Pesquisa ajuda a entender como bactérias intestinais mudam com o tempo e regem o organismo humano

Microbiota de caçadores-coletores que vivem na Tanzânia se altera conforme a estação e tem composição diferente da de seguidores da dieta ocidental. Descoberta ajuda a entender como as bactérias da flora evoluíram ao longo dos anos

por Vilhena Soares 02/09/2017 13:43
Human Food Project/Divulgação
Dieta dos hadzas muda conforme o período climático e tem cinco itens principais, entre eles, carne e frutas: mais enzimas para processar carboidratos (foto: Human Food Project/Divulgação)

Assim como a descoberta do DNA revolucionou a área científica, uma nova linha de estudo ganha força dentro dos laboratórios e promete transformar a medicina: o da microbiota humana. Pesquisadores tentam entender como as bactérias intestinais regem o organismo humano, interferindo, por exemplo, na proteção e no desencadeamento de doenças. Com esse objetivo, cientistas norte-americanos monitoraram alterações intestinais provocadas pela alimentação em um grupo de caçadores-coletores que vive na Tanzânia.

Além de constatar variações significativas durante a mudança das estações, os investigadores observaram a presença de famílias de bactérias que não existem em pessoas que seguem uma dieta contemporânea. Os resultados, publicados na edição da semana passada da revista Science, mostram como a microbiota humana sofreu mudanças ao longo do tempo e como poderão abrir portas para uma série de tratamentos que ajudem, por exemplo, a combater a obesidade.

Os investigadores analisaram uma das poucas populações tradicionais de caçadores-coletores que se mantêm fiéis ao passado: os hadzas, que habitam o Vale do Rift, na Tanzânia. Dos cerca de mil indivíduos existentes, apenas 200 seguem o estilo de vida tradicional de caçador-coletor, que inclui uma dieta composta principalmente por cinco itens: carne, bagas e baobab (frutas típicas da região), tubérculos e mel.

Devido a essas características, a dieta da população dos hadzas flutua de acordo com dois períodos climáticos que regem o Vale do Rift: seco, quando o consumo de carne, baobá e tubérculos desempenha um papel relativamente maior, e o úmido, no qual prevalecem as duas frutas, tubérculos e mel.

“Esse hadza de costumes típicos está desaparecendo, e essa rotina possivelmente se perderá em uma década ou duas. Talvez, até mais cedo. Alguns estão usando telefones celulares agora. Queríamos aproveitar essa janela de fechamento rápido para explorar essa microbiota que está se extinguindo”, conta Justin L. Sonnenburg, professor associado do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e autor principal do estudo.

Para isso, a equipe coletou 350 amostras de fezes de 188 hadzas que viviam mais isolados durante o ano. Uma análise minuciosa do conteúdo colhido mostrou que algumas famílias de bactérias variavam em harmonia com a ingestão dietética do grupo. As populações de quatro espécies microbianas diminuiu na estação úmida, quando o mel representou uma parcela significativa da ingestão calórica, e se recuperou na estação seca, quando o consumo de tubérculos ricos em fibras atingiu o pico. “Esse achado faz muito sentido, já que a nossa microbiota pode mudar significativamente de um dia para o outro, ou mesmo em horas, em resposta ao que estamos comendo”, ressalta Sonnenburg.

Os pesquisadores também compararam o microbioma dos hadzas com o de 18 populações de 16 países. Descobriram que duas famílias de bactérias predominantes nesse povo africano e em outros grupos com costumes alimentares tradicionais são raras ou completamente não detectadas em pessoas que seguem dietas contemporâneas. Os hadzas também têm mais enzimas para processar carboidratos, além de menor resistência a antibióticos.

Diversidade perdida

Os investigadores destacam que esses achados mostram como as mudanças radicais na dieta humana ocorridas ao longo dos últimos 10 mil anos podem ser o principal motivo da perda de diversidade da microbiana intestinal. “As populações de micróbios de caçadores-coletores são o que temos de mais próximo de uma ‘máquina do tempo’”, ressaltou Sonnenburg.

Para Luciana Nonino, gastroenterologista do Hospital Brasília, a pesquisa norte-americana traz pontos importantes sobre um tema que tem sido muito abordado na área médica. “Temos visto o quanto a microbiota pode determinar doenças que surgem ao longo da vida. É importante saber mais sobre esse tema, pois, assim, teremos como lidar melhor com essas enfermidades, criando estratégias para tratá-las ou preveni-las”, destaca.

Segundo a médica, o próximo passo para que essa mudança ocorra é entender melhor a função de cada membro da microbiota intestinal. “Precisamos saber como cada uma dessas bactérias atua, as que estão presentes em pessoas obesas, em indivíduos com diabetes, por exemplo, pois só assim será possível orientar um tratamento com base na microbiota intestinal, com a criação e a fabricação de opções terapêuticas”, explica.

PALAVRA DE ESPECIALISTA
Influência do nascimento
Shyamal Peddada, Pesquisador do Instituto Nacional de Ciências da Saúde Ambiental em Durham (EUA) 

“Viver em um ambiente dinâmico, em que dieta, clima, interações sociais, estilos de vida e uma série de outros fatores mudam regularmente pode influenciar a microbiota humana. A composição do intestino está sujeita a variações naturais. No entanto, não se sabe muito sobre essas variações. Com o estudo dessa população de caçadores-coletores, temos, agora, mais dados que ajudam a entender o tema. O que também ajudaria nessa maior compreensão seria a observação das diferenças que podem existir em bebês nascidos em períodos distintos, úmidos e secos. O efeito da época em que ocorre o nascimento pode revelar mais sobre a microbiota humana e sobre como ela pode variar diante de determinadas características ambientais”

Falta de fibras

O trabalho conduzido por Justin L. Sonnenburg e colegas entra em concordância com uma pesquisa publicada, no ano passado, na revista Nature. O trabalho sugeriu uma explicação para as “bactérias desaparecidas” na população moderna, mostrando que ratos privados do consumo de fibras dietéticas sofrem redução na diversidade da flora intestinal.

Essa variação foi restaurada quando a fibra alimentar retornou ao cardápio dos ratos, mas os pesquisadores observaram que, se a privação tivesse sido mantida por quatro gerações, as bactérias teriam sido extintas permanentemente. Sonnenburg e a equipe acreditam que o mesmo pode estar acontecendo com os humanos. “O hadza consome cerca de 100g ou mais de fibra por dia. Nós consumimos apenas 15g”, compara o professor da Universidade de Stanford.

O surgimento da agricultura, há cerca de 15 mil anos, pode ter sido a primeira grande mudança radical na dieta humana. No século passado, o estilo de vida do homem sofreu mais alterações, como introdução de antibióticos e a substituição gradual de grãos integrais cheios de fibras, frutas e legumes por alimentos mais processados. Todas essas mudanças foram, ao longo do tempo, impactando na composição da microbiota humana e, consequentemente, na maneira como ela reage a outras substâncias. (VS)