Brasileira descobre exame que pode diagnosticar doença de Alzheimer

O cérebro de pessoas com o mal degenerativo tem maior concentração da proteína TRPA1. Se o problema for acusado por ressonância magnética, o exame poderá funcionar como um diagnóstico da doença de Alzheimer

Arquivo Pessoal
Maíra A.Bicca: "Acho que nasci cientista" (foto: Arquivo Pessoal )
Um dos grandes desafios da medicina deste século, o Alzheimer é uma doença complexa e multifatorial que atrai a atenção de cientistas do mundo todo. Entre eles, está uma catarinense de 28 anos que, apesar da pouca idade, investiga a biologia dessa doença neurodegenerativa há uma década. Recentemente, Maíra Assunção Bicca, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), descobriu uma importante proteína que poderá ajudar a diagnosticar a enfermidade. O trabalho, que lhe rendeu o prêmio Jovem Talento em Ciências da Vida, produzido pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) e patrocinado pela GE Healthcare, também abre caminhos para o desenvolvimento de novos tratamentos.

A cientista descobriu uma proteína, a TRPA1, que está presente de forma anormal no cérebro de pacientes de Alzheimer. Se conseguir rastreá-la por meio de um exame de imagem, como a ressonância magnética, a expectativa de Maíra A. Bicca é fornecer um diagnóstico da doença, algo que não existe atualmente — a detecção baseia-se na avaliação clínica, em consultório. Apenas amostras do tecido cerebral retiradas após a morte comprovam a doença que consome os neurônios.

Essa proteína é uma velha conhecida dos pesquisadores do Laboratório de Farmacologia e Terapêutica Experimental da UFSC. Contudo, não se sabia que ela também existia no cérebro. Até a descoberta da cientista, os demais investigadores, sob a orientação do professor João Batista Calixto, estudavam o papel da TRPA1 na dor e em doenças inflamatórias, como a artrite reumatoide. “Nas pessoas que têm esses problemas, a proteína está muito ativa ou em grande quantidade”, explica Maíra A. Bicca. Também havia evidência da presença dela na medula espinhal.

Como esse receptor, que se localiza na superfície das células, se encontra superativado em pessoas com processos inflamatórios — e o Alzheimer é caracterizado por inflamações celulares —, a pesquisadora desconfiou que o acharia no cérebro. “Vi que não tinha nenhum trabalho na literatura mostrando que ele também poderia estar expresso no encéfalo”, conta. Então, Maíra A. Bicca começou a procurá-lo. “As minhas primeiras perguntas foram: ele está lá? Se sim, no curso da doença, ele se altera?”.

Para responder a essas questões, a pesquisadora utilizou diferentes modelos de estudo, começando pelo mais básico, a cultura de células. Depois, partiu para os modelos animais, induzindo em camundongos os sinais da fase inicial da doença e, em seguida, dos estágios mais avançados. A jovem cientista viu que estava certa. Ela descobriu a TRPA1 no cérebro e constatou que, como mecanismo de defesa, tentando evitar a progressão da enfermidade, as células passam a ativá-la exageradamente. Contudo, o que acontece é o oposto: “Esse excesso mata os neurônios”.

“Ela encontrou a proteína em um lugar que ninguém esperava, abrindo a possibilidade de que isso possa ajudar a controlar o Alzheimer”, diz João Batista Calixto, que orientou a pesquisadora. “O trabalho é inédito e tem grande relevância por ser um achado completamente novo. Ninguém saiu na frente da Maíra”, diz. Calixto ressalta que o trabalho ainda está distante da realidade clínica. “Mas abre caminho para a ciência aplicada”,  reforça.

Além do diagnóstico, o trabalho da cientista catarinense poderá ajudar no desenvolvimento de futuros tratamentos de uma doença para a qual, até hoje, não existe medicamento específico. “Quando peguei o modelo de rato com sinais avançados de Alzheimer e o tratei com um bloqueador da TRPA1, que inibe essa proteína, vi, pelo contraste, que ela diminuiu muito”, conta a Maíra A. Bicca, que aguarda a publicação de um novo artigo com o resultado na revista Nature Neuroscience.

Valdo Virgo / CB / D.A Press
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Parceria nos EUA
A primeira parte da pesquisa durou três anos e foi feita no Brasil. Durante o doutorado, Maíra A. Bicca ganhou uma bolsa do programa Ciência sem Fronteiras e passou 12 meses na Universidade de Northwestern, nos EUA, onde trabalhou com um banco de cérebros, que armazena tecidos humanos, incluindo os de pacientes de Alzheimer. Ao comparar as amostras de indivíduos sem a doença e aqueles com sinais claros do mal degenerativo, como a presença de placas da proteína beta-amiloide e redução expressiva de neurônios, a cientista percebeu que, no segundo caso, havia uma expressão anormal da TRPA1.

A passagem pela instituição norte-americana não permitiu apenas confirmar a presença do receptor no cérebro de humanos com Alzheimer. A então doutoranda brasileira participou de um grupo de pesquisa que desenvolveu um tipo de contraste que, injetado pelo nariz do paciente, permite identificar, por uma simples ressonância magnética, proteínas beta-amiloide isoladas no cérebro.

Embora as placas dessa substância estejam associadas à destruição dos neurônios, antes de se agregarem, elas são mais tóxicas ainda, e encontrá-las nesse estágio poderia, ao menos teoricamente, indicar o momento de uma intervenção terapêutica. “Fizemos testes com humanos e tivemos sucesso. Agora, tentamos usar o contraste para reconhecer também a TRPA1”, conta a pesquisadora, que continua colaborando com o grupo e publicou, com os colegas norte-americanos, um estudo na renomada revista Nature;

Carreira guiada pela curiosidade
Natural de Laguna, a 120km de Florianópolis, a jovem cientista conta que nasceu com o gosto pela ciência. "Segundo mamãe e papai, eu sempre fui muito curiosa, perguntadora e metida a testar ideias. Acho que nasci cientista e nem sabia", diz. Filha e neta de professores, Maíra Assunção Bicca sabia, porém, que queria seguir a carreira acadêmica. Aos 17 anos, com o ensino médio concluído, optou pelo curso de farmácia, que, à época, era associado ao de análises químicas, o verdadeiro foco de interesse da jovem.

No segundo semestre, viu um anúncio no quadro de avisos para estágio de iniciação científica no laboratório de João Batista Calixto, um dos mais renomados cientistas brasileiros e, agora, professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Como sempre teve grande interesse pelo sistema nervoso central, a estudante de graduação ficou encantada em investigar justamente o Alzheimer. "Tenho caso na família, uma avó que não me reconhece mais. É uma doença devastadora, me motiva a poder ajudar os pacientes", afirma.

O dia a dia no laboratório abriu novos horizontes para Maíra, que nunca mais se afastou de lá. Engatou o mestrado e o doutorado, sob orientação de Calixto, e, agora, faz pós-doutorado na UFSC. Curiosamente, ela só soube do Prêmio Jovem Talento em Ciências da Vida na véspera do encerramento das inscrições. O doutorado sobre a TRPA1, lhe rendeu o prêmio, em junho.

O diretor de negócios da GE Life Sciences para América Latina, Gyvair Molinari, acredita que o reconhecimento vai abrir mais portas para a pesquisadora, que foi contemplada com US$ 2 mil e o convite para participar de qualquer congresso científico que escolher. "O trabalho dela foi sensacional. Um tema absolutamente relevante, pois se trata de uma doença que vai atingir mais de 65 milhões de pessoas até 2030. Os ganhadores das edições anteriores estão, hoje, em posição de destaque em várias partes do mundo e grande parte dos finalistas continuaram na área acadêmica", orgulha-se.