por meio do SUS. Se, no princípio, o comerciante Gilmar Pereira da Silva, pai da menina, sentia medo ao imaginar a filha na mesa de cirurgia, ao vê-la reagir aos primeiros sons veio o alívio e esperança.

Quando a reportagem do EM visitou Emanuelly pela primeira vez, a garota estava com 2 anos e, recém-implantada, já virava ao ouvir o nome dela, mas ainda não pronunciava palavras. No entanto, o pai se lembra de que, “assim que começou a ouvir, ela ficou mais alegre”. Desde então, a menina passou por um intenso processo de habilitação auditiva, com acompanhamento constante de fonoaudiólogos.

O tratamento de Manu é feito no Centro Mineiro de Reabilitação Auditiva (Cemear), instituição de Belo Horizonte que é referência em Minas e atende pacientes do SUS. Ela cresceu indo semanalmente às terapias e reconhece o valor do trabalho com a equipe de fonoaudiólogos para seu desenvolvimento. “Aqui eu aprendi a falar, a fazer as atividades da escola, a ter mais paciência e a respeitar os coleguinhas”, conta a menina. "Ela tem tido um desenvolvimento muito eficaz. Graças às terapias, ela fala e interage muito bem, como uma ouvinte. Está sendo preparada para conviver normalmente com o mundo lá fora ", comemora a mãe Luciane Aparecida da Silva Veloso.  

A coordenadora do Cemear, Márcia Izabel Silva Mendes, explica que o trabalho de habilitação e reabilitação auditiva é árduo e deve ser reforçado dia a dia com orientação de profissionais especializados e empenho da família do deficiente auditivo. “É preciso exercitar a audição, trabalhando-a sistematicamente, todos os dias. Não é só uma questão de repetição. É preciso ensinar a pessoa implantada a codificar o som que ela ouve e associá-lo aos objetos e atividades ao redor.”

REGRESSÃO

Interromper o tratamento antes da habilitação total pode pôr a perder boa parte ou até tudo o que se conquistou com a terapia auditiva. Foi o que ocorreu com Emanuelly em 2013, depois que o aparelho externo do implante coclear sofreu dano e a menina ficou sem a prótese por dois anos. Na época, lembra o pai, Manu já falava e reconhecia bem diferentes sons. Com a ausência do aparelho, ela teve regressão na fala, dificuldades de percepção e enfrentou problemas do desenvolvimento escolar.

Leandro Couri/EM/D.A Press
A fonoaudióloga Luana Deva Mendes explica que a falta de estimulação prejudica muito o processo de codificação dos sons (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

“É como se ela tivesse voltado lá atrás. Em casos como esse, temos que começar tudo de novo, retomar o tratamento do início”, afirma a fonoaudióloga especialista em audição Luana Deva Mendes. Ela explica que, mesmo em casos onde o implante coclear está em pleno funcionamento, a falta de estimulação prejudica muito o processo de codificação dos sons e pode travar o desenvolvimento do paciente. “Em casa, muitas vezes, os familiares não conseguem identificar alguns sinais que só o fonoaudiólogo vai poder detectar e que indicam dificuldades de aprendizado e decodificação dos sons. Por isso é tão fundamental o acompanhamento profissional.”

No caso da Emanuelly, os pais conseguiram fazem a manutenção do aparelho em 2015 e, desde então, ela faz acompanhamento semanal e demonstra grande evolução da fala e percepção dos sons. “Só o fato de proporcionar para ela uma convivência normal com outras crianças já é um ganho enorme. Hoje, podemos dizer que ela pode viver sem a surdez como um obstáculo”, comemora o pai da menina.

QUEM PODE RECEBER IMPLANTE - PRÉ-REQUISITOS

» Pessoas com perda auditiva severa a profunda bilateral que não tiveram resposta com aparelhos auditivos convencionais. Cada caso deve ser avaliado por uma equipe de especialistas para verificar se o paciente está apto a ser implantado

IMPLANTE COCLEAR EM MINAS

» Minas realizou 655 cirurgias para implante coclear em hospitais de referência habilitados pelo Ministério da Saúde entre dezembro de 2009 e setembro de 2017.

HABILITAÇÃO E REABILITAÇÃO AUDITIVA EM MINAS

» Minas Gerais tem 13 serviços de atenção à saúde auditiva, quatro centros especializados em reabilitação com modalidade de reabilitação auditiva e cerca de 450 serviços de fonoaudiologia descentralizada em âmbito municipal. Não há dados sobre o total de pacientes que fazem habilitação e reabilitação no estado.

Dificuldades para manter atendimentos

Cemear/Divulgação
A coordenadora do Cemear, Márcia Izabel Silva Mendes, se emociona ao falar da evolução dos pacientes e faz planos por um atendimento cada vez mais humanizado, apesar das dificuldades financeiras (foto: Cemear/Divulgação)

O Exame Nacional do Ensino Médio 2017 deu destaque ao debate sobre os desafios da inclusão de pessoas com deficiência auditiva no ambiente escolar e, consequentemente, na sociedade. No Brasil, segundo o último censo realizado pelo IBGE em 2010, já eram mais de 9,7 milhões de pessoas com perda auditiva, sendo pouco mais de 1 milhão em Minas Gerais. Apenas em Belo Horizonte, mais de 111 mil têm algum grau de deficiência auditiva, sendo que, desses, 23,6 mil têm surdez severa ou profunda, com perda auditiva acima de 70 decibéis. É como se toda a população de Juatuba, na Grande BH, não tivesse condição de ouvir sem ajuda de uma prótese.

É com o olhar voltado para essa população que necessita de um aparelho para perceber os sons que o Centro Mineiro de Reabilitação Auditiva (Cemear) trabalha. A instituição, fundada em 2006 por um empresário mineiro e pai de deficiente auditivo, foi credenciada pelo SUS e é hoje um dos principais pontos de acolhimento e reabilitação do estado. Focado exclusivamente na habilitação e reabilitação para comunicação oral (pessoas que se interessam em aprender libras são encaminhadas para outras instituições), o Cemear faz quase 2 mil atendimentos por mês e vai muito além do atendimento fonoaudiológico. “A diferença do Cemear é ter um olhar holístico. O paciente não tem só ouvido, ele precisa de outras coisas, tem de ser cuidado como um todo”, explica Márcia, coordenadora da instituição.

Com essa visão, a instituição conta com uma equipe formada por fonoaudiólogos, otorrinolaringologistas, psicólogos, psicopedagogos e terapeutas ocupacionais. Conta ainda com serviço social para dar assistência a famílias com dificuldades financeiras e orientar sobre os direitos da pessoa com deficiência auditiva. Mas o Cemear enfrenta dificuldades devido ao atraso no repasse de recursos pelo governo e conta com ajuda de doações para manter as portas abertas. “Para manter a estrutura que temos hoje, precisamos de R$ 1 milhão por ano”, afirma a coordenadora da instituição. Para levantar dinheiro, Márcia passa boa parte do dia ao telefone em busca de parceiros. “Estamos tentando criar uma rede de amigos do Cemear para conseguir doações mensais que nos ajudem a manter as portas abertas”, conta.

Além disso, a instituição organiza eventos, bazares e outros meios de atrair pessoas para ajudar a manter o local funcionando. “A situação está muito difícil, então a gente atira para todo lado para o Cemear não parar”, diz Márcia, que se emociona ao falar da evolução dos pacientes acolhidos e insiste em fazer planos por um atendimento cada vez mais humanizado, apesar das dificuldades financeiras.

Sobre o atraso nos recursos direcionados ao Cemear, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) informou em nota que "está pendente o repasse do valor de R$ 108.510,45, referente ao período de janeiro a agosto. Em relação aos meses de setembro e outubro, os valores ainda não foram fechados". O órgão atribui o atraso a "um crescente déficit financeiro decorrente do aumento de despesas pela insuficiência de receita, refletindo em todos os seus órgãos" e não deu previsão para que a situação seja normalizada.

Quem tiver interesse em ajudar o Cemear pode entrar em contato com a instituição por meio do telefone (31) 3372-6631 ou visitar o espaço, que fica na Rua Esmeralda, 776, Bairro Prado, em BH.


As contas bancárias para depósito de doações são:

Banco do Brasil
AG. 1629-2
C/C 12.5699-8

Banco Santander
AG. 2116
C/C 13.000.487-7