Neurologistas mineiros lançam livro sobre como fazer o atendimento de usuários de crack

Brasil é o maior mercado de cocaína da América do Sul, com 900 mil usuários, 0,7% disso na forma de pedra

por Ludymilla Sá 19/10/2015 15:00
Arte: EM / D.A Press
3% da população usuária de crack, possivelmente, necessitará de internação hospitalar (foto: Arte: EM / D.A Press )
Era fim dos anos 1980. O Brasil passava pelos desafios da redemocratização, depois de 20 anos de ditadura, quando o crack surgiu no país, especificamente, na periferia de São Paulo. A droga em formato de pedra, subproduto barato da cocaína, era conhecida como a “raspa da canela do capeta” e seu nome remete aos estalos emitidos ao ser queimada em um cachimbo improvisado feito de latinhas de alumínio ou tubos de PVC. Hoje, o crack está presente em todos os cantos do país e também escalou a pirâmide social, chegando às classes mais abastadas na mesma rapidez que corrompe o organismo. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o maior mercado de cocaína da América do Sul, com 900 mil usuários, 0,7% disso na forma de pedra.


De acordo com a OMS, esses números crescem de forma acelerada em um cenário de desinformação. Há pouca literatura sobre o problema e, consequentemente, poucos profissionais capacitados para tratar pacientes dependentes de crack e outras drogas. Políticas públicas para a população usuária de substâncias psicoativas ganharam atenção especial neste século. Numa das frentes, havia o objetivo de criar leitos em hospitais gerais e psiquiátricos para dependentes químicos, mas somente o acolhimento seria insuficiente diante da ausência de pessoas qualificadas para lidar, sobretudo, com o atendimento de urgência a esses pacientes.

BETO NOVAES/EM/D. A PRESS
Diante da lacuna na literatura sobre como fazer o atendimento emergencial e de médio e longo prazo a viciados, neurologistas mineiros lançam livro sobre o tema (foto: BETO NOVAES/EM/D. A PRESS)
Em razão disso, o neurologista Antônio José Daniel Xavier, professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) e perito judicial, e o também neurologista Lucas Roquim e Silva, residente do Hospital Municipal Odilon Behrens, em Belo Horizonte, escreveram o livro Atendimento de urgência ao paciente usuário de crack e cocaína, editado e comercializado pela Coopmed Editora Médica. A publicação, segundo os médicos, é uma espécie de guia para orientar os profissionais no tratamento de pacientes viciados nessas drogas. “Conhecer os efeitos das substâncias e as complicações consequentes do abuso, e também conhecer o manejo específico desses pacientes intoxicados, é determinante para o sucesso do tratamento”, esclarecem os autores.

José Daniel afirma que, antes de mais nada, para lidar com essas pessoas, os profissionais precisam entender que elas são doentes e necessitam de bem mais que um atendimento de urgência. “Elas não podem receber atendimento, ser medicadas e ter a alta, pois precisam de internação para serem tratadas. E esse tratamento envolve uma série de especificidades , em razão das doenças associadas.”

Para se ter ideia, 3% da população usuária de crack, possivelmente, necessitará de internação hospitalar, mensalmente, conforme levantamento feito pelos especialistas. Mas a demanda dessa população por serviços de saúde é muito grande.

DOENÇAS ASSOCIADAS
O médico acrescenta que mais de 65% dos atendimentos em unidades especializadas para o tratamento de dependentes químicos ocorrem por causa do crack. “E a principal razão desse atendimento são as complicações psiquiátricas, que envolvem depressão com tentativa de suicídio e quadros de psicose. No caso da cocaína, os pacientes dão entrada no serviço de urgência por causa de overdose.”

Na avaliação do médico, é preciso estruturar o atendimento e individualizar o tratamento. “E o primeiro passo desse caminho é combater os estigmas. Por exemplo, as pessoas precisam compreender que o usuário de crack não é um morador de rua. Ele passa a viver na rua por causa da droga, perdeu todas as suas referências. Nas nossas pesquisas para escrever o livro, os moradores de rua usuários de crack eram minoria.”
 

Uso da coca data de 4,5 mil anos
O consumo de crack é relativamente novo, mas o da cocaína remete a um passado bem longínquo. A droga é derivada das folhas da Erythroxylon coca, uma planta que era considerada sagrada pelos incas, um presente do deus Sol. Lendas diversas associam a coca a fertilidade, sobrevivência e morte, assim como a práticas curativas. Escavações arqueológicas do Peru e Bolívia confirmam que a cocaína já era usada nos Andes há mais 4,5 mil anos pelas grandes civilizações pré-colombianas.

Na Europa, Américo Vespúcio, em 1507, fez os primeiros relatos sobre o uso da planta, cujas folhas eram mastigadas com cinzas ou bicarbonato de sódio para facilitar sua absorção pela mucosa oral. Em 1551, a Igreja Católica considerou a coca uma planta enviada pelo demônio para destruir os nativos e um obstáculo para a difusão do cristianismo. A proibição não durou muito, porque se constatou que os índios eram mais produtivos quando consumiam a planta.

A partir de 1855, começou-se a estudar a composição das folhas da planta. Quatro anos mais tarde, o alemão Albert Niemann conseguiu isolar, entre os seus numerosos alcaloides, o extrato de cocaína. Somente em 1898 foi descoberta a fórmula exata da estrutura química da coca. Em 1902, a cocaína sintética foi produzida pela primeira vez em laboratório, como cloridrato de cocaína. A substância passou a ser valorizada, principalmente no âmbito da medicina, sendo prescrita para doenças de difícil tratamento.

ANESTESIA
O oftalmologista australiano Karl Koller, em 1884, descobriu que, com o uso da cocaína, o olho humano tornava-se insensível a dor. Esse foi o primeiro passo para a anestesia local. A partir daí, o cirurgião norte-americano Willian Halsted passou a administrar cocaína em si e em seus colegas. Todos obtiveram sucesso no bloqueio da dor, iniciando a era das cirurgias oculares e provoando, porém, grande dependência.

Em 1884, Sigmund Freud, que usava 200 miligramas de cocaína por dia, defendeu ser a droga um estimulante, afrodisíaco e anestésico local, também indicado para o tratamento de asma, doenças como o câncer, desordens digestivas, exaustão nervosa, histeria, sífilis e mal-estar relacionado a altitudes. O psiquiatra tratou dois amigos doentes com a substância e ambos tornaram-se dependentes. Ele, então, reformulou seu conceito, ao afirmar que a droga milagrosa tinha uma série de inconvenientes. O principal deles era o seu potencial para criar dependência.

No ano seguinte, um químico colombiano descobriu uma maneira de produzir a cocaína semirrefinada. Com isso, os preços diminuíram e o uso da substância, até então vendida em bares, farmácias e mercearias, aumentou drasticamente. Diferentes formas de uso foram desenvolvidas, aumentando os episódios de toxicidade e dependência.

A droga foi proibida nos Estados Unidos em 1914 e no Brasil, em 1921. O surgimento das formas mais baratas da cocaína, como o crack, fez com que seu uso se expandisse para todas as camadas sociais, tornando-se, assim, um problema de ordem socioeconômico de grandes proporções para o país.